Rigor seletivo

Lista tríplice da ANPR criou establishment para proteger a si próprio no MPF

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12 de maio de 2019, 7h00

Spacca
O subprocurador-geral da República Augusto Aras quer ser procurador-geral da República. Mas da forma que a Constituição manda: se for da vontade do presidente da República nomeá-lo, que assim seja. A votação de uma lista com três nomes, conduzida pela Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR), só trouxe consequências ruins, para o Ministério Público Federal e para o país, afirma Aras, em entrevista à ConJur.

Na opinião do subprocurador, a lista cria campanhas eleitorais para a escolha do PGR, o que acaba dividindo o MPF em grupos. Inevitável, portanto, que surja um estabilhsment de poder dentro da instituição, que serve para proteger a si e aos membros do mesmo grupo, analisa Augusto Aras, constitucionalista e um dos maiores especialistas em Direito Eleitoral do país.

O erro, diz Aras, é que instituições contramajoritárias, como o MP e o Judiciário, não podem fazer política. Elas tiram legitimidade do dever de fundamentação, e não da vontade popular. E a perpetuação do sistema da lista tríplice premia os procuradores que aparecem mais, ou que fazem mais promessas aos "eleitores".

A promessa de Aras, se vier a ser nomeado PGR, é "um Ministério Público moderno e desenvolvimentista, que perceba a sua importância como titular da ação penal, mas cuja persecutio criminis, desde a origem, se faça com uma polícia técnica, com os meios técnicos adequados".

"Não somos meros acusadores oficiais", afirma. "É preciso que tenhamos a compreensão de que esse MP moderno precisa buscar sempre, dentre as múltiplas respostas corretas, aquelas que preservam mais o interesse público e o interesse nacional."

Leia a entrevista abaixo:

ConJur — Se eleito procurador-geral da República, o que o senhor pretende valorizar?
Augusto Aras —
Primeiro, o cumprimento dos valores inalienáveis que se encontram na Constituição Federal, mediante o cumprimento da Lei Complementar 75/1993. E fazer com que a classe possa usar da sua independência funcional, mas certa de que há limites, e não uma eleição de lista, para agradar, como num concurso de popularidade.

ConJur — O senhor tem se notabilizado pelas críticas à lista tríplice.
Augusto Aras — 
O PGR é o chefe apenas administrativo da instituição. Compete a ele, sem interferir na independência funcional, dirimir os conflitos entre os colegas que pensam diferente, estabelecer linhas de ação onde possa haver controvérsia entre membros. O PGR precisa compreender que não é cedendo ao corporativismo que vai fazer da instituição aquela que todos desejamos.

Não somos meros acusadores oficiais, temos tarefas valiosíssimas que o constituinte nos conferiu. Não se pode ficar jogando para a torcida. Não se pode ficar atrasando procedimentos e medidas com receio de desagradar quem quer que seja. É preciso que tenhamos a compreensão de que esse Ministério Público moderno precisa buscar sempre, dentre as múltiplas respostas corretas, aquelas que preservam mais o interesse público e o interesse nacional. E assim destravamos a economia, e atacamos os núcleos duros que colocam o país em um engessamento. Precisamos de um Ministério Público moderno e desenvolvimentista, que perceba a sua importância como titular da ação penal, mas cuja persecutio criminis, desde a origem, se faça com uma polícia técnica, com os meios técnicos adequados, sem precisar de censura prévia de qualquer natureza.

ConJur — Ainda que haja otimismo, as instituições parecem estar muito abaladas por um caldeirão de motivos. Como avalia a situação do Legislativo, do Judiciário e do Executivo?
Augusto Aras —
Nos últimos anos, tivemos alguns segmentos da República hipertrofiados e outros com perda de legitimidade. Minha visão desses pouco mais de 100 dias de governo é que o presidente e o Executivo buscam encontrar alinhamento. O Judiciário ganhou uma musculatura muito forte nos governos anteriores. O Ministério Público, com outro viés corporativista, também teve seu fortalecimento. Por sua vez, o Legislativo foi abalado pela grande crise, primeiro do mensalão, depois da "lava jato". 

ConJur — O que acha da presença de integrantes, ou ex-integrantes, das Forças Armadas no governo?
Augusto Aras — 
Pessoalmente, observo que há esse otimismo fundado no novo, que promete a mudança de velhas práticas e de velhos costumes políticos, eleitorais e partidários. Pode-se conceber nessas mudanças que os poderes constituídos e suas instituições comecem a voltar aos trilhos: da Constituição, das leis do país, da moralidade administrativa, da legalidade, da impessoalidade, da transparência, da economicidade, da eficiência.

