Opinião

A sub-rogação da seguradora nos sinistros de transportes marítimos

Autores

  • Carlos Harten

    é sócio-diretor da Queiroz Cavalcanti Advocacia presidente da Comissão Especial de Direito Securitário do Conselho Federal da OAB. Possui diploma de Estudios Avanzados pela Universidade de Salamanca/Espanha e Executive Programme pelo Insead/França.

  • Ingrid Zanella

    é sócia-titular de Direito Marítimo Portuário e Aduaneiro do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia vice-presidente da OAB-PE e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

15 de maio de 2019, 15h19

A sub-rogação da seguradora nos direitos do segurado ocorre quando aquela indeniza o dono da carga segurada, nos limites do contrato de seguro, perdida parcial ou integralmente em virtude de sinistros sofridos durante transporte, depósito ou operação de carga e descarga.

Pela sub-rogação, a seguradora assume, na exata proporção de seu adimplemento, a posição do dono da carga, havendo a novação subjetiva do crédito à indenização, passando a ter todos os direitos, ações, privilégios e garantias (artigo 349 do Código Comercial) — suportando inclusive todas as exceções que o sub-rogado teria de enfrentar — em face de transportador, armador, afretador, operador portuário etc., na medida de suas responsabilidades exclusivas ou solidárias pelo dano causado. Pela sub-rogação, a seguradora também recebe os direitos sobre os salvados, que são os bens resgatados que ainda detêm algum valor econômico, como estruturas passíveis de reciclagem, partes de equipamentos não deterioradas ou grãos que possam ser destinados à alimentação animal.

O segurado é obrigado a comunicar a seguradora, tão logo dela tome conhecimento, a ocorrência do sinistro (artigos 771 e 719 do Código Comercial), o que desencadeará sua regulação, que consiste no procedimento de apuração das circunstâncias do evento e seus efeitos, com a finalidade de identificar a existência ou não de cobertura securitária, bem como eventual direito à sub-rogação.

Independentemente da oportuna participação da seguradora, o segurado deve imediatamente agir na gestão do próprio interesse, seja para minorar os efeitos do sinistro, seja para resguardar a responsabilidade dos causadores do dano. Entre as ações para minorar o dano, incluem-se as despesas com contenção, salvamento, entre outros. As despesas de contenção são, por exemplo, execução de planos de emergência e contingência, monitoramento ambiental, coleta e disposição dos resíduos gerados, proteção das populações, entre outros, conforme a Resolução Conama 398/2002, que dispõe sobre o conteúdo mínimo do plano de emergência individual para incidentes de poluição por óleo.

Em um acidente envolvendo carga viva no Brasil[1], por exemplo, foram reconhecidas como despesas de contenção a limpeza de todas as praias, solos e corpos hídricos afetados com os cadáveres bovinos e o vazamento de óleo, para que a natureza possa estar totalmente livre da poluição causada pelo acidente. As despesas de salvamento são os gastos cobertos pela apólice com medidas adequadas e proporcionais que o segurado eventualmente realizar para evitar ou minorar os efeitos do sinistro, conforme expressa previsão do artigo 779 do Código Comercial. É o exemplo da remoção do casco naufragado e da carga ainda alojada na embarcação.

O segurado tem o dever de preservar o direito da seguradora de exercer a sub-rogação frente ao terceiro causador do dano. É vedado ao segurado praticar qualquer ato que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os efeitos da sub-rogação (artigo 786, parágrafo 2º), como seria uma transação com renúncia à responsabilidade por roubo de mercadorias seguradas, em troca da indenização do transportador pelos danos em mercadorias não seguradas. Também por esse mesmo fundamento, além de usual previsão contratual, o segurado não poderá decidir, sem a participação da seguradora (artigo 724 do Código Comercial), o destino a ser dado aos salvados, especialmente pela possibilidade de a seguradora ter que vir a participar do rateio dos custos e despesas de salvamento ou contenção (artigos 764, 772, 777 do Código Comercial; artigo 707 e seguintes do CPC/2015), em casos de avarias grossas, por exemplo.

