Opinião

Cenário político pode afastar aprovação do Brasil na OCDE

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16 de maio de 2019, 15h08

O sonho do governo Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes pode acabar antes mesmo de começar. Em que pese a recente manifestação de apoio do presidente americano Donald Trump para a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), é preciso que o país cumpra uma série de requisitos, como ser aprovado em mais de duas dezenas de comitês do organismo e aderir a outras mais de duas centenas de instrumentos normativos. Por exemplo, na área econômica, a OCDE dá ênfase à cooperação no combate à corrupção e à evasão fiscal.

Não por outro motivo, o seleto grupo atribui especial importância às medidas que um país-membro toma em relação a compliance, combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. O Brasil vinha caminhando bem nesse tema. Faz parte do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi/FATF)[1], que é uma organização intergovernamental cujo propósito é desenvolver e promover políticas nacionais e internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e que, entre outras recomendações, exige o aumento da fiscalização sobre as Pessoas Politicamente Expostas, além de definir crimes fiscais como antecedentes e conexos com a corrupção e a lavagem de dinheiro. Periodicamente, o Gafi realiza avaliação dos países-membros acerca da implementação de medidas de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.

O Brasil também é signatário da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, internalizada pelo Decreto 5.687/2006[2], que afirma que o Estado-parte deve outorgar a independência necessária aos órgãos encarregados de prevenir a corrupção, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, para que possam desempenhar suas funções de maneira eficaz e sem nenhuma influência indevida.

A própria OCDE, no recente relatório Improving Co-operation between Tax Authorities and Anti-Corruption Authorities in Combating Tax Crime and Corruption (Aperfeiçoando a Cooperação entre as Autoridades Fiscais e as Autoridades Anticorrupção no Combate aos Crimes Tributários e à Corrupção)[3], defende a cooperação e a independência entre os órgãos responsáveis no país pelo combate à corrupção, lavagem de dinheiro e crimes fiscais. No Brasil, esse papel é exercido pelo Ministério Público Federal, pela Polícia Federal e pela Receita Federal, através de seus auditores fiscais.

Nesse mesmo relatório, a OCDE cita os resultados desse trabalho de cooperação, fazendo alusão, entre outras, à operação "lava jato":

As ligações entre o crime fiscal e a corrupção significam que as autoridades fiscais e as autoridades responsáveis pela aplicação da lei podem se beneficiar grandemente de uma cooperação mais eficaz e compartilhamento de informações. As autoridades fiscais detêm uma riqueza de informações de pessoas físicas e jurídicas como informações como renda, ativos, transações financeiras e informações bancárias, que podem ser uma valiosa fonte de inteligência e de dados para os investigadores anti-corrupção (…) A investigação sobre a estatal brasileira, Petrobras, iniciada em 2014, é um excelente exemplo disso. Auditores fiscais desempenharam um papel crítico nesta investigação transnacional de corrupção, analisando os dados fiscais e aduaneiros dos suspeitos e compartilharam isso com a Polícia Federal e o Ministério Público conforme permitido por lei. Como resultado, as Autoridades foram capazes de descobrir evidências de lavagem de dinheiro, evasão fiscal e ativos ocultos e acompanhar os fluxos financeiros (…) a operação resultou em dezenas de acusações contra altos funcionários públicos e políticos e bilhões de dólares em multas criminais, penalidades fiscais e ativos recuperados.

A importância é tamanha que neste ano completam-se 20 anos da entrada em vigor da Convenção Anticorrupção de Agentes Públicos da OCDE, que o Brasil também é signatário[4]. Essa integração entre os órgãos públicos e o repasse de informações entre os países, é considerada essencial pela OCDE. Essas "redes de integração" incluem desde Ministérios Públicos (como a Eurojust), de polícias (como a Interpol e a Europol) e as administrações tributárias (mediante mecanismos como CRS/OCDE, o Gafi e acordos de implementação como o Fatca/EUA).

O alerta acende também já que o Brasil apresentou em 2018 nova queda no Índice de Percepção da Corrupção (IPC) da Transparência Internacional[5][6], que nos termos do relatório diz:

"Apesar de avanços na investigação e sanção de grandes esquemas de corrupção, a falta de reformas legais e institucionais pode explicar a sequência de resultados ruins (…) A Lava Jato foi crucial para romper com o histórico de impunidade da corrupção no Brasil — principalmente de réus poderosos. Mas para o país efetivamente avançar e mudar de patamar no controle da corrupção, são necessárias reformas legais e institucionais que verdadeiramente alterem as condições que perpetuam a corrupção sistêmica no Brasil".

Novo e significativo entrave advirá se o relatório da Medida Provisória 870, se aprovado no Congresso e sancionado pela presidência entenda por limitar, em total descompasso com as melhores práticas internacionais, a atuação dos auditores fiscais, assim como o compartilhamento de informações entre a Receita Federal e o Ministério Público. Sem esse compartilhamento, altamente recomendado pela OCDE, provavelmente surgirão dificuldades extras e desnecessárias na apuração de crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. O próprio Ministério Público Federal cita, em nota[7], três convenções anticorrupções que seriam atingidas caso as atribuições dos auditores seja limitada. Entre elas: a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, elaborada pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE); a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e a Convenção Interamericana contra a Corrupção.

A emenda à MP, além de versar sobre matéria penal, o que é vedado pela Constituição Federal de ser tratada por essa espécie legislativa, quando ao fazer referência ao artigo 106 do Código Tributário Nacional, que trata da interpretação da lei para efeitos pretéritos, pode servir como uma espécie de anistia e tornar ilegal todas as ações já realizadas pela Receita Federal e aquelas compartilhadas com o Ministério Público, como as operações "lava jato", zelotes e calicute. O próprio relatório da OCDE recomenda fortemente aos países sobre os benefícios da cooperação entre os órgãos fiscais e o Ministério Público, além de encorajar melhorias e revisões legislativas que facilitem e não, pelo contrário, que os países imponham obstáculos para essa atuação conjunta. Não é difícil inferir que uma possível suspensão do país do Gafi/FATF e o descumprimento de uma série de acordos internacionais pode fazer cair ainda mais o investimento estrangeiro no Brasil. Dessa forma, e por esse caminho, sem a aprovação dos comitês da OCDE, nem mesmo o apoio de Trump vai adiantar. E o país vai ficando cada vez mais longe do sonho de pertencer ao seleto grupo dos países ricos.

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