Opinião

Vejam como os punitivistas são, mesmo, abolicionistas!

Autor

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

13 de maio de 2019, 7h47

O resumo deste artigo pode ser assim: “Os Punitivistas tem feito mais pelo Abolicionismo que os próprios abolicionistas ou O Novo Fiasco: decreto para proteger o 'cidadão de bem', na verdade protege o 'bandido'”.

Tornou-se lugar comum fazer patacoadas legislativas. O legislador brasileiro (inclua-se, claro, o poder legiferante do Poder Executivo) faz em prol de um ideal punitivista que procura a solução para a criminalidade, mais ou menos o que se poderia passar com um biólogo que buscasse compreender o comportamento dos ratos assistindo aos filmes do Mickey. Enfim, fazer o quê…

Já se verificou aqui que o aumento da pena trazido pela Lei 13.330/2016 — nova qualificadora (2 a 5 anos) do crime de furto de semoventes — na realidade operou verdadeira causa de privilégio, em razão de que o abigeato normalmente se dava em situações que já configuravam a qualificadora original, cuja pena era de 2 — 8 anos. O mesmo, nestes casos, se diga da receptação.

Também já se apontou o grande fiasco da Lei 13.654/18 que tinha como propósito declarado fixar um aumento de pena em dois terços para os casos de roubo realizado com emprego de arma de fogo, entretanto, retirou a circunstância majorante do crime de praticado com uso de arma imprópria ou arma branca. Há casos de condenados que tiveram penas reduzidas em até 3 anos e 4 meses.

Os exemplos seriam muitos, e não seriam matéria pra escrever artigos de tão comuns, mas a capacidade nesta seara parece inesgotável, como muito bem demonstrou o presidente Jair Bolsonaro que, no afã de aumentar a segurança do que chama de “cidadão de bem”, permitindo que este porte armas antes de uso restrito das forças de segurança pública, concedeu indulto parcial a muitas das pessoas que foram condenadas por portar ou possuir ilegalmente alguma das armas de fogo à época de uso restrito.

Explica-se.

O Decreto 9.785/2019 tornou permitidas armas que antes eram de uso restrito, operando uma alteração na tipificação que tem forte repercussão jurídica na seara penal — que no jargão penal se chama emendatio libelli — , desclassificando condutas mais graves para condutas menos graves, consequentemente, tornando urgente a revisão da pena de — quiçá — centenas de processos para diminuir o tempo de condenação ou relaxar a prisão preventiva decretada que agora se tornou ilegal por ausências dos requisitos [1].

Antes, a pessoa estava denunciada (ou condenada) na conduta tipificada no caput do artigo 16 da Lei 10.826/2003, cujas penas em abstrato variam de um mínimo de três a um máximo de seis anos, mas agora, com a ampliação do rol de armas de fogo permitidas, que incluem armas antes classificadas como de uso restrito, se a conduta incriminadora era a de portar a arma, pode passar a ser tipificada no artigo 14 da lei (porte de arma permitida), cuja pena mínima é de dois, e a máxima é de quatro anos; ou, se a conduta incriminadora era a de possuir na residência a arma, pode passar a ser tipificada no artigo 12 da lei (posse de arma permitida), acarretando uma alteração ainda mais drástica, pois a moldura penal varia de um mínimo de um ano a um máximo de três anos.

Trata-se de Novatio legis in mellius!

Assim, na hipótese de a conduta do agente estar tipificada no caput do artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, ou seja, unicamente ligada ao porte ou à posse da arma de uso restrito que passou a ser permitida, temos:

1. Caso seja posse a conduta incriminadora e o processo esteja tramitando na 1ª instância, a acusação sofrerá imediata desclassificação para o artigo 12 da Lei 10.826/2003, o que implicará a necessidade de intimação do representante do Ministério Público para a análise do oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo, uma vez que a pena mínima do crime é igual a um ano. Caso esteja preso preventivamente, deverá imediatamente ser reanalisada sua prisão, pois não mais subsiste a hipótese do artigo 313, I, do Código de Processo Penal. Trocando em miúdos, o acusado precisa ser imediatamente posto em liberdade.

2. Caso seja porte a conduta incriminadora e o processo esteja tramitando na 1ª instância, a acusação sofrerá imediata desclassificação para o artigo 14 da Lei 10.826/2003, e estando o acusado preso preventivamente, deverá imediatamente ser reanalisada sua prisão, pois não mais subsiste a hipótese do artigo 313, I, do Código de Processo Penal e, na falta de outro requisito, ser posto em liberdade.

3. Caso seja posse a conduta incriminadora, e o processo esteja em grau de recurso, o Relator deverá imediatamente operar a desclassificação para o artigo 12 da Lei 10.826/2003, o que implicará a necessidade de baixar os autos em diligência ao primeiro grau para se oportunizar a proposta de suspensão do processo pelo representante do Ministério Público de primeiro grau, uma vez que a pena mínima do crime é igual a um ano. Caso esteja preso preventivamente, deverá imediatamente ser reanalisada sua prisão, pois não mais subsiste a hipótese do artigo 313, I, do Código de Processo Penal, provavelmente devendo ser imediatamente posto em liberdade [2].

