Opinião

Endurecimento penal não é a solução para acabar com as organizações criminosas

Autor

  • Antonio Baptista Gonçalves

    é advogado pós-doutor em Desafios en la postmodernidad para los Derechos Humanos y los Derechos Fundamentales pela Universidade de Santiago de Compostela pós-doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP pós-doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de La Matanza.

12 de maio de 2019, 6h20

O projeto de lei "anticrime", elaborado pelo ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, tem por finalidade modificar uma gama de leis a fim de otimizar o sistema penal objetivando o combate ao crime organizado, à corrupção e aos crimes com grave violência à pessoa. O nosso enfoque será dedicado à questão das organizações criminosas.

O governo federal planeja propor ao Congresso Nacional que as organizações criminosas mais violentas em atuação no Brasil passem a ser identificadas e nomeadas em lei. A menção nominal às organizações criminosas será uma mudança positiva, já que, ainda hoje, existem governantes que não admitem a atuação dessas facções, tentando minimizar o poderio ilícito de seus integrantes. "É uma alteração importante. Praticamente mantemos a conceituação atual, mas deixamos claro, na lei, que estas são organizações criminosas", disse o ministro Sergio Moro[1].

Segundo o projeto de lei, a redação final com a nova redação do parágrafo 1º do artigo 1º da Lei 12.850/13 seria a seguinte:

“Art.1°………………………………………………….
§1° Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, e que:
I – tenham objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos;
II – sejam de caráter transnacional; ou
III – se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica, como o Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos, Milícias, ou outras associações como localmente denominadas”.

Ainda temos maior endurecimento penal aos membros das organizações criminosas através de alteração do artigo 2º, parágrafos 8º e 9º da mesma lei:

“Art.2°………………………………………………………………………………………..§8° As lideranças de organizações criminosas armadas ou que tenham armas à disposição deverão iniciar o cumprimento da pena em estabelecimentos penais de segurança máxima.
§9° O condenado por integrar organização criminosa ou por crime praticado através de organização ou associação criminosa não poderá progredir de regime de cumprimento de pena ou obter livramento condicional ou outros benefícios prisionais se houver elementos probatórios que indiquem a manutenção do vínculo associativo”.

Além disso, o ministro Sergio Moro pretende criar uma superagência destinada a administrar os bens apreendidos nas ações de combate ao crime e que ficaria subordinada ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública[2].

Importante destacar que a legislação penal vigente já estabelece que integrar organização criminosa é ato punido com pena de 3 a 8 anos de prisão. Além disso, será que o presente anteprojeto revogaria o artigo 288-A do Código Penal? Ademais, como ficam temas passíveis de inconstitucionalidade como os impedimentos para os membros de organizações criminosas para progressão de regime, ou para a concessão do livramento condicional e, também, para os benefícios adquiridos pelo preso por organização que mantiver vínculo associativo? Será autorizada a supressão de direitos?

No tocante às organizações criminosas, claro está que o Brasil tem perdido a batalha com as facções, em especial o Primeiro Comando da Capital (PCC), que se transnacionalizaram e ampliaram suas operações[3] graças a um conjunto de fatores: as lacunas nas garantias e efetivação dos direitos fundamentais por parte do Estado Democrático de Direito brasileiro à população e problemas de corrupção de agentes penitenciários, policiais e de agentes públicos do Estado nas fronteiras ao longo do território nacional. Também temos a falta de efetivo nas polícias Civil, Militar e Federal, falta de motivação, baixa remuneração, falta de equipamentos e materiais, além de uma carência de amparo efetivo às fronteiras, pois em muitos trechos não há sequer uma proteção para separar os países.

A fronteira com o Paraguai, por exemplo, o segundo maior produtor de maconha no mundo, é marcada por acessos livres, alguns trechos com uma nada intimidadora cerca de arame farpado delimitam a divisa de territórios. Porém, em vários outros nem a cerca existe, praticamente um convite ao crime organizado transnacional.

Há uma diferença sensível entre o mundo de 1993, quando o Primeiro Comando da Capital foi criado, para a realidade de 2019. E, diferentemente do Estado Democrático de Direito, a facção criminosa soube se modernizar e, mais do que isso, se adaptar à evolução dos eventos advindos com a globalização.

