Contas à Vista

É proibido proibir: notas sobre o bloqueio de verbas para a educação

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

14 de maio de 2019, 8h05

Spacca
O objetivo desta coluna é analisar se é possível fazer contingenciamento das verbas com educação no Brasil atual. Trata-se de uma análise jusfinanceira envolvendo prioritariamente a Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Não serão abordados aspectos sobre a importância da educação para a sociedade — o leitor será aqui poupado em prol do ponto central sob análise; para esse assunto, relevantíssimo, muitos textos qualificados já foram escritos, aos quais deve se dirigir o leitor interessado.

A Constituição estabeleceu uma espécie de federalismo educacional determinando que os municípios atuem prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil (artigo 211, parágrafo 2º), e determinou também que os estados e o Distrito Federal atuem prioritariamente no ensino fundamental e médio (artigo 211, parágrafo 3º). À União cabe organizar o sistema federal de ensino, financiando as instituições de ensino públicas federais e exercendo a função redistributiva e supletiva em matéria educacional, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos demais entes federados (artigo 211, parágrafo 1º), de forma colaborativa (artigo 211, caput).

Para dar conta desse rol de atribuições, a Constituição obrigou a União a aplicar anualmente em educação pelo menos 18% de toda sua receita de impostos. Os demais entes federados têm que aplicar nunca menos de 25% sobre a mesma base de cálculo, acrescida das transferências obrigatórias que forem recebidas (artigo 212). Trata-se do federalismo financeiro educacional, contrapartida necessária às atribuições acima descritas.

A vinculação financeira dessas receitas às despesas com educação é uma exceção ao princípio da liberdade orçamentária do legislador (artigo 167, IV, CF) e é uma cláusula pétrea constitucional (artigo 60, parágrafo 4º, IV), pois quem impõe a obrigação deve também dar os meios, e, em face da importância da educação para o país, o constituinte estabeleceu fontes perenes e protegidas para seu financiamento.

Considere-se que a vinculação financeira das verbas para educação é um patamar mínimo de financiamento obrigatório, podendo o Poder Legislativo, de cada nível federativo, estabelecer valores superiores para essa espécie de investimento em pessoas, ou, como se diz nos dias atuais, em capital humano.

Pois bem, estamos em uma crise que se iniciou em por volta de 2015/2016 e persiste, a despeito dos muitos esforços dos diversos governos federais durante esse período. Logo, o lençol orçamentário encurtou e, portanto, é a hora das escolhas difíceis[1], dentre elas as de cortar os gastos ou aumentar a dívida ou aumentar a arrecadação. Concentremo-nos apenas nos gastos, objeto desta análise.

Antes de singelamente cortar os gastos, as normas determinam que se deve contingenciar. Isso porque o orçamento é uma lei, aprovada pelo Poder Legislativo, e que deve ser respeitada. Logo, o Poder Executivo não pode cortar, pode contingenciar.

Contingenciar significa limitar empenhos e movimentação financeira e pode ocorrer a cada bimestre, caso a receita prevista não comporte o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais (artigo 9º, caput, da Lei de Responsabilidade Fiscal). Ou seja, há um telos, que é o cumprimento das metas estabelecidas para o pagamento da dívida pública, o qual, se ameaçado pela queda na arrecadação, pode ensejar o contingenciamento, segundo critérios fixados pela Lei de Diretrizes Orçamentárias. Só esse fato já seria suficiente para ficarmos de cabelos arrepiados, pois implica em subordinar todos os compromissos sociais e civilizatórios do país ao pagamento do serviço da dívida pública — o que já foi objeto de muitos textos[2]. Registre-se que só pode ocorrer o contingenciamento se as receitas estiverem em queda, o que não foi ainda comprovado. Porém, ultrapassemos esse ponto lastimável e prossigamos na análise objeto deste texto.

O precioso e raro leitor que conseguiu ler com atenção até este ponto deve se alegrar, pois chegamos ao aspecto central do assunto. Está no parágrafo 2º do artigo 9º, da LRF:

§2º Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.

Limpando o texto acima, lê-se: não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente.