Além de apenas preservar, o segurado tem também o dever, nascido da colaboração e da boa-fé (artigo 765 do Código Comercial), de garantir a eficácia da pretensão regressiva da seguradora. A previsão legal de sancionar com ineficácia os atos que diminuam ou extingam a sub-rogação pode ser suficiente para afastar os efeitos negativos dos atos comissivos do segurado, bastando suprimir seus efeitos em relação ao direito sub-rogatório, mas, para os atos omissivos, que geraram efeitos negativos pela inação do segurado, dificilmente haverá alguma utilidade em se cortar do mundo jurídico os efeitos de um não agir, como é o caso de não protestar ou não interpelar. Por isso, as condições gerais de contratação do contrato de seguro, como regra, estabelecem validamente a perda da garantia securitária caso o segurado não pratique atos de conservação e apoio ao exercício do direito de regresso da seguradora.

No transporte marítimo, com a participação de diversos agentes na cadeia, como armador, fretador, afretador, operador marítimo e portuário e agentes, entre outros, cada um com um regime jurídico próprio, é fundamental a abertura do Inquérito Administrativo sobre Acidente e Fato da Navegação (IAFN) para que possam ser identificados os possíveis responsáveis pelos danos causados. A comprovação dos prejuízos, nesse ramo, depende de atos formais, provas específicas, com reclamações feitas em prazos exíguos, sob pena de caducidade do direito indenizatório.

O segurado deve comunicar o acidente ou o fato à autoridade marítima, para que essa abra o IAFN (consoante determina a Lei 2.180/1954 e Normam 09), em até cinco dias contados da data do conhecimento do acidente ou fato da navegação, possibilitando a realização do exame pericial direto, sob pena de impedir a apuração dos fatos e até prejudicar a eficácia da pretensão regressiva do segurador.

Assim, apenas através da conclusão do IAFN e após o julgamento pelo Tribunal Marítimo será possível saber qual a real causa do acidente, estabelecendo o liame causal entre uma infração administrativa e o evento danoso, inclusive com base na suspensão do processo na Justiça comum, até que haja julgamento do acidente da navegação pelo Tribunal Marítimo, conforme determina o artigo 303, CPC/2015. Assim, para evitar perdas de direitos, é fundamental o segurado e a seguradora acompanharem o IAFN e o processo no Tribunal Marítimo.

O segurado deve empreender todos os esforços para não haver turbação no nascimento da futura sub-rogação legal e que ela possa ser exercida pela seguradora com eficácia, (a) fornecendo tempestivamente, para tanto, todas as informações e documentos relevantes que tenha disponíveis, necessários à determinação da causa, da natureza e da extensão do sinistro, quanto do possível causador do dano, como relatório de danos; perícia técnica; termo de avaria; carta protesto emitida pelo responsável do navio e vistoria, embora a Jurisprudência majoritária tenha superado esse item para nascimento da responsabilidade objetiva do transportador; (b) ratificação dos Protestos Marítimos e dos Processos Testemunháveis Formados a Bordo, previsto no CPC/2015, que deve ser realizada nas primeiras 24 horas de chegada da embarcação, para sua ratificação judicial; (c) prestando todas as declarações para as autoridades portuárias ou judiciárias que apurem as causas do acidente; (d) conduzindo ativamente e de forma diligente os procedimentos de apuração de responsabilidades administrativas na autoridade marítima e no Tribunal Marítimo; (e) ainda, caso haja indícios de se tratar de uma avaria grossa, é necessário identificar seus requisitos e, caso não haja consenso acerca da nomeação de um regulador de avarias, deverá ser instaurado o procedimento especial de regulação de avaria grossa (artigo 707, CPC/2015). Todo esse procedimento deve ser acompanhado pelo segurado em conjunto com a seguradora.