ConJur — O que precisa ser feito, então?
Augusto Aras —
Trabalhar mais e cobrar menos. E lembrar que as carreiras do MP e da magistratura e outras do serviço público não foram feitas para o enriquecimento pessoal, e sim para que um indivíduo seja remunerado dignamente e preste um serviço público à sociedade. Temos leis, só precisamos da firme disposição e, acima de tudo, do patriotismo dos nossos representantes no Congresso Nacional, no Poder Executivo, e dos representantes no Poder Judiciário e do Ministério Público, que são instituições contramajoritárias. Estas são as que mais devem observância as leis do país, a Constituição Federal.

ConJur — Por quê?
Augusto Aras —
 Não tendo sido eleitas, sua única legitimação material é extraída do seu dever de fundamentação. Enquanto o Executivo e o Legislativo necessitam de aprovação popular, e podem sofrer alternância a cada certame eleitoral, o Judiciário e o Ministério Público são ocupados por agentes políticos que têm cargos vitalícios.

Não é da natureza das instituições contramajoritárias fazer política partidária eleitoral como fazem deputados, senadores, governadores, vereadores etc. Pelo contrário, a Loman proíbe que os magistrados se manifestem. Exige-se recato e decoro de um membro do Ministério Público também. Quando alguém da lista tríplice diz que não tenho liderança — e isso não me ofende —, me lembro que a liderança é uma autoridade encarnada por alguém no exercício da gestão de algum empreendimento. Não existe liderança por lista. Até porque lista, no processo eleitoral, resulta do uso indevido dos meios de comunicação social, do abuso do poder econômico, do abuso do poder político, da captação ilícita de sufrágio, da corrupção eleitoral, das fraudes eleitorais. O que temos o dever de combater.

ConJur — O Ministério Público usa com seus membros o mesmo rigor que usa com os demais?
Augusto Aras —
Estive no Conselho Superior por dois biênios e percebi que essa questão da lista se reflete de forma gravosa nos processos administrativos disciplinares. Para quem faz parte do establishment interna corporis praticamente não existe punição adequada. Ou melhor, não existe processo nem julgamento adequados. Inversamente, para quem não faz parte do establishment, existem os rigores da lei. As instituições contramajoritárias, quando submetidas a essa política do "nós contra eles", produzem um establishment que se supõe como mediador dos interesses aparentemente em conflitos. Quem faz parte do time que está ganhando as batatas. Quem não faz, vai sofrer os rigores da lei.

ConJur — Há 15 anos, quando se constatou que procurador Luiz Francisco assinava denúncias que não tinham sido produzidas por ele, mas por adversários das vítimas dos alvos das denúncias, ele foi promovido. Isso faz bem para a imagem do Ministério Público?
Augusto Aras —
É mais uma dinâmica das instituições contramajoritárias. Não acuso aqui Luiz Francisco de nada, mas qualquer colega que não cumpra com zelo suas atividades funcionais deve responder ao devido processo legal administrativo. Não podemos promover por merecimento determinados membros dessas instituições só porque são do mesmo establishment.

ConJur — Recentemente, o ministro Dias Toffoli mandou abrir inquérito para apurar mentiras e ameaças aos ministros feitas nas redes sociais. O inquérito foi aberto com base num artigo do Regimento Interno do STF, e logo enviado a um relator. Mas a Procuradoria-Geral defende que o pedido deveria ter sido enviada à PGR, para que oficiasse a Polícia Federal. O senhor concorda?
Augusto Aras — O primeiro ponto é que o artigo 43 do Regime Interno não foi recepcionado pela Constituição de 1988. Apenas a partir de 1988 passou-se a adotar uma fase de procedimento acusatório cujo titular é o Ministério Público. O que não podemos admitir é que quem acusa, julgue. Isso só é admitido excepcionalissimamente nos processos administrativos em que a administração pública tem que constituir uma comissão de servidores para apurar eventual falta de um funcionário público — o que é um contexto absolutamente estranho ao processo judicial.

ConJur — Pelo análise que o senhor faz, establishment do poder no MPF protege a si próprio. Hoje sabemos que muito provavelmente membros do MPF, até alguns ligados à "lava jato", são alvos desse inquérito. Como, então, a PGR poderia investigar as pessoas que a colocaram lá? Como confiar no trâmite desse inquérito?
Augusto Aras — Essa pergunta é uma faca por demais afiada. Mas posso dizer que, no Ministério Público Federal, também existem pessoas que não fazem parte do establishment. Pessoas que, como eu, têm uma vida dedicada à instituição, dignidade para ocupar os cargos que ocupam. Pessoas que, inclusive nos seus silêncios de mero espectador, repudiam e repelem certas condutas dentro da casa.

ConJur — Como funcionaria um sistema meritocrático dentro do Ministério Público? A quem caberia atribuir pontuação, por exemplo?
Augusto Aras —
O Conselho Superior. Fui o único membro do Conselho Superior a apresentar um projeto de resolução para que as promoções só se fizessem com pontuação acerca de critérios de merecimento. E esse projeto está engavetado desde a época que saí de lá, em 2016.

