Senso Incomum

Lawtechs, startups, algoritmos: Direito que é bom, nem falar, certo?

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16 de maio de 2019, 8h00

Spacca
Vou mostrar como não há coisa mais velha do que uma coisa pretensamente nova que repete… a coisa velha (escrevo esta coluna instigado por Jacinto Nelson Coutinho).

No filme Exterminador do Futuro, o robô que tomou conta do mundo é da empresa Skynet. Os homens avançaram tanto na sua sede de tecnologia que as máquinas venceram. Da ficção à realidade, hoje caminhamos perigosamente rumo a essa distopia.

A professora coordenadora do curso de Direito da FGV, Marina Feferbaum, deu uma interessante entrevista na revista Ensino Superior, falando da relação das novas tecnologias e o Direito.

Tenho falado disso e alertado para o paradoxo: se a extrema tecnologização der certo, dará errado. É como as pesquisas que buscam objetificar ou matematizar o cérebro e as emoções, com eletrodos e quejandos: se der certo, dará errado, porque acaba com a filosofia.

Assim é a tecnologização Deus ex machina no Direito. O sucesso acaba com o próprio objeto. É a bomba atômica. Eficiente. Usada, destrói tudo por gerações.

O que diz a professora? Bom, muitas coisas. Diz que os advogados “não sabem como está esse turbilhão das lawtechs. O radar da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs mostra que aumentou 60% o número de startups jurídicas. É muito serviço sendo oferecido, muita solução. Há uma euforia muito grande com esse excesso de informação. E as pessoas estão se sentindo perdidas com o que de fato está acontecendo, o que de fato está sendo disruptivo ou não”.

Diz ainda que “o movimento constatado na pesquisa de escritórios criando as suas startups, como é o caso do JBM, que criou a Finch. Eles tinham mais de mil advogados, hoje têm 400. Trabalham por esteiras, cada esteira tem uma tela. Então há a esteira da contestação, a da inicial. Fazem 350 mil diligências por mês. Há um coordenador de esteira que distribuiu os prazos e vê como estão as pessoas, controla a produtividade”.

É um call center de advogados, assegura a professora. Eles têm advogados correspondentes em todo o Brasil, como se fosse um Uber de advogados (gostei dessa, professora — seria uma uberização do Direito?), aí mandam a peça e eles têm um programa próprio. Outros contratam as startups para ficar dentro do escritório. Contratam três diferentes para testar, uma de automação, uma de inteligência artificial…. E o terceiro modelo… (…).

Ela se diz (corretamente) preocupada com tudo isso. Lembra que a UNB fez parceria com a startup Legal Labs (adoro esses nomes), que ajudou a criar o Victor (eis a vitória dos algoritmos), a inteligência artificial do STF. Aqui a professora poderia ter analisado criticamente esse “fator Victor”.

Sigo. Avançando, a professora Marina diz que o ensino jurídico é do século XIX, e que este é “muito informativo e conteudista, não é baseado em habilidades. Está cada vez mais distante dessa realidade da tecnologia e da importância de fazer parcerias com startups, ou incentivar alunos a terem lawtechs. Aqui, me permito uma blague: faltam habilidades? Mas e os decorebas e a fabricação de resumos e manualetes, não são “habilidades”? Olha quanto isso tudo já produziu em Pindorama…

Alega também a professora que com essa tecnologização, “o pesquisador volta a ter espaço no mercado, pois a grande questão aqui não é a tecnologia, mas como saber traduzir e fazer boas perguntas para ver aonde chegar. Como as empresas estão usando isso? Elas conseguem mapear coisas como ‘89% dos casos desse tipo de ação desse juiz trabalhista do Tocantins foram decididos dessa forma’.” Conclusão da professora: “Então, se for desfavorável, é melhor se instalar em outro local”. Peço vista dos autos, professora. Prometo devolver os autos no prazo. Explico na sequência.

Impressionou-me também a informação de que, “na Advocacia Geral da União, há um programa que já dá os argumentos que um determinado juiz costuma aceitar. Eles têm um programa chamado Sapiens que sugere o argumento de acordo com a vara ou juiz onde você vai entrar”. Poxa, não? Jurisapiens? E eu fico lendo livros. Livros? O que essa coisa?