Ainda que o direito à sub-rogação nasça para a seguradora com o pagamento efetuado ao segurado, a ela é permitido, por lei ou contrato, realizar, em seu próprio nome, atos de conservação de seu futuro direito regressivo, como protestos (REsp 77.130/PR, rel. ministro Waldemar Zveiter), inspeções, acompanhamento de perícias e requerimentos administrativos aos eventuais responsáveis.

Como dito, uma vez sub-rogada, a seguradora veste-se da roupa do segurado e recebe dele todos os direitos, ações e pretensões que tiver contra o causador do dano. Se a relação jurídica entre segurado e transportador for de consumo, poderá a seguradora valer-se integralmente do CDC, como se consumidor fosse, inclusive prazos prescricionais e inversão do ônus da prova, conforme reafirmado recentemente pelo STJ.

A ação regressiva é o meio de a seguradora exercer em desfavor do causador do dano o direito recebido por sub-rogação. A seguradora deve comprovar que concretamente indenizou seu segurado por uma garantia contratual e cujo prejuízo está ligado por nexo causal ao ato ilícito do terceiro. O terceiro causador dos danos poderá exercer as mesmas defesas que teria em desfavor do credor primitivo, mas também impugnar a própria sub-rogação da seguradora, contestando, por exemplo, a inexistência de prova da indenização ou que ela não foi decorrente de fato coberto pelo seguro.

A seguradora poderá agir regressivamente em desfavor do causador do dano, para todas as despesas que suportou, não apenas com a indenização para o dono da carga, mas também por reembolso de gastos de salvamento ou rateios de custos e despesas de contenção, por exemplo.

Há diversos pontos de controvérsia do conteúdo e limites da sub-rogação. Não há consenso, por exemplo, sobre a transmissão da cláusula de eleição de foro pactuada entre credor primitivo e transportador, tendo o STJ, em antigo julgamento, restringido a sub-rogação unicamente para questões de direito material (REsp 1.038.607/SP, rel. ministro Massami Uyeda). Também parece ser nesse mesmo sentido o entendimento jurisprudencial quanto à convenção de arbitragem pactuada no transporte marítimo[2].

Também é controversa a possibilidade de a seguradora reembolsar-se em face do terceiro pelos gastos efetuados em seu próprio interesse para efetuar a regulação do sinistro, por tais despesas não guardarem relação direta de causa e efeito com o descumprimento do contrato de transporte coberto pela apólice contratada[3].

Assim, para que o segurado não perca seu direito à garantia securitária, é fundamental que atue com diligência, boa-fé e eficiência, prontamente comunicando a seguradora do sinistro conhecido e realizando todos os atos de preservação de seu próprio direito e o da seguradora, assegurando a esta o pleno exercício do direito à sub-rogação.


[1] Ação Civil Pública, Processo 35481-71.2015.4.01.3900, em trâmite na 9ª Vara Federal, Seção Judiciária do Pará.
[2] “A seguradora ao pretender direito de regresso contra suposto causador do dano não pode ser submetida obrigatoriedade ao Tribunal Arbitral, ainda que tenha se sub-rogado nos direitos de crédito de contratante de transporte marítimo que havia anuído com a cláusula compromissória”(TJES, Classe: Apelação, 024100055458, Relator: TELEMACO ANTUNES DE ABREU FILHO, Órgão julgador: QUARTA CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 10/11/2014, Data da Publicação no Diário: 26/11/2014).
[3] “A autora, ao pagar a indenização à sua segurada, sub-rogou-se no direito de crédito que esta teria contra o causador do dano, ou seja, a reparação dos danos causados em suas mercadorias, sendo a responsabilidade da ré "limitada ao valor constante do conhecimento" … “- Os gastos que a autora teve com a vistoria e com a regulação do sinistro não decorreram necessariamente do inadimplemento da ré” (TJ-SP – APL: 9066155852007826 SP 9066155-85.2007.8.26.0000, Relator: Álvaro Torres Júnior, Data de Julgamento: 15/08/2011, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 13/09/2011).

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