Opinião

Investimentos transnacionais, ética e responsabilidade legal

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9 de maio de 2019, 6h48

A globalização trouxe uma desejável, e de certa forma inédita, circulação de riquezas em face da acentuada internacionalização da economia e do conhecimento. Todo esse processo desdobra-se em uma infinidade de ações, circunstâncias e consequências altamente diversas de acordo com amplas variáveis, como as diferenças profundas entre países, as variadas características econômicas e regionais, do grau de desenvolvimento nacional ou regional, e do efeito dela em diferentes sociedades, em vista da complexidade dos valores culturais, entre muitas outras variáveis. Como todos os processos na história humana, a globalização trouxe bons efeitos, mas também apresentou alguns malefícios.

Obviamente, a força construtiva e destrutiva desse fenômeno mundial é bem-vinda no que traz de bom, mas deve ser controlada no que traz de ruim. Nunca é demais relembrar o efeito avassalador do imenso poder, potencializado pelo fenômeno da globalização, de alguns grandes grupos empresariais cujo faturamento hoje é maior do que o Produto Interno Bruto de muitos países.

Os investimentos de agentes econômicos internacionais são exemplos desse quadro. Eles são altamente desejáveis, sobretudo para um país carente de capitais, assim, é tanto necessário atraí-los como não se pode, de outro lado, deixar de submetê-los às regras vigentes, sob pena de prejudicar não só consumidores, mas até mesmo empresários e investidores internos de um país; para esse fim, é essencial compreender sua dinâmica e riscos oriundos.

Infelizmente, dentre os riscos, há aqueles associados ao que o autor John Dobson chamou de “lack of moral judgement on the part of transnactional corporations[1][2]. Com efeito, embora, historicamente, seja um pouco atávico certo comportamento amoral de algumas corporações , como narrou Fábio Konder Comparato na parábola da imaginada “American Electric[3], em que essa companhia, na ficção, lançou a cabo uma campanha publicitária nacional contrária ao interesse público, mas altamente favorável aos seus lucros, os quais se realizaram em grande quantidade em função da bem-sucedida campanha. O extraordinário lucro chamou a atenção dos congressistas que instauraram uma investigação. Para a surpresa deles, nas audiências, descobriram que a maioria dos executivos, pessoalmente, tinha ressalvas ou era contra a campanha, mas afirmavam: eles sabiam que “ela atendia aos interesses da companhia e eles tinham de fazê-lo, portanto o fizeram”. Essa história é da década de 1960 e alerta para o potencial perigo do maquinismo jurídico e a lógica amoral que podem empalmar algumas ações empresariais.

Como é sabido, houve, posteriormente, episódios reais e piores na história dessas corporações, como da Union Carbide na Índia, que, após prometer sanar o grave desastre ecológico de vazamento de gás tóxico de sua instalações, retrocedeu e quis abandonar as milhares de pessoas afetadas pelo desastre, na crença de que poderia ficar impune, ao menos em algum grau mais vantajoso do que reparar os danos.

Isso mudou hoje, não há praticamente legislação que não imponha deveres fundados na ética, como cuidados especiais com o meio ambiente, com trabalhadores, fornecedores, investidores ou a própria comunidade, mesmo o mercado pede claras regras de compliance para as grandes empresas, exigências que são, em geral, universalmente aceitas.

Como anota Dobson, por vezes, considerações éticas não são sopesadas suficientemente ao tomar uma decisão empresarial. Adverte ele, contudo, que administradores e controladores têm deveres fiduciários a observar para com a comunidade e o mercado.

Esses deveres, em nosso país, têm expressa previsão legal, seja ao limitar e estabelecer obrigações legais ao controlador e empresas, seja fundado no pilar básico da boa-fé objetiva nas relações empresariais. Este é ponto nodal baseado na legítima expectativa de comportamentos, na probidade específica e na credibilidade, principalmente esta, pois na ausência dela são graves as repercussões não só junto a fornecedores, consumidores e investidores, mas extrapolam-nas para atingir o próprio mercado.

Nesse prisma, não pode o agente econômico internacional efetuar investimentos com ética diferente da que está obrigada em sua sede ou em outros países, ou a descumprir normas imperativas, praticar evasão tributária em cerebrinas maquinações de papel, ou até fugir aos deveres legais expressos em relação a, entre outros, consumidores, trabalhadores e ao país onde se instala, muito menos, ainda, retirar-se, sem cuidado algum, transferindo o negócio para homens-de-palha ou sociedades sabidamente desprovidas de qualquer condição de continuidade ou de investimento no negócio. De resto, até porque, por vezes, não são essas mais do que fictícias vendas ou transferências, sempre gerando gravíssimos prejuízos no mercado do país hospedeiro.

A ética, a boa-fé e o respeito ao país hospedeiro é um imperativo necessário para evitar um dos mais graves aspectos do lado ruim da globalização econômica.


[1] “Ausência de juízo moral por parte das corporações transnacionais”.
[2] https://www.jstor.org/stable/25072242?seq=1#page_scan_tab_contents
[3] “Aspectos jurídicos da macro-empresa”, Ed. Revista dos Tribunais, 1970.

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