Opinião

Quebra de sigilo de Queiroz e Bolsonaro é rede de pesca investigativa

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14 de maio de 2019, 18h53

A divulgação da recente medida judicial de quebra de sigilo bancário e fiscal nas investigações contra Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz chamou atenção pela dimensão temporal e pela envergadura espacial. Além de aprofundar no tempo a busca por informações bancárias até o ano de 2007, a medida judicial abrange quase uma centena de pessoas físicas e jurídicas. Além dos protagonistas do imbróglio e de outros alvos que naturalmente encontram-se na mira das autoridades investigantes, a partir dos dados revelados pelos relatórios do Coaf, outras pessoas e empresas que não foram citadas nos ditos relatórios transformaram-se em alvos. Muitos pelo mero fato de terem sido empregadas no gabinete do então deputado estadual, em períodos anteriores aos destacados nos relatórios que deram origem às investigações.

A quebra de sigilo fiscal e bancário acaba, por mais das vezes, tornando-se o caminho natural em investigações que envolvem alguma forma de tramitação de numerário e a implementação dessas medidas probatórias, mais cedo ou mais tarde durante as investigações, não têm sido excepcionais. Em que pese a base de sustentação do direito ao sigilo de dados encontrar-se no interior de um direito fundamental (art. 5º, X da Constituição), doutrina e jurisprudência têm justificado a supressão judicial debaixo de um rol cada vez mais elastecido de circunstâncias e pretextos. Entretanto, o que se divulgou, quanto à dimensão da quebra de sigilo, revela uma transposição exótica dos limites do razoável.

A Lei Complementar 105/2001 não limita a extensão, no tempo e no espaço, da supressão de sigilo bancário. Entretanto, como a quebra do sigilo dos dados bancários é autorizada para a apuração de determinados crimes, sua decretação está vinculada aos limites que a autoridade investigante deve estabelecer para apurar os fatos. Vale dizer que a autoridade responsável pela investigação, mesmo podendo agir de ofício, ao ter conhecimento de um fato criminoso, deve encaminhar a investigação a partir de um núcleo de fatos que se pretende apurar como existentes ou não, bem como os seus responsáveis. Uma investigação não parte de um pressuposto genérico. Um inquérito não pode ser induzido pela suspeita (que hoje a moderna criminologia e os sistemas penais democráticos soterraram) de que o cidadão investigado conduziu toda sua vida na prática do crime, ou que arregimentou para a prática de ilícitos todas as pessoas com que teve negócios na vida.

É por isso que desde o abandono da técnica das “devassas gerais”, onde o magistrado poderia investigar até mesmo eventos que sequer eram objeto de suspeita, o sistema processual atual exige uma delimitação mínima do objeto a ser apurado.

No entanto, em contraste ao que deveria ser o espírito inspirador de qualquer investigação, consta que os indícios apontados pelo Coaf têm uma limitação temporal e espacial muito menores do que a quebra determinada pelo Judiciário carioca. Os eventos a investigar, a partir dos indícios iniciais, tem uma certa delimitação: os relatórios dariam conta de que num período determinado, Fabricio, o assessor do então parlamentar estadual, evidenciava uma movimentação financeira incompatível com seus rendimentos, movimentação substancialmente composta por depósitos em dinheiro em sua conta bancária, eventos que são investigados como uma possível “devolução” ou “rachadinha” de salários de servidores do legislativo, em favor do então deputado.

Tratam-se de fatos que emergem a partir de uma circunferência temporal e espacial delimitadas e, se as operações ditas suspeitas teriam ocorrido, segundo o Coaf, a partir de 2014, não há sentido em se determinar uma quebra de sigilo em períodos anteriores (e mesmo, como no caso, muito anteriores) aos que foram reportados.

Do mesmo modo, se nesse período, abrangido pelos reportes do Coaf, é possível delimitar o número de beneficiários de depósitos considerados suspeitos, não há o menor sentido em quebrar o sigilo de todo e qualquer funcionário do gabinete, de seus familiares, de empresas a eles vinculadas, tudo num encadeamento que pode levar ao infinito. Afinal, se há um ponto de partida que permite delimitar-se desde logo os suspeitos de práticas ilícitas, a quebra deveria recair, num primeiro momento, sobre esses suspeitos, abrangendo-se o leque apenas se identificados, a partir da primeira análise, novas operações indicativas de crime.

O que aconteceu decorre de uma lógica próxima à dos mandados de busca e apreensão coletivos ou das escutas telefônicas de mera prospecção, que investigam primeiro para descartarem a evidência depois, a critério da autoridade investigante.

Quando isso ocorre, além da nulidade causada pela falta de delimitação do objeto da investigação, evidencia-se o risco de nulidade, por ausência de fundamentação, da própria decisão que deferiu as quebras, pois não se pode aceitar, no atual regime constitucional, que a supressão do direito fundamental ao sigilo fique à mercê de uma rede de pesca probatória, sem que sejam indicados, para cada alvo (e é improvável que exista fundamentação individualizada, dada a quantidade de pessoas físicas e jurídicas atingidas) evidências que demonstrem a necessidade de se proceder com essa medida investigatória.

A expectativa de quem torce pela prevalência do Estado Democrático de Direito é que decisões com esse nível de abrangência sofram um escrutínio severo do próprio Poder Judiciário, para evitar-se que a vulgarização desses meios investigativos mais graves, como os que se referem a sigilo de dados, tornem-se um instrumento de inversão de uma metodologia investigativa que deveria aproximar-se dos preceitos constitucionais.

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