Opinião

A regra de prevenção de competência funcional (absoluta) do relator

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16 de maio de 2019, 6h13

Como estabelece o artigo 96, I, da Constituição Federal, compete aos tribunais “elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”.

Assim, a partir da vigência do novo Código de Processo Civil, que inovou ao fixar regra geral de prevenção aplicável aos relatores nos tribunais (parágrafo único do artigo 930), os regimentos internos devem se adaptar a esse dispositivo, primacialmente por se tratar de critério de competência funcional (absoluta), uma garantia das partes. A autonomia administrativa dos tribunais na elaboração de seu regimento interna tem suas balizas no artigo 96, I, da CF, com obrigatória observância às normas processuais, daí a cogência do parágrafo único do artigo 930 do CPC reverberar, irrefragavelmente, nas normas internas dos tribunais que regulem diferentemente a matéria.

No Código de Processo Civil de 1973, inexistia essa regra específica de competência absoluta (imutável) do relator, relegando aos regimentos internos sua normatização: Far-se-á a distribuição de acordo com o regimento interno do tribunal, observando-se os princípios da publicidade, da alternatividade e do sorteio” (artigo 548).

Nessa delegação do código anterior aos regimentos internos dos tribunais, passaram a coexistir regras diferentes quanto à prevenção do relator, alguns deles retirando-a do relator quando restar vencido em uma das causas conexas, recaindo (a prevenção) no magistrado designado para lavrar o acórdão. De conseguinte, nos casos em que os órgãos colegiados são compostos por cinco membros, mas três, via de regra, participam dos julgamentos, o anterior relator se exclui do quórum. Dito de outro modo: vencido o relator, o mais antigo dos três, o magistrado condutor do voto vencedor, ao assumir a relatoria, passa a ser o mais antigo, compondo novo quórum com os colegas mais novos de ingresso no tribunal[1].

Mas o novo Código de Processo Civil dirimiu essa questão, ao estabelecer, no parágrafo único do seu artigo 930, regra clara a respeito, que não admite a interpretação de alteração do relator em qualquer outra hipótese:

“Art. 930. Far-se-á a distribuição de acordo com o regimento interno do tribunal, observando-se a alternatividade, o sorteio eletrônico e a publicidade.

Parágrafo único. O primeiro recurso protocolado no tribunal tornará prevento o relator para eventual recurso subsequente interposto no mesmo processo ou em processo conexo”.

De se ressaltar, também, que a inobservância ao parágrafo único do artigo 930 do Código de Processo Civil por alguns regimentos internos dos tribunais, para além de violar o preceito constitucional do artigo 96, I, da Constituição Federal, o faz também em relação ao artigo 22, I, da mesma carta fundamental, pois, competindo à União legislar sobre processo, a norma regimental não poderá ir além do previsto no atual CPC relativamente à prevenção do relator, principalmente lhe retirando a competência absoluta para atuar no processo. Ponha-se de novo a realce: “O primeiro recurso protocolado no tribunal tornará prevento o relator para eventual recurso subsequente interposto no mesmo processo ou em processo conexo” (parágrafo único do artigo 930 do CPC).

Ainda, a rigor, as normas de prevenção de alguns regimentos internos, por se tratar a competência funcional absoluta, ao substituir o relator quando vencido em um julgamento de causa conexa, violam inquestionavelmente o princípio do juiz natural, mais uma garantia relevante das partes.

Apesar de o novel Código de Processo Civil ter entrado em vigor em 18 de março de 2016, tem-se mostrado tímido o enfrentamento dessa matéria na jurisprudência nacional, porque não percebida sua relevância pela maioria dos operadores do Direito, mormente porque passível de nulidade. Por outro lado, invocam-se normas de tribunais superiores que, prima facie, estariam em desacordo como o novo CPC, nas quais a substituição do relator não altera o quórum.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, por seu Conselho Especial, ao julgar o Conflito de Competência 20180020025529 (0002541-10.2018.8.07.000)[2], deixou clara a prevalência do parágrafo único do artigo 930 do CPC em face dos regimentos internos dos tribunais:

