Opinião

Vulnerabilidade das cortes constitucionais diante dos outros Poderes e da sociedade

Autor

14 de maio de 2019, 6h32

1. Introdução
Qualquer reforma na estrutura predial do Supremo Tribunal Federal deve ser supervisionada pelo Iphan, para que não ocorra a descaracterização do bem cultural objeto de tombamento. Isso porque Oscar Niemeyer elegeu esse ícone como uma das 23 obras dignas de proteção.

Ocorre que, para além da proteção cultural, uma corte constitucional também precisa proteger sua reputação. Não raro, um tribunal deve proteger-se inclusive de si mesmo. A autofagia quanto aos próprios precedentes e o reiterado descumprimento da Constituição são elementos autodestrutivos.

As eleições presidenciais de 2018 geraram uma convulsão social. O pleito eleitoral foi marcado por sangue, suor e lágrimas. Na disputa democrática, 104.838.753 eleitores sufragaram seus candidatos no 2º turno. Às vezes, tudo isso é substituído por três ministros de uma turma do STF.

Esta insólita engenharia constitucional nem sempre é absorvida pela sociedade de maneira dócil. Philip Kurland, professor da Universidade de Chicago, referindo-se à função contramajoritária da Suprema Corte norte-americana, afirmou que “[s]eu caráter essencialmente antidemocrático a mantém em constante risco de destruição” (KURLAND, 1969. p. 20). John Hart Ely já descreveu que, “[n]o decorrer de toda a sua história, a Corte sempre ouviu o conselho de que, se não se ocupasse com seus próprios assuntos, correria o risco de ser destruída…” (ELY, 2016. p. 63). Exatamente por isso, a Suprema Corte desenvolveu, ao longo dos anos, uma jurisprudência defensiva que a permitiu esquivar-se de questões perigosamente controversas. Segundo Henry Monagham, professor da Universidade de Boston, esse comportamento preventivo “refletia uma intuição de que intervenções judiciais frequentes no processo político gerariam uma reação política tão ampla que o Tribunal seria destruído nesse processo” (MONAGHAN, 1973. p. 1366).

Em suma, embora isso não seja tão perceptível aos olhos quanto o fogo que consumiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro e a Catedral de Notre-Dame, a ciência revela que tribunais constitucionais também são instituições destrutíveis. Daí a importância de velar pela sua integridade, conservando-os.

Se é quase unânime que tribunais devem ser conservados e protegidos, há manifestas controvérsias sobre os meios para a consecução deste fim protetivo. Aparentemente, o STF não tem tido sabedoria quanto às maneiras escolhidas para se preservar como instituição, seja quanto à moderação, seja quanto à eficiência.

2. A vulnerabilidade dos tribunais perante outros Poderes e perante o corpo social
O Direito tem seus mistérios. Um deles é a influência da opinião pública sobre juízes e tribunais, um tema sempre atual e ainda enigmático. Ao contrário dos membros do Legislativo e do Executivo, os magistrados geralmente não dependem dos eleitores para se tornarem o que são, para continuarem onde estão e para terem o que têm. Apesar disso, curiosamente, estudos empíricos revelam que as cortes constitucionais estão cada vez mais preocupadas com a maneira pela qual os tribunais são vistos pelo povo.

Um ótimo exemplo é a Corte Constitucional da Indonésia (Mahkamah Konstitusi). Estatisticamente, esse tribunal é mais propenso a acolher pretensões deduzidas em juízo quando, no polo ativo da demanda, tem-se um litisconsórcio multitudinário ou inúmeras entidades coletivas. Pesquisas evidenciaram que, aumentando-se o número de demandantes de 1 para 2, a probabilidade de que a Corte Constitucional da Indonésia acolha o pedido se eleva em 2,87% (NARDIR, 2018. p. 149). Aumentando-se de 1 para 10, acentua-se para 13,8%. Um simples memorial de amicus curiae que se oponha à petição inicial tem poderes para diminuir em 6,6% a probabilidade de êxito da demanda. Em se tratando de três memoriais, as chances diminuem em 13,2%. Por fim, após a prisão de um dos juízes da Corte Constitucional da Indonésia, o índice de aprovação popular caiu de 65,5% para 28% (NARDIR, 2018. p. 161-162).

