Opinião

Ilha de excelência no setor público, Cade deve ser modelo para agências reguladoras

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15 de maio de 2019, 7h05

No final de fevereiro, a OCDE aceitou o pedido de adesão do Brasil como membro permanente do Comitê de Concorrência da entidade. A aprovação seguiu mais de 20 anos de estreita colaboração entre a OCDE e o Cade, além de peer reviews (revisões por pares) que resultaram em relatórios detalhados nos anos de 2005, 2010 e 2019.

Os pares avaliaram em que medida as leis, instituições, políticas e práticas de aplicação da legislação concorrencial no Brasil estão em conformidade com os instrumentos de política concorrencial da OCDE. O relatório de 2019 concluiu que “o regime concorrencial no Brasil conta com fortes competências e instrumentos de persecução concorrencial”.

A aprovação da OCDE segue várias premiações internacionais. Entre outras, o Cade foi considerado a melhor agência antitruste das Américas em 2017 pela revista britânica GCR, e o Manual de Diligências de Busca e Apreensão Cíveis, produzido pelo Cade, foi agraciado com o prêmio de Best Soft Law pela revista francesa Concurrences.

Num momento em que tramita no Congresso Nacional a proposta de Lei Geral das Agências Reguladoras, cabe perguntar em que medida as agências reguladoras podem aproveitar e aprender com o sucesso do Cade.

Antes, vale ressaltar que, apesar de ser uma autarquia em regime especial, o Cade não é uma agência reguladora da concorrência. As agências reguladoras tratam de regulação setorial, incluindo em setores que carecem de concorrência, como os de monopólios naturais. Já o Cade é a autoridade de defesa da concorrência, agindo de modo transversal. Não é raro, aliás, que haja conflitos entre regulação setorial e políticas transversais, inclusive de competência. O exemplo mais emblemático disso foi a disputa entre o Cade e o Banco Central em atos de concentração e na defesa da concorrência no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, por quase 30 anos. A disputa foi resolvida no final de 2018, quando da assinatura do Ato Normativo Conjunto — que já foi testado, com sucesso, na análise da aquisição de parte da XP Investimentos pelo Itaú/Unibanco.

Talvez daí decorra a primeira lição, que é a de diálogo interinstitucional. Isso, para as instituições, aprimora o fluxo de informações e minimiza conflitos e sobreposições; e, para as empresas e indivíduos, aumenta a segurança jurídica e diminui custos de transação. O Cade permite, no processo concorrencial, a participação de terceiros, inclusive de agências reguladoras. E tem acordos de cooperação e de coordenação com ministérios públicos, órgãos de controle e agências reguladoras. Desse diálogo decorre, por exemplo, o protagonismo do Cade no combate à corrupção, sobretudo através de termos de compromisso de cessação de conduta derivados das investigações no âmbito da operação "lava jato".

Outra lição, e talvez a mais importante, é estar sintonizado, analisar e, na medida em que faça sentido para o Brasil, adotar as melhores práticas internacionais. O Cade atua em parceria estreita com autoridades de outros países e está engajado em instituições internacionais, como o próprio Comitê de Concorrência da OCDE e a International Competition Network. Com elas, o Cade troca experiências e avaliações. Aliás, foram os peer reviews da OCDE, de 2005 e 2010, que identificaram várias das áreas para aprimoramento que foram endereçadas, depois, pela Lei de Defesa da Concorrência de 2011.

O Cade conta com uma equipe exclusiva, técnica e profissional, tendo blindado-se de nomeações políticas e minimizado o risco de captura pelo governo e pelo mercado. O seu número de colaboradores, ao contrário da regra do serviço público, de redundâncias e ineficiências, é considerado baixo (baixo demais, segundo o relatório OCDE) quando comparado ao de seus pares ao redor do mundo. Ainda assim, em 2018 foram apreciadas quatro centenas de atos de concentração, com prazo médio de 30 dias de análise, contados da notificação até a decisão final — um dos menores prazos do mundo. Para assegurar celeridade, o Cade tem usado o mecanismo de “silêncio positivo”. Enquanto que no setor público as delongas e atrasos são comuns, o Cade, no seu Regimento Interno, assevera que o descumprimento de certos prazos implica a aprovação tácita do ato de concentração. O Cade está engajado na capacitação de sua equipe, inclusive através de curso de pós-graduação em Defesa da Concorrência e Direito Econômico customizado pela FGV, sob a coordenação do professor Gesner Oliveira e no qual colaboro.

O Cade é provavelmente um dos pioneiros na digitalização do setor público. Haja vista o Projeto Cérebro — um instrumento de data mining, isto é, coleta e análise de grandes volumes de dados à procura de padrões consistentes. O Cade tem usado o Cérebro para averiguar o comportamento de preços em casos de cartel e para identificar potenciais casos de conduta unilateral.

Outro ponto importante é que a governança e os processos de investigação e de decisão do Cade são transparentes e percebidos como justos. Ainda que dentro da mesma entidade, a superintendência-geral (SG, que investiga e instrui) e o tribunal (que julga) são órgãos distintos, separados fisicamente e por chinese walls. O Cade assegura amplo acesso e divulgação de leis, instituições, políticas, práticas e processos, em especial através de seu site. As sessões de julgamento do Tribunal do Cade são abertas ao público e transmitidas e disponibilizadas na internet. E, num país onde órgãos públicos com frequência vazam informações sensíveis, o Cade tem protegido dados de empresas e de indivíduos de modo exemplar.

O Cade também se diferencia por seu comprometimento com pesquisa e é frequentemente chamado a contribuir em discussões envolvendo projetos de lei e regulação em diversos setores. Em 2018, teve atuação destacada no âmbito da crise desencadeada pela greve dos caminhoneiros. Nesse contexto, o Cade apresentou, no Plenário da Câmara dos Deputados, o estudo “Repensando o setor de combustíveis: medidas pró-concorrência”, que contém nove propostas de debate acerca da matéria e que pautaram as discussões sobre o assunto ao longo do ano. O Departamento de Estudos Econômicos (DEE), dirigido por um economista-chefe, é órgão integrante do Cade, juntamente com a SG e o tribunal. Mais do que assessorar a SG e o tribunal na instrução e na análise econômica de procedimentos administrativos relacionados a atos de concentração e condutas anticompetitivas, cabe ao DEE elaborar estudos econômicos para garantir a atualização técnica e científica das decisões do Cade.

Por fim, o Cade tem tratado o dinheiro do contribuinte com os devidos rigor e parcimônia. O orçamento anual do Cade, desde a entrada em vigor da Lei de Defesa da Concorrência de 2011, tem sido da ordem de R$ 35 milhões. Em 2018, foi concedido um aumento considerável de R$ 20 milhões, resultado de discussões com o ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão e com o Congresso Nacional. Nessas discussões, o presidente do Cade, Alexandre Barreto, tratou de demonstrar que, para cada real investido em atividades de persecução concorrencial, havia um retorno de mais de 20 vezes o valor em multas e contribuições pecuniárias oriundas de acordos.

Agindo assim, o Cade tem impactado positivamente o mercado e a vida de consumidores brasileiros — que é, em última instância, a métrica pela qual se mede a efetividade de uma autoridade concorrencial. E, para repetir a conclusão do relatório da OCDE, “o Cade é considerado uma das entidades públicas mais eficientes no Brasil e seu posicionamento como uma das principais autoridades de concorrência, tanto regionalmente quanto a nível global, reforça a perspectiva nacional de que se trata de uma autoridade pública modelo”.

O Cade é uma ilha de excelência no setor público. E, como tal, deve ser um modelo para as agências reguladoras.

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