E, é claro, tinha que vir de novo a famosa pesquisa The Hungry Judge. Essa pesquisa foi assim: por dois anos, pesquisadores acompanharam uma corte israelense e viram que, com fome, o juiz era muito mais duro na concessão de liberdade condicional do que depois do almoço ou no começo do dia. Claro, aí perguntavam se você preferiria uma máquina ou um juiz com fome para julgar seu caso. Algo como Kitchen Lex! Ou Food Lex.

Ora, ora. Já escrevi criticando esse tipo de pesquisa. A Fundação Streck até fez uma pesquisa parecida, fornecendo um generoso lanche as 10 da manhã. Resultado final: todos engordaram e continuaram a julgar do mesmo jeito. Falando sério, para mim, se o Direito depende(r) do que os juízes comem, fracassamos em tudo o que já escrevemos. Adeus Hart, Dworkin, Gadamer, Ferrajoli… Com o devido respeito, nunca usaria uma pesquisa como essa (vejam, não estou dizendo que a professora concorda com ela, porque não deu para perceber), porque esse tipo de estudo é frágil e enganador. Usaria apenas como agir estratégico. Mas não como vetor científico. Trata-se do velho empirismo, que, no plano da metaética se chama não-cognitivismo moral, como bem demonstra Arthur Ferreira Neto. Trata-se também de um requien para a doutrina.

Pesquisas desse tipo e uso de startaps podem ser tudo, menos Direito. É tudo, menos teoria do Direito. Logo, não há mais Direito. Há apenas resultados, consequências, teleologismos. Talvez necessitemos, com urgência, fazer um restartconstruindo clínicas de reabilitação para dependentes de teorias consequencialistas, realistas e congêneres (demonstrarei abaixo que isso tudo não passa da repristinação do velho e mofado realismo jurídico).

Numa palavra: se o almoço, traumas, intuições ou ideologias são fatores decisivos na sentença, passemos a escrever livros sobre estratégias de convencimento ou sobre “como devem se alimentar os magistrados” ou, na linha de best sellers como O Monge e o Executivo, escrevamos paródias sobre o “O Monge e o Juiz” ou “Salomão – o magistrado sábio”, “O Juiz e as Pirâmides”, “O juiz e o Barão de Munschausen: guia para superação do paradoxo”, o Juiz e os algoritmos, etc. De novo: para que estudar Direito, se os algoritmos e as estatísticas sobre almoços dão o caminho das pedras?

Sigo. A professora pesquisa com seriedade essa temática. Cumprimentos. Permito-me, contudo, tecer alguns comentários, para além de minha crítica ao “fator hambúrguer” dos magistrados israelenses.

Recorro ao filósofo John Gray. Nem concordo com todo seu pessimismo, que, a meu ver, chega perto de um perigoso relativismo. Mas, na questão da técnica, ele vai na veia:

Lutando por escapar do mundo que a ciência revelou, a humanidade se refugiou na ilusão de que a ciência permite-lhe refazer o mundo à sua imagem”.

É isso. A técnica é a religião secular pós-moderna.

Vejam: nestes nossos tempos de obscurantismo, de anti-intelectualismo, tempos em que é bonito ser idiota, preciso fazer uma ressalva óbvia. Eu não sou contra a ciência. O que vier para ajudar o Direito, tanto melhor.

O que me incomoda nessa cientificização, que coloca a técnica como visão de mundo (de novo, não digo que a professora faz isso), é que, pretendendo ter todas as respostas, ela, a cientificização, desarticula todo o saber.

Não haverá mais juristas; haverá mais especialistas. Especialistas raso-mecânicos e/ou mecanicizados que sabem traçar todo o histórico decisório “desse juiz trabalhista no Tocantins”. O problema é que o neotecnoespecialista ignora a raiz de todo o resto. Não é esse um verdadeiro primitivismo? “A ciência”, afinal — dirá Heidegger — “não pensa”.

Vou além: tanto assim o é que o cientificismo jurídico não percebe as próprias contradições internas. Explico. O ensino jurídico é atrasado? A professora diz, com segurança, que é. Mas, pergunto eu, o que a cientifização está a dizer? Aqui está a surpresa. A resposta nova apenas repristina uma coisa muitíssimo velha.

