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Ricardo Toledo: Censura não é o caminho contra erros da imprensa

10 de maio de 2019, 6h23

Por Ricardo Toledo Santos Filho

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Cala boca já morreu.”
(ministra Cármen Lúcia, então presidente do Supremo Tribunal Federal, defendendo a liberdade de imprensa em 2016)

O Supremo Tribunal Federal já engrandeceu a si e a democracia ao reafirmar, recorrentemente, demonstrações de apreço à liberdade de expressão e de imprensa — e aqui faremos uma distinção desses dois institutos, democráticos por excelência. Com parte de sua composição atual, em 2009 revogou a Lei de Imprensa de 1967, por considerá-la arbitrária, não recepcionada pela Constituição de 1988, e em 2018 suspendeu a censura imposta ao jornal O Estado de S. Paulo pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que o proibira de veicular informações sobre a operação boi barrica em que se mencionasse o empresário Fernando Sarney.

Certos males têm a capacidade infinita, qual a fênix da mitologia grega, de renascer das próprias cinzas, e vemos agora que o “cala boca” também se mostra capaz de reviver, até mesmo na seara onde foi ceifado. Do mesmo Supremo libertário emanam restrições à liberdade de imprensa. No bojo de um inquérito, cuja instauração se ancora no regimento interno daquela suprema corte, o ministro relator decretou a supressão de notícias publicadas no site O Antagonista e em sua revista eletrônica Crusoé, que aqui, diga-se, não estão a receber nenhuma valoração ética ou política.

Pela indiscutível circunstância de que têm notável saber jurídico, é óbvio que os integrantes do Supremo conhecem o artigo 220 da Constituição, taxativo em determinar que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. O legislador generalizou a garantia da liberdade de expressão, mas, como reforço peculiar à liberdade de imprensa, privilegiou-a estabelecendo já no parágrafo 1º que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social…”.

A garantia constitui uma cláusula pétrea, decalcada da 1ª Emenda (1791) à Constituição dos Estados Unidos. Se a “plena liberdade de informação jornalística” não pode ser restringida sequer por lei aprovada pelo Congresso Nacional, muito menos está sujeita a restrições monocráticas de quem quer que seja. Talvez por isso a decisão que impôs a supressão deixou ressalvado que a

“plena proteção constitucional da exteriorização da opinião não significa a impossibilidade posterior de análise e responsabilização por eventuais informações injuriosas, difamantes, mentirosas e em relação a eventuais danos materiais e morais, pois os direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana”.

Concedidas todas as vênias e reconhecida a sapiência jurídica do ministro em questão, autor de obras de Direito Constitucional, claro está que ele torceu a corda em in causam suam. Tudo que cita está previsto no artigo 5º da carta magna. E mais eloquente é ainda a compreensão de que qualquer pretensão de direito legítimo de contestação da imprensa só assume legitimidade a posteriori — e ele próprio o admite, num lapso doutrinário, ao reconhecer a possibilidade “posterior de análise e responsabilização por eventuais informações difamantes, mentirosas…”.

Todo cidadão, a começar do ilustre presidente do Poder Judiciário, tem o direito inalienável de contestar informações publicadas pela imprensa, exigir retificação (o direito de resposta é garantido no inciso 5º do artigo 5º da Constituição) e até pleitear a responsabilização criminal e civil do jornalista ou do meio de comunicação social. Em sua trajetória de promotor de Justiça, advogado e magistrado, o ministro já deve ter se deparado com casos dessa natureza. Ninguém, absolutamente ninguém tem, no entanto, a prerrogativa de decretar censura à imprensa, pela simples razão de que tal possibilidade não existe no ordenamento jurídico brasileiro.

Chama ainda atenção na medida restritiva a referência única à “exteriorização da opinião”, omitindo a liberdade de imprensa. A menção a uma e a omissão de outra fazem sentido para viabilizar a peça. Ocorre que no episódio em apreço não está em questão a liberdade genérica de opinião, e sim a específica de imprensa. As publicações não deram uma opinião, publicaram uma notícia extraída de autos de processo judicial. Por mais que pareçam irmãs siamesas, é necessário diferenciá-las. A primeira é universal na isonomia republicana, ao alcance de todo e qualquer cidadão. A segunda é privativa dos meios de difusão de informação — plena e isenta de embaraços.

Em contrapartida, a liberdade de opinião pode efetivamente ser limitada a priori — e são numerosos os casos em que tribunais proíbem um cidadão de se referir a outro, por antecedentes de injúria, calúnia ou difamação. Personalidades de sólida tradição democrática recorrem a esse instrumento, a exemplo da polêmica em que o então senador Eduardo Suplicy solicitou à Justiça que impedisse o jornalista Paulo Francis de mencionar seu nome. Volta e meia a Justiça Eleitoral proíbe candidatos de citarem adversários.

O único caminho para o enfrentamento de eventuais erros, distorções e crimes de injúria, calúnia ou difamação praticados por intermédio da imprensa é o devido processo legal. As partes que cotejem seus argumentos. Como disse o poeta e estadista inglês John Milton, na extraordinária e perene defesa que fez da liberdade em sua obra Areopagítica, em 1664, “deixemos que a verdade e a falsidade se batam. Quem jamais viu a verdade levar a pior num combate franco e livre?”.