4. Caso seja porte a conduta incriminadora e o processo esteja em grau de recurso, deve-se de logo, em decisão interlocutória, operar a desclassificação para o artigo 14 da Lei 10.826/2003, pois implica muitas questões processuais[3], como o trâmite prioritário, e, estando o acusado preso preventivamente, o Relator deverá imediatamente reanalisar sua prisão, pois não mais subsiste a hipótese do artigo 313, I, do Código de Processo Penal, também urgindo o relaxamento de sua prisão.

5. Se já houver condenação, competente será o juízo da execução para a aplicação da lei mais benéfica, entendimento sumulado no STF, conforme o enunciado 611, verbis: transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao Juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna. Nesta hipótese, o magistrado deve reorganizar a dosimetria, desta feita partindo da pena mínima de um ano ou  dois conforme seja o artigo 12 ou 14, respectivamente.

Importantíssimo perceber que a desclassificação do tipo penal do artigo 16 para o artigo 12 ou artigo 14, desnatura a hediondez, alterando questões como possibilidade de concessão de fiança, tempo do livramento condicional e de progressão de regime, possibilidade e tempo de prisão temporária, entre outros.

Em todos os casos o magistrado deve estar atendo ao decurso do prazo, e verificar a ocorrência da prescrição, pois sofreu brusca alteração de 8 para 4 anos, ou até para 2 anos. Se o réu era menos de 18 anos na data do fato ou se maior de 70 ao tempo da sentença o prazo diminui pela metade.

As questões que envolvem criminalidade, (im)punidade, reincidência e segurança pública exigem muito mais do que a utilização do senso comum, entretanto, as soluções são sempre as mesmas: criminalização de mais condutas [4], elevações das penas de condutas já criminalizadas [5], propostas de endurecimento nas regras de progressão de regime, restrições às hipóteses de indulto e comutação de penas no decreto presidencial, inclusão de novos tipos penais no rol de crimes hediondos, ampliação da execução provisória (antecipada? Imediata?) da pena privativa de liberdade automaticamente após o segundo grau (aqui) ou, ainda, para as condenações ainda não transitadas em julgado, tudo amplamente divulgado pela imprensa.

Não se percebe que estas “soluções” estão sendo adotadas há anos, e o panorama só se tem agravado. O número de presos no ano de 2000 era de 232.755, enquanto que, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias realizada em junho de 2016 e publicado em dezembro de 2017, o Brasil conta atualmente com mais de 726.712 pessoas encarceradas, no levantamento anterior, de dezembro de 2014, existiam 622.202 presos.

As soluções para estas questões dotadas de extrema complexidade são, muitas das vezes, completamente contra intuitivas.

Veja-se como funciona o sistema prisional de países como Noruega, em que Estado foi condenado em processo movido pelo atirador Anders Behring Breivik, em razão das condições desumanas a que estava submetido na prisão, dentre elas o regime de isolamento que permanece há cerca de 5 anos. A Holanda passa por uma grave crise penitenciária, pois sobram celas e faltam condenados. O número de pessoas atrás das grades na Holanda diminuiu drasticamente em dez anos, passando de 14.468 em 2005 para 8.245 em 2015. Lá os presos podem andar “à vontade por áreas comuns como biblioteca, departamento médico e cantina, e essa autonomia os ajuda na readaptação à vida em liberdade”[6]. OK, lá é primeiro mundo. Mas, precisa transformar o nosso sistema em masmorra medieval?

Ou seja, aqui o Estado Inconstitucional de Coisas que caracteriza o sistema prisional foi reconhecido na ADPF 347/DF, em 9/9/2015, determinando, inclusive, que todos os Tribunais do Brasil realizassem audiências de custódia em até 24 horas. De lá para cá estas “coisas” não mudaram, como se pode ver aqui aqui e aqui.

É, caríssimo liberal econômico, caríssimo punitivista penal, caríssimo conservador cultural-dos-costumes, é bom todos vocês saberem que o Presidente que pregava contra o indulto [7] e quejandos, acaba de conceder indulto parcial a muitas das pessoas que foram condenadas por portar ou possuir ilegalmente alguma das armas de fogo de uso restrito.

É o que lapidarmente significa o adágio popular: quis fazer um giro e fez um jirau.

Moral da história: Tem muito punitivista Brasil a fora fazendo mais pelo Abolicionismo pelo do que os próprios abolicionistas.

E, ainda, uma pergunta: quem estaria assessorando o(s) presidente(s) para fazer(em) esse tipo de “abolicionismo”? A ver.


1 Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;

2 STJ HC 8033/SP, TJ PR APELAÇÃO CRIMINAL ACR 2526672, TJDF EMBARGOS DE DECLARAÇÃO 1903398

3 Por exemplo, retira a prioridade de tramitação em razão da hediondez prevista no CPP (Art. 394-A. Os processos que apurem a prática de crime hediondo terão prioridade de tramitação em todas as instâncias.)

4 Projeto de Lei 4.850/2016.

5 Lei Nº 13.330/2016 – ver MOREIRA, Rômulo de Andrade ROCHA, Jorge Bheron. Direito Penal das Castas: a solução tupiniquim de como piorar os problemas. Disponívem em: <http://emporiododireito.com.br/direito-penal-das-castas-a-solucao-tupiniquim/>. Acesso em: 10 abr. 2018.

6 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-37966875

7 https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/11/28/bolsonaro-diz-no-twitter-que-nao-concedera-indulto-para-presos-em-seu-governo.ghtml

Autores

  • Brave

    é defensor público do estado do Ceará, professor de Direito e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Constitucional.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!