Limite Penal

Deu ruim: as desventuras do processo penal hoje

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

17 de maio de 2019, 8h05

Spacca
São tantos os temas atuais que decidimos fazer uma coluna tópica sobre as desventuras do processo penal, em três momentos: (a) prisão de Temer; (b) quebra de sigilo fiscal de Flávio Bolsonaro e Queiroz; e (c) importação de sementes de maconha.

Prisão de Temer
A prisão cautelar de Michel Temer, que não está mais no poder, é desnecessária, a nosso juízo, justamente porque os requisitos cautelares não se encontram presentes, consoante já apontamos em coluna anterior, para a qual remetemos o leitor. Sublinhamos: “A prisão preventiva do ex-presidente Temer novamente evidenciou a distorção dos fundamentos que justificam e legitimam a prisão cautelar. Inicialmente, é preciso recordar que as prisões cautelares têm como finalidade a tutela do processo, é uma instrumentalidade dirigida a garantir o normal desenvolvimento do processo e, como consequência, a eficaz aplicação do poder de penar. São medidas destinadas à tutela do processo. Não servem como antecipação de pena ou mesmo para o 'combate à impunidade', que nada mais é do que um chavão vago e genérico, que serve a qualquer discurso punitivista. Prisão cautelar é tutela do processo e, por isso, destina-se a garantir a prova ou a eficácia da aplicação da lei penal” (aqui).

O STJ, como esperado, concedeu a medida liminar em decisão colegiada, o que já significa uma concessão no mérito. Eis um momento em que o procedimento deveria ser abreviado… Se a liminar fosse monocrática, obviamente deveria haver um posterior julgamento colegiado, onde tudo poderia mudar (como mudou no TRF, por exemplo). Mas, sendo a liminar concedida a unanimidade, ela é plenamente satisfativa.

Mas nesse julgamento, entre as várias lições extraídas dos votos, chamamos a atenção para uma manifestação muito importante, no momento em que vivemos, por parte do ministro Néfi Cordeiro:

"Cautelar é dissipadora de riscos, e não garantidora penal. (…) Não se pode prender como resposta de desejos sociais". (…) Aliás, é bom que se esclareça que diante de eventuais desejos sociais de um juiz herói contra o crime, que essa não é e não pode ser a função do juiz. Juiz não enfrenta crimes. Não é agente de segurança pública. Não é controlador da moralidade social ou dos destinos políticos da nação. O juiz criminal deve conduzir o processo pela lei e a Constituição, com imparcialidade e somente ao final do processo, sopesando adequadamente as provas reconhecer a culpa ou declarar a absolvição. Juiz não é símbolo de combate a impunidade".

Essa advertência — muito necessária — do ministro Néfi Cordeiro serve para explicar claramente qual é a função e o papel do juiz criminal e, principalmente, a que expectativas ele deve corresponder. Em tempos de justicialismo e juízes comprometidos com o "combate" à criminalidade, é importante recordar que no processo penal o juiz deve corresponder às expectativas legais e constitucionais criadas, seu compromisso é esse, e não com a opinião pública(da). Em nome da legalidade e da Constituição, o juiz pode e deve ser contramajoritário, decidindo se necessário contra o clamor público e o ódio coletivo.

Quebra de sigilo fiscal e bancário de Flávio Bolsonaro e Queiroz
O direito à intimidade é garantia constitucional prevista no artigo 5º, inciso X, da Constituição da República. A Lei Complementar 105/2001 dispõe sobre as hipóteses em que a quebra de sigilo bancário pode ser decretada, mais especificamente no caput do parágrafo 4º, de seu artigo 1º:

“§ 4º A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmente nos seguintes crimes: (…) VIII – lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores; IX – praticado por organização criminosa”.

Logo, para análise do pedido deve estar instaurada investigação de “crime do catálogo”, indicado os meios já apurados e a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida, diante da presunção de inocência e do direito fundamental à privacidade[1]. A decisão, na maioria dos casos, poderia ser tomada depois de contraditório prévio, estabelecido com o investigado/acusado. De qualquer forma, terá contraditório diferido e, ausente fundamentação idônea, o resultado da quebra pode ser declarado ilícito. Para o seu deferimento, deve-se demonstrar a imprescindibilidade da produção, especialmente a ausência de outros meios[2], não podendo ter fundamento automático (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito). É o caso dos investigados Flávio Bolsonaro e Queiroz.