Todos esses dados revelam a hipersensibilidade da Corte Constitucional da Indonésia diante da opinião pública, o que não é uma constatação pontual. Hoje, praticamente todos os tribunais constitucionais se mostram sensíveis aos reclamos sociais e, em casos mais extremados, verdadeiros reféns da opinião pública.

Durante muito tempo, foi comum afirmar que o STF tinha “o direito de errar por último” ou o monopólio da “última palavra”. Afinal, tecnicamente, quando um ato administrativo viola a lei, o Judiciário pode efetuar o controle de legalidade, realizando uma sindicância dos atos do Executivo. Do mesmo modo, se uma lei viola a Constituição, é o Judiciário quem protagoniza o controle de constitucionalidade (que é coadjuvado por outros legitimados), logo, ele afere a validade dos atos do Legislativo. Porém, não há quem exerça o controle do Judiciário, a não ser um órgão que integra a sua própria intimidade estrutural: o CNJ. Mesmo assim, não existe controle sobre a atividade jurisdicional (MS 28.611 MC-AgR) e o STF não se sujeita ao crivo deste órgão (ADI 3.367/DF). Por tudo isso, à época, concluiu-se que o Judiciário brasileiro controlava, mas não era controlado. Vigiava, mas não era vigiado. Invalidava, mas não era invalidado.

Os tempos mudaram.

Hoje, já se sabe daquilo que, durante anos, foi um segredo guardado a sete chaves: tribunais são extremamente vulneráveis perante os demais Poderes e perante o corpo social.

Na primeira vez que a Corte Constitucional da Rússia declarou a inconstitucionalidade de um decreto presidencial, Boris Yeltsin hesitou em obedecer a essa decisão. Somente após ser persuadido pelo presidente da corte, o chefe de Estado respeitou o que restou decidido (FONTELES, 2019. p. 95). O que seria da Corte Cons­titucional da Rússia se Yeltsin não a tivesse obedecido? A profecia trovejante de Alexander Hamilton teria se concretizado (Federalista 78):

“[…] o poder judicial será sempre o menos perigoso […]. O Exe­cutivo […] empunha a espada da comunidade. A legislatura […] prescreve as normas pelas quais se devem regular os deveres e direitos de todos os cidadãos. O judicial, pelo contrário, não tem nenhuma influência sobre a espada ou sobre a bolsa; nenhuma condução da força ou da riqueza da sociedade; e não pode tomar nenhuma resolução activa, seja ela qual for. Pode ser dito com verdade que não tem Força nem Vontade, mas apenas juízos”.

Hamilton não tinha dons premonitórios, mas seu vaticínio foi atemporal. Suas palavras continuam atuais, revelando a fragilidade dos Tribunais.

Quando uma corte constitucional toma a iniciativa em te­máticas sensíveis, “assume-se um risco de não ser acompanhada pelo Parlamento (ou pelo Executivo), o que ocorreu, por exemplo, no Brasil. A questão remete ao estudo da Teoria do Intervalo da Tolerância, por força da qual há um limite suportável nas relações interinstitucionais. Rompido esse limite, calculando-se os custos e benefícios de uma reação, poderá haver uma dura resposta por parte dos demais Poderes” (FONTELES, 2019. p. 130).