“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA ENTRE DESEMBARGADORES. RELATOR ORIGINÁRIO E PROLATOR DO PRIMEIRO VOTO VENCEDOR, DESIGNADO PARA REDIGIR O ACÓRDÃO. FIGURAS QUE NÃO SE CONFUNDEM. ‘RELATOR’ É O JULGADOR A QUEM O FEITO ORIGINÁRIO, OU O RECURSO, TOCA POR DISTRIBUIÇÃO, FICANDO PREVENTO PARA OS DEMAIS RECURSOS QUE VENHAM A SER INTERPOSTOS. AO ‘PROLATOR DO PRIMEIRO VOTO VENCEDOR’ COMPETE A ATRIBUIÇÃO REGIMENTAL DE REDIGIR O ACÓRDÃO, NÃO SE LHE TRANSFERINDO A RELATORIA APENAS À CONTA DESSE FATO. INTELIGÊNCIA DAS NORMAS LEGAIS E REGIMENTAIS SOBRE O TEMA.

1. O art. 81, § 1º, do RITJDFT, dispõe que ‘o primeiro recurso distribuído torna preventos o órgão e o relator para eventual recurso subsequente interposto em processo conexo, observada a legislação processual respectiva’. Ou seja, a norma ora transcrita cuida da prevenção do órgão e, sublinhe-se, do relator. O art. 118, a seu turno, refere-se à figura do ‘relator’ e à do ‘prolator do primeiro voto vencedor’. São figuras diferentes, a quem o RITJDFT atribuiu competências (ou atribuições) diversas. O relator é o juiz natural do feito originário ou do recurso e adquire essa ‘qualidade’ com a distribuição, nos termos do art. 930, do CPC, sendo certo que, nos termos do parágrafo único desse dispositivo legal, ‘o primeiro recurso protocolado no tribunal tornará prevento para eventual recurso subsequente interposto no mesmo processo ou em processo conexo’.

2. Nos termos da norma regimental, a figura do ‘prolator do primeiro voto vencedor’ não se confunde com a figura do ‘relator’ – que, por lei, é o juiz natural do feito ou do recurso, estando prevento para todos os outros feitos conexos daí para diante -, cabendo ao ‘prolator do primeiro voto vencedor’, apenas e tão-somente, a tarefa de redigir o acórdão. E essa atribuição – ‘redigir o acórdão’ -, nos estritos termos do que se lê no RITJDFT e no CPC, não tem o condão de alterar a competência atribuída por lei ao Relator.

3. Vencido o Relator, o prolator do primeiro voto vencedor será designado para redigir o acórdão e haverá de desempenhar essa tarefa, tocando-lhe, por extensão lógica, relatar os embargos declaratórios que venham a ser eventualmente interpostos contra esse acórdão. Só isso e nada mais. O Relator seguirá sendo Relator, não podendo ser confundido com o ‘prolator do primeiro voto vencedor’, cuja atribuição, repita-se, é apenas a de redigir o acórdão.

4. Declarado competente o Desembargador suscitado”.

De se destacar que o Regimento Interno do TJ-DF não prevê a hipótese de tornar-se relator o magistrado designado para lavrar o acórdão, bem assim que o voto condutor do conflito aludido analisou alguns regimentos de tribunais nacionais sobre a matéria ― alguns deles com a previsão de transferência da relatoria para aquele designado para o acórdão, para concluir:

“Por isso, e volvendo os olhos para o caso concreto, se o Relator do agravo de instrumento é o Desembargador Rômulo, é ele quem está prevento ‘para eventual recurso subsequente interposto no mesmo processo ou em processo conexo’, nos exatos termos do parágrafo único do art. 930, do CPC, que não tem o seu conteúdo abrandado por qualquer norma regimental. A circunstância de ter ficado vencido no julgamento desse recurso, tendo sido designado para redigir o acórdão o Desembargador Teófilo, que foi o ‘prolator do primeiro voto vencedor’, não o libera da prevenção, devendo prevalecer o texto legal, à míngua de qualquer norma regimental que disponha de modo contrário” (grifou-se).