Sobre a validade dos dados obtidos pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), inexiste unanimidade, tendo prevalecido (STF, ADIs 2.386, 2.397 e 2.859) a tese de que a LC 105/2001, ao determinar a comunicação compulsória relativizou o sigilo, autorizando, inclusive, o início das investigações somente com os relatórios do Coaf[3], potencializada no caso de investigação de crimes de lavagem de dinheiro, diante das dificuldades de descoberta de provas[4]. A tendência é de mitigação do standard probatório nos casos de crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, organização criminosa e hediondos, criando-se distinção retórica, diante da recompensa oculta[5].

Prevalece a lógica de que, em crimes graves e sofisticados, as garantias constitucionais/legais — como a do sigilo — devem ser mitigadas, sendo uma das faces do Direito Processo Penal do Inimigo[6] ou de "terceira velocidade"[7], pelo qual, quanto maior o risco social, maior a velocidade, porque se retiram obstáculos, a saber, garantias. A lógica dominante é a da eficiência da descoberta das condutas criminalizadas. O que se verifica, em geral, é a sedução e o arrastamento das garantias flex para os demais delitos. Enfim, sigilo bancário e fiscal em tempos de prevalência do interesse público deixaram de existir. A partir de agora, havendo qualquer indicativo, afasta-se o direito fundamental para se fazer a "pescaria probatória" (fishing expedition[8]: achou algo, investiga-se; nada achando, arquiva-se). Eis os dilemas entre eficiência e garantias, no caso, virando-se o feitiço contra o feiticeiro.

Semente de maconha não é crime, por básico
Vale sublinhar uma decisão positiva. Na segunda-feira (13/5), o ministro Celso de Mello deferiu o Habeas Corpus 143.890-SP:

“Habeas Corpus”. Importação de sementes de maconha. Pequena quantidade. Material que não possui substâncias psicoativas, notadamente o princípio ativo da “cannabis sativa L.” (tetrahidrocanabinol ou THC). Conduta destituída de tipicidade penal. Doutrina. Precedentes. Ausência de justa causa que impede a legítima instauração de “persecutio criminis”. Necessária extinção do procedimento penal. Pedido deferido. – A semente de “cannabis sativa L.” não se mostra qualificável como droga, nem constitui matéria-prima ou insumo destinado a seu preparo, pois não possui, em sua composição, o princípio ativo da maconha (tetrahidrocanabinol ou THC), circunstância de que resulta a descaracterização da tipicidade penal da conduta do agente que a importa ou que a tem em seu poder. Disso resulta que a mera importação e/ou a simples posse da semente de “cannabis sativa L.” não se qualificam como fatores revestidos de tipicidade penal, essencialmente porque, não contendo as sementes o princípio ativo do tetrahidrocanabinol (THC), não se revelam aptas a produzir dependência física e/ou psíquica, o que as torna inócuas, não constituindo, por isso mesmo, elementos caracterizadores de matéria-prima para a produção de drogas”.

Aliás, passou o tempo de legalizar, já.

P.S.: Gostaríamos de manifestar nosso integral apoio às universidades federais, professores, servidores e pesquisadores. Somos contra qualquer tipo de corte, contingenciamento de despesas e qualquer forma de redução das verbas para a educação. Sempre é bom lembrar uma frase célebre: quem alega não ter verbas para educação desconsidera os custos da ignorância.