Em síntese: a Constituição obriga a União a organizar o sistema federal de ensino, financiar as instituições de ensino públicas federais e exercer a função redistributiva e supletiva em matéria educacional, tudo conforme o artigo 211 da Constituição, acima descrito. Ou seja, esta é uma obrigação constitucional do ente federado União, que não pode ser contingenciada — ou, no jargão, “não pode ser objeto de limitação”.

Eis o ponto. Esse parágrafo da Lei de Responsabilidade Fiscal impede que seja feito o contingenciamento dos gastos com educação, pois ele se constitui em obrigação constitucional da União. As escolhas difíceis decorrentes do encurtamento do lençol orçamentário não podem alcançar os gastos com educação, pois eles não podem ser contingenciados, conforme a Lei de Responsabilidade Fiscal. Simples assim.

Seria possível perguntar: e as demais obrigações constitucionais, tais como alimentação, trabalho, moradia, lazer, transporte e outras constantes do artigo 6º da CF? Não são também obrigações constitucionais dos entes federados? Sim, sendo que também estão protegidas pela LRF. Ocorre apenas que os gastos com educação e saúde são duplamente protegidos, pois possuem fonte própria de financiamento mínimo estabelecida na Constituição e, como tal, estão inseridos na proteção das cláusulas pétreas, por força do artigo 60, parágrafo 4º, IV, CF. Porém, o que exceder o mínimo deve constar da Lei Orçamentaria Anual, sendo também protegido, pois se configura em obrigação constitucional da União e obrigação legal para aquele exercício.

Façamos um paralelo com o que foi feito durante o governo Temer com as receitas da Justiça do Trabalho. Naquele caso não foi feito contingenciamento, mas verdadeiro corte das verbas pleiteadas, pois estas sequer foram alocadas na Lei Orçamentária Anual. O Congresso não aprovou as verbas no montante que a Justiça havia projetado, e, com isso, os valores foram efetivamente cortados, antes de se transformar em lei. O sufocamento financeiro foi feito pelo Poder Legislativo. É solar a diferença, pois, no caso educacional, o montante financeiro é protegido pela Constituição, foi aprovado pela Lei Orçamentária Anual, e o contingenciamento está sendo realizado pelo Poder Executivo sobre parcelas que não podem ser contingenciadas, na forma do artigo 9º, parágrafo 2º, LRF. Aqui, o sufocamento financeiro está sendo irregularmente feito pelo Poder Executivo, ao arrepio da Constituição, da LRF e da LOA.

No caso, há prevalência da Constituição sobre as leis, pois o financiamento educacional é protegido constitucionalmente, não só no nível mínimo, mas também pelo que o Poder Legislativo tiver alocado além do mínimo, uma vez que, em ambos os casos, se trata de uma obrigação constitucional da União. Afinal, qualquer primeiro-anista de Direito sabe que a Constituição vale mais do que as leis (decisão colegiada do Poder Legislativo), e estas valem mais do que os decretos (decisão isolada do chefe do Executivo), sendo estes os instrumentos jurídicos através dos quais são feitos os contingenciamentos. Há uma prevalência das normas da Constituição sobre as do Poder Legislativo, e destas sobre as normas do Poder Executivo.

O papel do STF é exatamente este: proteger a Constituição de ataques, venham de onde vierem, inclusive dos governos — quaisquer governos, seja qual for o período e o território federativo —, bem como do Poder Judiciário, e das influências públicas ou privadas que podem perverter sua interpretação, o que inclui a voz rouca das ruas e a das redes sociais. É necessário que o STF proteja a Constituição, pois é ela que nos une em patamares mínimos de convivência civilizatória e contra os arbítrios.

Quem, no STF, cumprirá o icônico papel que Daniel Cohn-Bendit exerceu nas manifestações de maio de 1968 em Paris, onde uma das palavras de ordem era "é proibido proibir"?


[1] Sobre o tema, pautado pela obra de Guido Calabresi e Phillip Bobbitt, Tragic Choices, porém com enfoque de direito financeiro, ver meu livro Orçamento Republicano e Liberdade Igual, item 3.4.1.
[2] Ver, por todos: https://www.conjur.com.br/2016-nov-29/contas-vista-vale-constituicao-ou-anexo-metas-fiscais-lrf.

Autores

  • Brave

    é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará (UFPA).

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