Igualmente enfático quanto à prevalência do parágrafo único do CPC sobre as normas regimentais dos tribunais, pronunciou-se o Tribunal de Justiça de Goiás ao julgar conflito de competência[3]:

“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA ENTRE DESEMBARGADORES PREVENÇÃO DO RELATOR PARA JULGAMENTO DE RECURSO QUANDO CONHECEU DE INSURGÊNCIA ANTERIOR AFETA AO MESMO PROCESSO DE ORIGEM (SEM PREVISÃO NO CPC/1973, ART. 38, § § 1º E 2º, RITJGO). MODIFICAÇÃO DO QUADRO. ART. 930, PARÁGRAFO ÚNICO, CPC/2015.

PREVENÇÃO PARA O RECURSO SUBSEQUENTE LASTREADA NO PROTOCOLO E DISTRIBUIÇÃO DO RECURSO ANTERIOR, AINDA QUE ESTE NÃO TENHA SIDO CONHECIDO. PROCEDÊNCIA.

I – No Código de Processo Civil de 1973 o legislador ordinário não disciplinou a prevenção no âmbito do segundo grau. Os regimentos internos dos tribunais, atentos à sua organização interna corporis (artigo 96, I, “a”, Constituição Federal) – lei em sentido material – dispunham sobre a distribuição entre os desembargadores sem as balizas do legislador ordinário. Assim, no trato imprescindível da competência doméstica o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, datado de 1982, em seu artigo 38 estabeleceu, dentre outras regras, que a distribuição da ação ou do recurso firma a competência da câmara ao passo que somente o conhecimento do mérito (admissibilidade) torna preventa a competência do relator para os recursos posteriores (§ § 1º e 2º). Os regimentos de outros tribunais, contemporâneos ao Código de Processo Civil de 1973, a exemplo de São Paulo (artigo 105, § 3º), Santa Cataria (artigo 54) e Distrito Federal e Territórios (artigo 81), por outro lado, enunciaram que o protocolo do recurso ou da ação originária no tribunal, insubmissos à admissibilidade ou à inadmissibilidade, torna preventa não só a competência da câmara, mas também do relator.

II – Dentre as expressivas modificações do Código de Processo Civil de 2015 o legislador inovou ao enunciar uma regra geral de prevenção no âmbito dos tribunais, especificamente no seu artigo 930, parágrafo único. Descortinou-se aí uma imperativa direção aos regimentos internos dos tribunais, que mesmo em sua autonomia orgânico-administrativa doravante devem observar o preceptivo (artigo 22, I, “a”, Constituição Federal), mormente por veicular critério de competência funcional e, portanto, absoluta. Tem-se que as disposições regimentais devem guardar observância com as normas de processo e garantias das partes. Fácil dessumir, assim, que a cogência do artigo 930, parágrafo único, CPC/2015, naturalmente repercute no ambiente regimental deste tribunal, conformando-o, ainda que pendente a modificação expressa.

III – Essa conclusão foi recentemente estampada no conflito negativo de competência nº 40192178.2015.8.09.0000 (201594019215), sem razão para modificá-la.

IV – Conflito procedente”.

De se concluir, e tal qual frisado pelo TJ-GO, que a cogência do parágrafo único do artigo 930 do novo CPC repercute nos regimentos internos dos tribunais brasileiros, ainda que pendentes de modificação expressa, pois a revogação tácita dos dispositivos regimentais que dispõem em sentido contrário ou extensivo passa a ser ponto indiscutível no âmbito da necessária segurança jurídica do nosso ordenamento jurídico, nomeadamente por se cuidar de competência funcional (absoluta).


[1] Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:
Art. 197. Observada a competência dos órgãos colegiados, a distribuição de mandado de segurança, de mandado de injunção, de habeas corpus, de habeas data, de pedido de concessão de efeito suspensivo em apelação e de recurso torna preventa a competência do Relator para todos os demais recursos e incidentes anteriores e posteriores, tanto na ação quanto na execução referentes ao mesmo processo. (Redação dada pela Emenda Regimental n° 01/2016 – DJe n° 1882 de 13/09/2016)
§ 7°. Vencido o Relator, a prevenção recairá no Desembargador designado para lavrar o acórdão, salvo quando se tratar de agravo inominado ou regimental.
[2] Relator: Desembargador ARNOLDO CAMANHO, acórdão n. 1112637, julg. 24 de Julho de 2018.
[3] CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 211877-68.2016.8.09.0000 (201692118773) 1ª SEÇÃO CÍVEL, RELATORA: DES.ª BEATRIZ FIGUEIREDO FRANCO.

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