[1] BELLOQUE, Juliana Garcia. Sigilo bancário: análise crítica da LC 105/2001. São Paulo: RT, 2003, p. 86: “Consubstancia-se a quebra de sigilo financeiro em medida de coação porque importa em restrição a direito fundamental. Como todas as medidas desta natureza, será lícita — e, então processualmente admissível e valorável — quando a sua realização obedecer aos pressupostos e requisitos exigidos pela Constituição e pela lei. De outra forma, representará ilícito penal, civil, e, eventualmente, administrativo — sendo absolutamente imprestável à persecução penal, por força do comando constitucional inserto no art. 5°, LVI, irredutível quando se tratar de prova para fundamentar uma condenação”.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: EMais, 2019; BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Sigilo Bancário e Privacidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
[3] STJ, HC 349.945 (min. Rogério Schietti Cruz): “O Coaf, desde a edição da Lei Complementar 105/2001, passou a receber, independentemente de autorização judicial, diversas informações de natureza bancária, securitária, cambiária, relativas a mercados futuros e de títulos ou valores mobiliários, previdenciária, creditícia, de empréstimos com cartão de crédito, enfim, sobre todo negócio jurídico que tenha expressão monetária. Assim, por via transversa, a referida lei, ao tornar o sigilo e as inviolabilidades inoponíveis ao Coaf, acabou por permitir que os relatórios produzidos por ele fossem lastreados em elementos de informação da mais alta relevância e precisão técnica. (…) A atividade desempenhada pelo Coaf, ao constatar indícios de crime, não se restringe a simples afirmação de movimentação atípica, mas, ao contrário, apoia-se em um conjunto de informações relevantes que impõe, em alguns casos (até para melhor esclarecer o fato apontado), melhor análise dos dados que subsidiaram a comunicação feita aos órgãos de persecução penal e que, a fortiori, importam na necessária quebra de sigilo”.
[4] STJ, HC 349.945 (min. Rogério Schietti Cruz): “Crimes desse jaez — que compõem a também conhecida criminalidade corporativa — são ‘cada vez mais um segmento terceirizado do mercado de serviços ilegais, proporcionada por especialistas, indivíduos e empresas, não só hábeis em elaborar complexas técnicas de escamoteação da origem ilícita de ativos mais habilitados a fornecer sofistica assessoria de análise e gerenciamento de riscos e no estabelecimento de retaguarda jurídica para implementação de tais operações. (MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2004, p. 13)’. É possível antever, portanto, que os indícios de prova, suficientes para dar lastro a um juízo de probabilidade de ocorrência do fato delituoso – com a formação de uma suspeita razoável para pronunciamentos judiciais menos gravosos que a condenação, como a quebra de sigilo fiscal e bancário, por exemplo – devem ser colmatados com outras formas distintas das formas clássicas já conhecidas e que, geralmente, são precedidas de inquérito policial, de modo a possibilitar, com eficiência, o desmantelamento dos complexos delitos corporativos”.
[5] DUFOUR, Dany-Robert. O Divino Mercado: a revolução cultural liberal. Trad. Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008, p. 214: “A novilíngua agrupa sob o nome de ‘crime organizado’ todas essas atividades, como se isso não tivesse relação com o resto da atividade econômica, referindo-se a uma espécie de mundo paralelo bárbaro e subterrâneo em relação a um mundo oficial diurno e perfeitamente civilizado. Na realidade, esses dois mundos estão intimamente imbricados, e isso por duas razões: 1) os grupos financeiros e os bancos têm muito interesse em captar os enormes lucros dos negócios do chamado crime organizado; 2) a atividade econômica oficial também fornece uma massa de capitais duvidosos, talvez até pior, que se amalgamam, em vista de lavagens, com o dinheiro fácil oriundo das atividades criminosas. Esses capitais ‘corrompidos’ provêm de toda uma série de atividades muito difundidas nas grandes empresas”.
[6] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e Processo Penal: uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 300: “Assim as coisas, é evidente que o “processo penal do inimigo” pode ser identificado como um modelo de crime control, assemelhando-se a um esquema totalizante de poder penal, que tem sua origem na edificação de um arquétipo social de alarme, de urgência, passando a desenhar institutos jurídicos que expressamente se encontram consubstanciados no princípio do bem e do mal…”.
[7] SILVA SANCHES, Jesús María. Eficiência e Direito Penal. Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004; SILVA SANCHES, Jesús María. La expansión del Dereho Penal. B de F: Montevideo, 2006.
[8] SILVA, Viviane Ghizoni da; MELO E SILVA, Philipe Benoni; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Fishing Expedition e Encontro Fortuito na Busca e Apreensão. Florianópolis: Emais, 2019.

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