Opinião

STF não adota (ainda) a abstrativização do controle difuso

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10 de maio de 2019, 6h45

A Constituição de 1891, conhecida por ter sido a primeira de nossa República, foi também a primeira a prever a possibilidade de controle judicial de constitucionalidade das leis em nossa história.

Naquele momento, estabeleceu-se, com forte inspiração no modelo norte-americano, somente o controle difuso-incidental de constitucionalidade. Desse modo, todos os órgãos do Poder Judiciário poderiam verificar, antes de decidir o mérito do caso concreto em que foram chamados a decidir, a compatibilidade de um ato normativo aplicável àquela hipótese frente à Constituição.

Essa opção pelo modelo norte-americano, tal qual preconizado por John Marshall em seu célebre voto no caso Marbury v. Madison, trouxe, de imediato, um problema para nós.

Isso porque o sistema jurídico dos Estados Unidos, como sabemos, é o do common law. Assim sendo, a fonte primária de direitos é a tradição, que é revelada por juízes e tribunais quando chamados a decidir os conflitos concretos.

Soma-se a isso a adoção da doutrina do stare decisis et non quieta movere, segundo a qual uma questão decidida pelo Poder Judiciário que se torna precedente, automaticamente, vincula as futuras decisões, que deverão observá-la. Assim, os efeitos subjetivos das decisões acerca da constitucionalidade ou não de determinado ato normativo não se limitam ao caso concreto em análise somente.

No Brasil, por outro lado, o sistema adotado é o do civil law. A fonte imediata do Direito é a lei e não há, tal qual nos países anglo-saxões, o efeito vinculante de decisões tomadas pelas cortes judiciais, salvo se expressamente previsto em lei.

Desse modo, as decisões sobre a constitucionalidade de lei ou ato normativo tomadas em um processo subjetivo, como questão incidental, ainda que pelo Supremo Tribunal Federal, teriam eficácia inter partes, ou seja, os efeitos subjetivos limitar-se-iam às partes daquele processo. O ato normativo atacado continuará válido e plenamente eficaz em relação às outras pessoas, posto que a decisão que declarar a sua inconstitucionalidade só valerá para as partes daquele processo específico.

Com isso, podemos ter um sem-número de ações impugnando, incidentalmente, a mesma norma — basta pensar em um imposto federal instituído por lei inconstitucional, que atingirá todo o território e todos os brasileiros que praticarem o fato gerador —, o que, sem a menor dúvida, causará um imenso retrabalho ao Poder Judiciário, que terá que decidir uma mesma questão várias vezes.

Pior: podemos ter decisões conflitantes, sendo a lei reconhecida como constitucional para alguns e como inconstitucional para outros, o que só não causa mais perplexidade para os operadores do Direito do que para o dono de um estabelecimento comercial que terá que pagar pelo imposto, enquanto o concorrente do outro lado da rua estará dispensado…

Aliás, a possibilidade de qualquer juiz avaliar a constitucionalidade dos atos normativos é um dos fatores que comprometeu a segurança jurídica imaginada solucionada pela rígida separação dos Poderes inaugurada pela Revolução Francesa. A lei geral e abstrata pode valer em um juízo e em outro, não.

Buscando contornar esse problema, a Constituição de 1934, bem como todas as que lhe sucederam, inclusive a Constituição de 1988, previu um mecanismo de ampliação dos efeitos subjetivos da decisão tomada em sede de controle difuso-incidental de constitucionalidade. Trata-se da suspensão pelo Senado Federal da execução de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, hoje prevista no artigo 52, inciso X da CF/88.

O dispositivo prevê que compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

Desse modo, o constituinte atribuiu ao Senado Federal a competência de ampliar os efeitos de decisão declaratória de inconstitucionalidade proferida em caso concreto pelo Supremo Tribunal Federal, para atingir a todos (eficácia erga omnes).

Entretanto, para crescente entendimento doutrinário, o mecanismo do artigo 52, inciso X da CF/88 mostrou-se insuficiente.