A principal função do crime organizado transnacional é obter lucro através da prática de atividades ilícitas, com metodologia estabelecida através de uma estrutura cooperativa definida que tem por função a disseminação do temor com aplicação de corrupção. Também possui um público-alvo específico e conta com a proteção dos membros do Estado para suas atividades, em especial nas fronteiras e no acesso/transporte de seus produtos ilegais. Phil Willians destaca o impacto da globalização para as organizações criminosas:

1) A globalização do comércio, da tecnologia, do transporte, das comunicações, dos sistemas financeiros e da informação, que permite que as organizações criminosas atuem além das fronteiras;

2) Os movimentos e a migração populacional, que facilitam a criação de redes para operações criminosas, as quais oferecem melhores oportunidades para recrutamento, maior cobertura, mais lealdade e apoio;

3) Um sistema financeiro baseado no dinheiro virtual/digital, que facilita a movimentação rápida e fácil de fundos (logo após o colapso dos acordos de Bretton Woods), assim como o crescimento dos paraísos fiscais para que as organizações criminosas ocultem seus rendimentos;

4) Lucros diferenciados para as organizações criminosas, onde os preços de venda final e os lucros são elevados e o custo de produção é baixo.

5) Diferenças entre as legislações dos países estimulam o crime organizado: as organizações tendem a preferir operar naqueles países onde a legislação é frouxa ou suas instituições têm escassa efetividade na sua aplicação (sempre que a atividade seja rentável);

6) Capacidades diferenciadas dos Estados para impor riscos/custos para as operações destas organizações criminosas[4].

A hierarquia também é bem definida, com divisão de funções a fim de potencializar o lucro. Se baseia na estrutura de uma empresa convencional, com planejamento de custos das atividades, recrutamento de pessoas e pagamento com despesas de pessoal e ordenados. Para tanto, podem ou não ter empresas reais devidamente constituídas a fim de minorar os riscos das operações.

O Brasil, graças à atuação das organizações criminosas nas fronteiras, se tornou o segundo consumidor de cocaína no mundo no último ano. Cerca de 6 milhões de brasileiros provaram cocaína alguma vez na vida, e 2,8 milhões fizeram uso da droga em 2018, segundo pesquisa que situa o Brasil como segundo consumidor mundial da substância entorpecente e seus derivados, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.

A segunda edição do Relatório Nacional de Álcool e Drogas, elaborado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostrou que 5,6 milhões de adultos e 442 mil menores, que têm entre 14 e 17 anos, admitiram ter consumido cocaína na forma de produtos derivados como crack, óxi e merla[5].

Ciente da expansão das facções criminosas, o Estado Democrático de Direito brasileiro responde da maneira que sempre o fez: com repressão penal, a solução mais rápida e midiática como uma resposta à crise da segurança pública. Desde 1940, ano de criação do ainda vigente Código Penal, até os dias correntes, o Brasil criou 180 leis penais. E qual foi o impacto de tais medidas no universo prisional? Um aumento exponencial da população carcerária.

Em 1993, ano da criação do PCC, a população carcerária era de 126,2 mil presos[6]. Passados pouco mais de 25 anos, os número assustam, pois, segundo o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de Justiça, temos pouco mais de 600 mil presos, sendo que 40% são provisórios e apenas 35% com execução definitiva; 95% são homens, e quase 25% dos presos são decorrentes do crime de tráfico[7].

Intrigante, pois esses números são diversos dos apresentados pelo Conselho Nacional do Ministério Público em relatório divulgado apenas dois meses antes do citado acima: população carcerária de pouco mais de 700 mil presos, com uma população carcerária em 175% da capacidade, isto é, com notada superlotação. Se analisado por região, a situação somente piora, pois no Norte do Brasil temos quase três vezes a quantidade de presos em relação ao espaço disponível[8].

Agora, com o projeto de lei "anticrime", o legislador brasileiro pretende seguir com sua política de endurecimento penal, porém, não trata do cerne do problema das facções criminais: a falta de harmonização das penas. As facções ganham espaço e força perante os detentos por terem se tornado uma espécie de sindicato do crime, na luta por melhoria de condições dentre dos presídios.

Afinal, falha o Estado Democrático de Direito quando não há o respeito à dignidade da pessoa humana ao manter os presos em locais superlotados com população carcerária muito superior às condições sanitárias e dignas. Da mesma sorte, ao não respeitar os direitos dos presos, retardar sua progressão de regime, não lhe retirar do sistema quando já cumpriu pena, mas permanece preso por descuido estatal.

As pretensões do ministro da Justiça e da Segurança Pública são otimizar o sistema penal no tocante às organizações criminosas, porém, nos parece que, em verdade, deseja mascarar o descompasso da legislação brasileira em relação à cooperação internacional, fato este que fez com que o país estivesse seriamente ameaçado de ser suspenso do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi) e sofrer outras punições. O objeto de eventuais sanções era o descumprimento brasileiro em se alinhar com o combate ao terrorismo e à lavagem de dinheiro às recomendações da Organização das Nações Unidas, em especial no tocante ao processo de bloqueio de bens.