Isto é, a resposta do empirismo tecnicizante — e é disso que se trata – não é nada diferente do que diziam os realistas jurídicos do século passado (e que estão bem vivos no Brasil, naquilo que chamo de “realismo retrô brasileiro”).

E o que diziam os realistas? Simples: Direito é o que os tribunais dizem que é. Tudo “novo”, não? Para os realistas, nossa tarefa é prever como os juízes decidem, já que “Direito” é uma ficção, e o processo decisório é eminentemente irracional. Sim. Isso já estava em Jerome Frank. Antecipou em um século o Victor e as startups, que chegam com ares de novidade. Onde a novidade das startups?

Parafraseando Mark Twain, digo que, quando vier o apocalipse, quero estar no Brasil; as coisas aqui só chegam um século depois.

Pois é. Não adianta acusar os outros de oitocentismo com respostas novencentistas. Por que digo isso? Porque, ao não perceber que repristina o velho realismo, tanto mais longe a startupização do Direito está de perceber os problemas do velho realismo que ele repristina. Claro: a ciência só traz soluções para os problemas. Sem a filosofia, não seremos capazes de perceber os problemas das soluções.

Talvez isso explique a lógica de uma política que pretende matar de fome os cursos de “humanas”. Não é útil ter gente por aí identificando os problemas das soluções, especialmente quando as soluções tais são tão carentes de prognose e epistemologia. Mas enfim, é uma digressão. Voltemos ao ponto.

A startupização (outra vez, não estou dizendo que a professora defenda a startupização) não percebe o paradoxo subjacente ao velho realismo jurídico. Vejamos sua(s) proposta(s): (i) o processo decisório é, ou pode ser, irracional; (ii) fatores extra-jurídicos influenciam nas decisões; (iii) o papel do jurista-que-não-é-mais-jurista é, portanto, prever essas decisões. Afinal, falar de um conceito/concepção de Direito é atrasado. Pura ficção “conteudista”.

Só que vejam: se não existe “Direito”, se Direito é o que os tribunais dizem, de que modo as máquinas vão prever qualquer coisa na medida em que não há nada que imponha limites ao que o Tribunal pode dizer? Esse é o ponto. Sem uma robusta teoria da decisão, o juiz decide como quiser.

E aí, quando não há limites, não adianta o Victor, a Victoria, o Sapiens, O Sapiens Food, o diabo que for, dizer que, naquela vara trabalhista no Tocantins, 89% das decisões dizem X. Se, no dia seguinte, aquele juiz trabalhista do Tocantins tiver pulado o café da manhã, vai dizer Y. E aí o Victor vai pra onde?

Se o Direito pode ser qualquer coisa, ninguém vai ser capaz de prever nada. Simples assim. E aí teremos apenas especialistas… que se tornam especialistas em coisa alguma, porque a própria técnica que lhes formou diz que o Direito é uma ficção. Pois é.

Não teremos reis, só mensageiros de reis. Mas, sem reis, não haverá mais mensagens. Haverá (já há) mais um predador do Direito no mercado. Agora é o de número 4. Moral, política e economia…e agora a startupização.

Numa palavra, a startupização não pode se transformar em star(es)tupi(ti)zação. Sob pena de adentrarmos de vez na era da inteligência artificial. Vejam a seguir. Artificial indeed:  

Asier
Cartoon Inteligência Artificial [Asier]

Uma historinha final: Houve um torneio de caça ao pato. Um caçador (Dr. Estar Tapas) deu dois tiros, errando à direita e à esquerda do bicho. Como ninguém havia acertado o alvo, o causídico reivindicou o prêmio, com o seguinte raciocínio: dei um tiro e errei um metro à esquerda do pato; depois, dei outro, errando um metro à direita. Na média, acertei o pato. E citou, a seu favor, uma estatística a partir de fórmulas e algoritmos. A comissão organizadora lhe deu razão, mas com uma condição: que o mesmo cálculo estatístico valesse contra ele. Dito isto, colocou o Dr. Estar Tapas com um pé nas brasas e outro pé no gelo. O doutor berrava contra a injustiça, ao que o Presidente da comissão lhe respondeu: pelos algoritmos, a sua temperatura é ótima!

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