Alguns autores, destacadamente o ministro Gilmar Mendes, defendem que as decisões do Supremo Tribunal Federal que declararam a inconstitucionalidade de atos normativos deveriam possuir efeito erga omnes e vinculante, independentemente de serem proferidas em controle difuso ou na via concentrada.

Cuida-se da teoria da abstrativização do controle de constitucionalidade difuso.

São vários os argumentos que embasam essa conclusão, dentre os quais:

  • a natureza jurídica do ato inconstitucional, que é ato nulo[1];
  • a alteração da sistemática do controle de constitucionalidade, que, com a ampliação do controle concentrado de constitucionalidade trazida pela Constituição de 1988, permite ao Supremo decidir com efeitos erga omnes e vinculantes; e
  • a mutação constitucional do artigo 52, inciso X da CF/88, do qual se passaria a extrair norma no sentido de que a resolução do Senado Federal serve apenas para conceder publicidade à decisão do Supremo, que já nasce com efeitos erga omnes e vinculantes.

Essa teoria, conquanto em alguma medida sedutora, não é acolhida de maneira pacífica.

Os opositores à sua aplicação argumentam que não há previsão constitucional ou legal que confira efeitos erga omnes e vinculantes às decisões constitucionais proferidas em sede de controle difuso, sendo certo que não é possível falar em silêncio eloquente na hipótese.

Quando o Constituinte decidiu conferir efeitos erga omnes e vinculantes, o fez expressamente, como no caso do controle concentrado e da súmula vinculante — vide artigos 102, parágrafo 2º e 103-A, ambos da CF/88.

Aduzem, ainda, que ampliar interpretativamente os efeitos de uma decisão proferida em um processo individual, com parte delimitadas, sem a previsão dos mecanismos de participação popular e de defesa da própria lei, agrava, ainda mais, a tensão já existente entre o princípio democrático e o controle judicial de constitucionalidade.

Ademais, é inviável interpretar a competência do Senado prevista no artigo 52, inciso X da CF/88 como sendo de mero atribuidor de publicidade da decisão do Supremo Tribunal Federal. Para se falar em mutação constitucional, temos dois limites, quais sejam, o texto constitucional e os princípios fundamentais que dão sentido à Constituição, e, no caso, o texto não daria margem para a interpretação proposta pelos defensores da abstrativização.

Nesse cenário, foi editado e entrou em vigor o Código de Processo Civil de 2015, o que deu um novo colorido ao debate.

Como sabido, a atual lei processual buscou valorizar a jurisprudência valendo-se muitas vezes de elementos típicos do sistema do common law. No (injustamente[2]) aclamado rol do artigo 927, constam as decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade, silenciando o código Fux, contudo, quanto aos pronunciamentos em controle difuso.

Essa primeira leitura, porém, é insuficiente. A norma processual geral do nosso ordenamento segue a linha da abstrativização e objetivação da jurisprudência, especialmente a dos tribunais de cúpula. O principal mecanismo para tanto são os incidentes fixadores de teses jurídicas (recursos repetitivos, incidente de resolução de demandas repetitivas e incidente de assunção de competência), nos quais o Judiciário pacifica uma questão, obrigando os juízos inferiores a seguir o mesmo entendimento. Esses instrumentos afetam o controle de constitucionalidade.

A temática constitucional também pode ser objeto de uniformização pela via incidental. Na realidade, não poucos recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida fixaram teses sobre a constitucionalidade de uma norma, assemelhando-se a atividade ao controle difuso, mas com efeitos vinculativos para todo o Judiciário. Tal via é, aliás, muito mais efetiva que a tradicional discussão sobre a aplicação ou não da teoria dos motivos determinantes ou da abstrativização do controle difuso.