O mérito não pode ser um critério arbitrário. É dever preservar a legalidade desde hábitos vinculados à lei para que não haja instituições fragilizadas por preferências que violem o princípio republicano da igualdade formal. É preciso ter uma instituição calcada no mérito e não no apadrinhamento.

ConJur — O senhor observa que às vezes o Conselho Superior e o CNMP são responsáveis por autorizar o Ministério Público a se atribuir muitas competências? Por exemplo, fazer acordo de leniência?
Augusto Aras —
O Ministério Público tem três armas poderosas: o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), o Procedimento de Investigação Criminal (PIC) e a leniência. A leniência é uma questão mais complexa porque, com a “lava jato”, foram vistos inúmeros órgãos da administração pública federal em conflito com algumas condições do acordo. 

É preciso um tratamento melhor em relação à leniência e definir quais são os órgãos que devem ou não participar da avaliação da conveniência, da oportunidade e da justiça deste acordo. A “lava jato”, como uma grande política de Estado e não de governo, tem serviços relevantes prestados ao país. Espero que a operação seja estendida aos estados e municípios. "Lava jato" só na administração pública federal é muito pouco, precisamos dela no país todo.

ConJur — A "lava jato" passa a impressão de que as baterias da persecução penal estão voltadas para os ditos "crimes de colarinho branco". Não se vê o mesmo entusiasmo na área do crime comum. Por quê?
Augusto Aras —
O mérito não é daquele que aparece mais no jornal. O mérito é daquele que se dedica e tem maior zelo. Promover denúncias para ganhar páginas de jornal pode representar uma grande lesão à honra de um inocente, destruir família, destruir patrimônio, carreiras.

ConJur — A Lei de Abuso de Autoridade e a fiscalização de órgãos competentes, como o CNMP, são suficientes para conter abusos?
Augusto Aras —
Não precisamos de uma lei nova, mas sim aplicar a que temos em vigor desde 1965. Se ela fosse aplicada já seria suficiente para corrigir eventuais desvios. Se houvesse no Brasil um instituto do desuetudo [desuso], ela já teria sido revogada: só conheço um caso de aplicação da Lei de Abuso de Autoridade.

ConJur — Essa lei apena o Estado e não quem provocou o dano. O cidadão é punido duas vezes. Uma por ter sofrido com o abuso. Outra porque é o Estado quem vai pagar a indenização.
Augusto Aras —
Estamos falando da Lei de Abuso de Autoridade que tipifica como crime o abuso de autoridade, e não propriamente a reparação do dano moral. A lei de 1965 pune criminalmente o abuso de autoridade com penas graves. Só precisamos aplicá-la aos abusos e, com isso, evitar que o Congresso Nacional perca tempo com um assunto que já está suficientemente regulado. É questão de aplicação da lei, porque legem habemus.

ConJur — O Brasil e outros países partiram de um direito de defesa muito acentuado para um direito de acusação igualmente exacerbado. Alguns ministros do Supremo entendem que existe uma fábrica de notícias contra eles para fortalecer a visão punitivista. Existe?
Augusto Aras —
Data maxima vênia, o próprio Supremo firmou entendimento de que é vedada a censura prévia. Está previsto na Constituição. No caso de alguém ofender a honra, há três caminhos minimamente possíveis a posteriori, post factum. O primeiro é a reparação civil. Se for algo que não desafie na vítima, nem resposta civil, nem resposta penal, então há direito de resposta. O que não pode ser feito numa sociedade que se quer democrática é impedir a livre manifestação da opinião, a liberdade religiosa, de pensamento e de imprensa — que tem o dever de informar. A idoneidade da informação, em um passado não muito distante, qualificava o veículo da imprensa.

O Código Eleitoral, posto para o Executivo e Legislativo, proíbe qualquer tipo de propaganda que crie estados artificiais na mente dos eleitores. A norma continua extremamente valiosa, especialmente num momento de fake news. É preciso aprender a lidar com um fenômeno que é muito mais antigo do que parece e apenas ganhou um nome novo.

Não podemos esquecer que o Washington Post sagrou-se como o grande arauto da democracia americana por causa do Watergate. E, logo em seguida, sofreu uma grande débâcle [derrota] quando o fake news concreto levou o Washington Post a divulgar uma matéria falsa em todos os elementos objetivos e subjetivos. O diretor do jornal à época fez a autocrítica no jornal e concluiu que ainda assim a imprensa deveria continuar livre para errar, porque as correções seriam mais fáceis e as lesões seriam menores do que a possibilidade do que, serradas as bocas livres, poderiam ser muito mais gravosos para o ambiente democrático.

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