Desde 1990, as cortes constitucionais da América Latina têm sofrido uma média aproximada de 11 ataques a cada cinco anos (HELME & STATON, 2009). A eliminação propriamente dita de um tribunal não é algo usual, mas pode ocorrer. Um exemplo seria o colapso da primeira Corte Centroamericana de Justiça (MADSEN, CEBULAK & WIEBUSCH, 2018. p. 19). Na América Latina, é possível mencionar a dissolução da Corte da Venezuela, em 1999. No continente africano, a suspensão do Tribunal da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), após decisões controversas que envolveram o Zimbábue (FONTELES, 2019. p. 30). Entretanto, mesmo quando uma instituição não é destruída, muitas ações nocivas podem ser praticadas para reduzir ou esvaziar a sua autoridade, a saber:

  • Impeachment de juízes
    Em Watkins v. United States e Sweezy v. New Hampshire, a Suprema Corte dos Estados Unidos limitou os poderes das comissões parlamentares de inquérito e julgou favoravelmente ao direito de não autoincrimina­ção. Como resposta, parlamentares conservadores declararam que deflagrariam um processo de impeachment contra todos os juízes que integraram a maioria vencedora (FONTELES, 2019. p. 90). No Peru, juízes também sofreram impeachment, no ano de 1997. No Brasil, em 2018, mais de 80% dos pedidos de impeachment dos ministros do STF haviam sido protocolizados após 2015, sinalizando uma recente e explosiva tendência.
  • Aposentadorias compulsórias de juízes
    Em 1969, o AI-5 aposentou compulsoriamente três ministros do STF, estabelecendo a impossibilidade de apreciação judicial (FONTELES, 2019. p. 98). Na Hungria, reduzindo-se a idade de aposentadoria dos juízes de 70 para 62 anos, o governo removeu quase todos os presidentes dos tri­bunais. Na Polônia, o Partido Lei e Justiça reduziu a idade de aposentadoria, que era de 70, para 65 anos, o que atingiu Malgorzata Gersdorf, presidente da Suprema Corte polonesa. A juíza recusou-se a migrar para a inatividade e, desafiando a norma jurídica que a aposentou, passou a comparecer diariamente ao seu gabinete (FONTELES, 2019. p. 98). No Brasil, a proposição da parlamentar Bia Kicis promove a revogação da PEC da Bengala, visando ao retorno da idade de aposentadoria dos ministros do STF para 70 anos, em nome de uma pretensa "oxigenação da suprema corte".

Muitos outros exemplos podem ser fornecidos para ilustrar ações nocivas que reduzam ou esvaziem a autoridade dos tribunais. Autores do constitucionalismo popular (Larry Kramer, Mark Tushnet e Jeremy Waldron) chegaram a sustentar a possibilidade de congressistas promoverem cortes no orçamento do Judiciário, reações legislativas que destruam precedentes hostilizados etc. Uma onda de desobediência civil também pode esvaziar o prestígio de um tribunal (v.g Roe v. Wade – 1973), assim como a insubordinação de agentes públicos pode retirar a autoridade jurídica das suas decisões (v.g Brown v. Board of Education – 1954). No Brasil, a iminente “CPI da lava toga” tem desempenhado esse papel.

Todo esse processo degenerativo, que é meramente exemplificativo, tem um início muito claro: críticas mordazes. “As críticas são como uma faísca na opinião pública, que pode ou não incendiar-se, evoluindo para outras etapas de hostilização” (FONTELES, 2019. p. 79). Quando as críticas não iniciam esse processo degenerativo, pelo menos sinalizam a sua ocorrência.

3. Mecanismos contrarreativos ou autoimunes
Em um passado não tão remoto, a sociedade se voltava contra o Executivo e o Legislativo, os Poderes mais políticos da República. A partir do momento em que cortes constitucionais judicializaram a política (ou politizaram a jurisdição), o eixo do alvo foi deslocado para contemplá-las também.