A preocupação é a necessidade de um combate multilateral, bilateral e regional do narcotráfico e do crime organizado cuja cooperação internacional é imprescindível desde que os instrumentos de controle estejam alinhados entre as nações, o que não o fez, até o momento, o Brasil, ao criar Lei 12.850/13, pois, embora consoante com o Protocolo de Palermo, pouco ou nada traduz um alinhamento prático com a cooperação internacional, em especial na questão do bloqueio de bens das atividades do crime organizado.

Em janeiro, a fim de evitar qualquer punição internacional, foi aprovado na Câmara o PL 10.431/2018, que ainda falta passar pelo Senado e, se aprovado, ter a chancela do presidente da República. O projeto de lei "anticrime" complementa o PL 10.431/18 e minora os problemas advindos das organizações criminosas transnacionais, mas não os saneará.

Em verdade o que precisa ser feito é ser tratada a causa do problema, e não as suas consequências, como tem feito o legislador brasileiro. E o cerne da questão é um Estado que não respeita a população carcerária, não aplica a harmonização das penas e não incentiva a ressocialização prisional, o que reflete no aumento do cometimento de crimes e no inchaço da massa prisional.

Endurecer não é a solução. A fim de melhorar o sistema, o Estado deve se preocupar em criar condições para que o presos não precisem se filiar às facções como forma de sobreviver, mas, sim, ter a opção de escolha entre uma proposta ressocializatória estatal com harmonização das penas e respeito aos seus direitos e garantias ou pertencer ao mundo do crime e das facções criminosas. Hoje não há essa escolha, e criar novas leis não mudará o cenário, será apenas mais uma ação midiática de pouca eficácia prática.

Para atingir eficazmente as facções criminosas, o Brasil deve se modernizar e investir não na criação de novas leis de endurecimento, mas, sim, em termos de cooperação internacional, com parcerias de investigação científica, a fim de melhorar sua tecnologia, serviço de inteligência, capacitação dos seus agentes, para atuar na prevenção do crime organizado transacional e estar em conformidade com os organismos internacionais dedicados ao tema.


[1] Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2019-02/projeto-anticrime-propoe-identificar-e-nomear-faccoes-criminosas. Acesso em 9 de março de 2019.
[2] Fonte: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/03/13/moro-quer-superagencia-para-administrar-bens-do-crime-organizado.htm. Acesso em 13 de março de 2019.
[3] Inquestionável, por outro lado, que, hoje, a atuação do crime organizado é praticamente universal. A interligação da economia mundial permitiu ao crime organizado a globalização de suas "atividades", mormente após a queda do comunismo soviético e a dissolução das fronteiras da Europa por consequência da formação da comunidade econômica europeia. Com isso, a Máfia, seja a siciliana ou sua coirmã norte-americana, tende a crescer ainda mais, e assim também aquelas organizações menores, algumas das quais lhe são aparentadas, como a "Camorra" de Nápoles, a "Sacra Carona Unira" de Púglia e a "N'drangheta" da Calábria. E igualmente se expandem as Tríades chinesas e a Yakuza japonesa, além de bandos criminosos que, amparados pela Máfia siciliana, agem na Europa do Leste e na Rússia e, presentemente, na França, na Holanda, na Grã-Bretanha e na Alemanha. FERNANDES, Newton; FERNADES, Valter. Criminologia integrada. 2. ed. rev. atual. E ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 446.
[4] WILLIAMS, Phil. Crime, illicit markets, and money laundering. In: SIMMONS, P. J.; JONGE OUDRAAT, C. Managing global issues: lessons learned. Washington, D.C.: Carnegie endowment for international peace, 2001.
[5] Fonte: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/estudo-aponta-brasil-como-segundo-maior-consumidor-de-cocaina-no-mundo,48b1dc840f0da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html. Acesso em 5 de março de 2019.
[6] Fonte: http://www.justica.gov.br/news/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf. Acesso em 27 de fevereiro de 2019.
[7] Dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça Fonte: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/57412abdb54eba909b3e1819fc4c3ef4.pdf. Acesso em 21 de outubro de 2018.
[8] Fonte: http://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em-numeros. Acesso em 21 de outubro de 2018.

Autores

  • Brave

    é advogado, pós-doutor em Ciências Jurídicas pela Universidad Nacional de La Matanza (Argentina) e doutor e mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP. Pós-graduado em Teoria dos Delitos pela Universidade de Salamanca (Espanha) e em Direito Penal Econômico pela FGV e especialista em International Criminal Law: Terrorism's New Wars and ICL's Responses pelo Istituto Superiore Internazionale di Scienze Criminali (Itália) e em Direitos Fundamentais e em Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal).

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