Parece-nos, portanto, que a questão constitucional possa ser pacificada pelos incidentes fixadores de tese, repressivos ou preventivos, e não apenas no incidente de arguição de inconstitucionalidade. Algumas peculiaridades, porém, devem ser respeitadas, como a cláusula de reserva de Plenário, atribuindo a competência para julgamento do incidente ao órgão exigido pela Constituição (artigo 97).

A diferença fundamental é que, nos recursos extraordinários repetitivos (atual vestimenta do procedimento da repercussão geral, no CPC/73), a inconstitucionalidade reconhecida não retira a lei, ao menos sob a ótica do texto constitucional, do ordenamento. Por outro lado, vincula o Judiciário a seguir a mesma conclusão, retirando a insegurança típica do controle difuso.

Por fim, importante lembrar que já sob a égide do novo CPC, em 29 de novembro de 2017, foram julgadas pelo Plenário do STF a ADI 3.406/RJ e a ADI 3.470/RJ[3].

Nessas ações diretas de inconstitucionalidade, debatia-se se a Lei 3.579/2001 do estado do Rio de Janeiro, que proíbe a extração do asbesto/amianto em todo território daquela unidade da federação e prevê a substituição progressiva da produção e da comercialização de produtos que o contenham, era inconstitucional por violar a norma geral sobre o tema (Lei Federal 9.055/95).

Alguns meses antes, o STF já havia se debruçado sobre a constitucionalidade de lei do estado de São Paulo com o mesmo conteúdo. Naquela oportunidade, reconheceu-se a constitucionalidade da lei paulista, tendo sido o artigo 2º da Lei Federal 9.055/95 declarado inconstitucional de forma incidental[4].

A corte manteve o seu posicionamento quanto à lei carioca e julgou, por maioria, improcedentes pedidos formulados em ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas. Entretanto, ganhou destaque a declaração, também por maioria e incidental, da inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei Federal 9.055/95, com efeito vinculante e erga omnes.

A ministra Cármen Lúcia, em seu voto, chegou a mencionar que o STF está caminhando para se tornar uma corte de precedentes, ou seja, um tribunal que não declara a inconstitucionalidade do ato normativo objeto do controle, mas da própria matéria em discussão.

Em razão da referida decisão, já se sustentou ter o Supremo Tribunal Federal adotado a tese da abstrativização do controle de constitucionalidade, e que a discussão estaria superada.

Contudo, fato é que a declaração de inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei Federal 9.055/95, com efeitos erga omnes e vinculantes, foi proferida no bojo de uma ação direta de controle de constitucionalidade.

Assim, pode-se dizer que houve uma ampliação no objeto da ação direta de constitucionalidade proposta, tendo sido estendidos os efeitos erga omnes e vinculantes à questão incidental. Contudo, tal decisão não foi tomada em um processo concreto, mas, sim, em um processo objetivo, o que, por ora, não nos permite falar em abstrativização do controle difuso.

A rigor, seria mais apropriado assegurar que o Supremo Tribunal abraçou a teoria da transcendência dos motivos determinantes, que sugere que todos os dispositivos tidos como inconstitucionais em um processo de controle concentrado são atingidos pelo efeito vinculante, ainda que constem na fundamentação, não tendo sido objeto da impugnação pelo legitimado. O exemplo do amianto é preciso.

Como a temática do controle de constitucionalidade possui natureza difusa, atingindo todos os que se submetem ao ordenamento analisado, compreender bem os conceitos e evitar alardes é crucial.


[1] BITTENCOURT, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 140-146.
[2] Ver nossa crítica em MELLO PORTO, José Roberto. CPC exige que se siga orientação da jurisprudência e dos precedentes. Consultor Jurídico. 27 de março de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mar-27/jose-porto-cpc-exige-siga-jurisprudencia-precedentes.
[3] STF, Tribunal Pleno, ADI 3.406/RJ e ADI 3.470/RJ, Rel. Min. Rosa Weber, j.29/11/2017 (Info 886).
[4] STF, Tribunal Pleno, ADI 3.936/SP, Rel. p/ acórdão Min. Dias Toffoli, j. 24/8/2017.

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