Nos anos de 2017 e 2018, a Corte Constitucional da Geórgia (Leste Europeu) descriminalizou o uso da maconha. A medida foi considerada ousada no universo de países que integraram o bloco soviético, que ainda criminalizam essa conduta. O resultado foi imediato. Simplesmente, eclesiásticos passaram a defender publicamente a extinção do tribunal. O líder da Igreja Ortodoxa da Geórgia, Elias II, declarou que a decisão foi subjugada por pressões políticas e que essa militância traduzia o exercício de uma hostilidade contra a nação. O primeiro-ministro enfatizou que medidas rápidas seriam necessárias para estabelecer um estilo de vida saudável no país e criar novos centros de reabilitação para viciados. O ministro do Trabalho e da Saúde observou que a decisão criou uma realidade negativa no país e conclamou reações legislativas, bem como providências do Executivo. A presidente da Comissão de Educação, Ciência e Cultura do Parlamento asseverou que a decisão colocou a sociedade em “alto risco” (FONTELES, 2019. p. 163-164).

Ante o perigo institucional e o desprestígio causados pelo backlash, a própria Corte Constitucional da Geórgia saiu em socorro de si mesma, emitindo uma nota pública para justificar sua decisão e esclarecer a sociedade. No documento, o tribunal classificou as críticas como infundadas e admitiu que elas podem afetar a credibilidade da corte, lançando dúvidas quanto à independência do órgão. Após refutar as críticas, o tribunal reconheceu que elas podem gerar um dano à sua autoridade (FONTELES, 2019. p. 163-164).

Portanto, alguns tri­bunais estão expedindo notas públicas justificadoras das suas decisões, como uma maneira de tentar proteger a credibilidade da instituição e a reputação dos seus juízes. Isso foi feito não apenas pela Corte Constitucional da Geórgia, mas também é uma prática da Corte Cons­titucional da Romênia (FONTELES, 2019. p. 79).

O STF trilhou um caminho mais excêntrico e menos sábio. Como mecanismo protetivo (e contrarreativo) para blindá-lo do backlash, instaurou o Inquérito 4.781 (GP 69/2019), para apurar fatos que atinjam a sua honorabilidade, no bojo do qual incluiu a revista Crusoé e O Antagonista no Index Librorum Prohibitorum, bloqueou perfis em redes sociais e confiscou aparelhos eletrônicos. As medidas foram classificadas por Celso de Mello como uma “perversão da ética do Direito”, ao passo que Marco Aurélio cunhou de “mordaça”.

Em reforço, o presidente do STF cancelou a sessão plenária de julgamentos, que tradicionalmente ocorre nas quartas e quintas-feiras, para dar lugar a uma solenidade onde recebeu um documento intitulado “Manifesto em Apoio ao Supremo Tribunal Federal”. O manifesto explicita um “repúdio aos ataques que a instituição e seus ministros têm sofrido”, deixando leões serem defendidos por ovelhas. Percebendo essa obviedade, o ministro Marco Aurélio não participou da sessão e questionou: “O Supremo precisa de desagravo? Não me sinto agravado e observo a liturgia do Tribunal”. Para piorar este cenário, a PGR promoveu o arquivamento do inquérito, em 16 de abril, data em que o STF, contrariando sua construção pretoriana (PET 2.509/MG), indeferiu o que julgou ser um pedido, e não um aviso.

O procedimento inquisitorial não respeitou sequer o regimento interno. Diante de uma eventual infração penal ocorrida nos átrios do Supremo Tribunal Federal, desde que o ilícito envolva pessoa com foro por prerrogativa de função na corte, será possível que a corte instaure um inquérito vocacionado a coligir elementos de autoria e materialidade (artigos 13, I e 43 e ss. do RISTF). No inquérito instaurado pelo STF, o critério foi a vítima, não o infrator. De mais a mais, onde se lê “na sede ou dependência do Tribunal”, entendeu-se “em todo o território nacional”. Coroando o desacerto, de maneira não aleatória, designou-se Alexandre de Moraes como relator do expediente.

Afigura-se desnecessário convencer quem quer que seja acerca da ilicitude do Inquérito 4.781. Somente porque vivemos uma época em que obviedades precisam ser explicitadas, registre-se: o inquérito foi instaurado inconstitucionalissimamente. Eles, os ministros, sabem disso. Nós sabemos que eles sabem. Eles sabem que nós sabemos que eles sabem.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!