Opinião

J'accuse! Estão descumprindo alvarás de soltura constantemente

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8 de maio de 2019, 6h19

Nos últimos anos temos visto um aumento excessivo no número de presos. Os dados dão conta de mais de 726 mil[1], com a majoração de 312% entre 2000 e 2016. O número de prisões provisórias se mantém em níveis alarmantes de 40%, segundo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Os fundamentos de presunção de inocência presentes no artigo 5º, inciso LVII da Constituição, em que pese 31 anos da lei maior, ainda não foram devidamente adotados pelo Poder Judiciário, que não só deu "nova interpretação" à presunção de inocência constitucional, permitindo prisões decorrentes de acórdãos recorríveis (HC 126.292/SP[2]), mas também a partir de 2014, com a operação "lava jato", tem vulgarizado a prisão preventiva, transformando-a em punição antecipada e execração pública pela mídia.

Nesta conjuntura, o presente texto vem abordar o constante descumprimento de ordens de soltura, sejam nos casos de liminares determinado a liberação de presos, como também nos casos de deferimento de ordens de Habeas Corpus e liberdade provisória. Ao se determinar uma ordem de soltura, é necessário que seja expedido um alvará para cumprimento. A partir dessa expedição é imprescindível que seja feita uma verificação de inexistência de outro mandado de prisão, relacionado a outro processo que não aquele correspondente ao alvará de soltura. Essa verificação é chamada vulgarmente de “sarquemento”[3]. Pois bem. Após essas duas etapas vem a soltura propriamente dita, que é retirar o preso fisicamente da cadeia ou unidade penitenciária.

A Resolução 108/2010 do Conselho Nacional de Justiça, em seu parágrafo 3º, do artigo 1º, disciplina que, quando expedido alvará de soltura, o detento deverá ser posto imediatamente em liberdade. Conforme adiante:

O preso em favor do qual for expedido o alvará de soltura será colocado imediatamente em liberdade, salvo se estiver preso e, flagrante por outro crime ou houver mandado de prisão expedido em seu desfavor, após a consulta ao sistema de informação criminal do respectivo tribunal e ao sistema nacional (g.n.)

No mais, o parágrafo único do artigo 3º da resolução esclarece que os tribunais poderão formalizar convênios de cooperação para troca de informações entre os órgãos públicos, de modo que as autoridades penitenciárias consigam acessar os sistemas informatizados da Justiça criminal, possibilitando, assim, a superação de qualquer óbice no cumprimento de alvará de soltura.

Ordens judiciais devem ser cumpridas a qualquer hora do dia ou da noite. Esse é o princípio da continuidade da Justiça prevista no artigo 93, XII da Constituição — cujo diploma preconiza que a atividade jurisdicional será ininterrupta, sendo vedado férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau, funcionando, nos dias em que não houver expediente forense normal, juízes em plantão permanente (incluído pela Emenda Constitucional 45, de 2004). Por isso, há plantão judiciário[4], cujo funcionamento se estende durante feriados, fins de semana, férias ou recesso forense.

Todavia, não é isso que está ocorrendo. Estão se espalhando no país inúmeros casos de descumprimento e adiamento de ordens de soltura. O Estado, seja através de diretores de presídios, chefes de departamentos judiciários e secretários de segurança, está criando regras ilegais, praticando crimes de descumprimento de ordem judicial (artigo 330 Código Penal) e mesmo abuso de autoridade (Lei 4.898, de 9/12/1965). Esse diploma legal traz os casos que constituem abuso de autoridade, sejam eles quaisquer que atentem contra: à liberdade de locomoção (artigo 3º); prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade (artigo 4º). Nesse contexto, o Código de Processo Penal também prevê multa a quem embaraçar a soltura:

Art. 655. O carcereiro ou o diretor da prisão, o escrivão, o oficial de justiça ou a autoridade judiciária ou policial que embaraçar ou procrastinar a expedição de ordem de habeas corpus, as informações sobre a causa da prisão, a condução e apresentação do paciente, ou a sua soltura, será multado na quantia de duzentos mil-réis a um conto de réis, sem prejuízo das penas em que incorrer. As multas serão impostas pelo juiz do tribunal que julgar o habeas corpus, salvo quando se tratar de autoridade judiciária, caso em que caberá ao Supremo Tribunal Federal ou ao Tribunal de Apelação impor as multas[5].

Estas regras ocultas e administrativas estão, repetidamente, impedindo cumprimentos de alvarás de soltura fora dos horários úteis sob a justificativa de segurança. Nesse sentido, os agentes de segurança têm deixado o indivíduo preso por horas, dias, e por vezes descumprem ordem judicial expressa, deixando sob insegurança e sofrimento o cidadão. A partir de alguns exemplos concretos da militância da advocacia, posso fazer um testemunho.

Há alguns anos vivi um caso escandaloso. Um ministro do Superior Tribunal de Justiça deferiu uma liminar determinando a soltura de um preso. Era véspera de feriado. Nessa época não tinha processo digital e muito menos telefones móveis. Ao chegar ao Rio de Janeiro portando a decisão, nos dirigimos ao plantão para fazer cumprir a ordem judicial. Depois de horas o juiz verificou que o ofício era dirigido ao presidente do Tribunal de Justiça, como era de praxe. Assim proferiu o seguinte despacho: “Tendo em vista que o ofício é dirigido ao presidente do Tribunal e não a esse juízo, deixo de cumprir o mesmo”.

Ligamos para o STJ para falar com a assessoria do ministro. Os tribunais superiores sempre funcionaram muito bem nos atendimentos. Foram incontáveis vezes que fiz contato nas férias, véspera de Natal, com assessores no STJ e Supremo Tribunal Federal. Faço testemunho de que há anos certos ministros chegavam a atender em casa, além do fato de que um Habeas Corpus no STJ antes demorava no máximo três meses para ir a julgamento. Hoje em dia, são no mínimo de três anos, e os contatos com o ministros e servidores têm sido cada ano mais difíceis.

Pois bem. Rapidamente a assessoria deu a notícia ao ministro, que determinou a expedição de um novo ofício dirigido ao juiz do plantão. Foi, então, remetida a nova ordem por fax[6]. Assim, os servidores do plantão levaram ao encastelado juiz plantonista a nova ordem. Algumas horas depois saiu finalmente a decisão: “Tendo em vista que o primeiro ofício foi dirigido ao presidente do Tribunal, deixo de cumprir”.

Esses fatos então foram levados ao ministro quando acabou o feriado. No primeiro dia útil, quatro dias depois, o juiz do caso cumpriu a decisão. Quase um mês depois do descumprimento da decisão pelo magistrado, o ministro despachou: “Tendo em vista que o preso foi solto, nada mais há que se fazer nos autos, arquive-se”. E permaneceu ileso o juiz que descumpriu a ordem.

Hoje em dia temos o CNJ para punir juízes que descumprem decisão judicial, e o Ministério Público para denunciar esses abusos. Agora são possíveis processos administrativos contra esses juízes e previstas todas as consequências contra os carcereiros e demais autoridades que descumprirem ordens de soltura. Afinal, “ordem judicial deve ser cumprida”! Os “lavas jatos men” propalam que “a lei é para todos”! Mas na verdade isso não parece ser verdade quando se trata de membros do MP, juízes e agentes do Estado. Registrando que se trata de membros que abusam para prender ou não soltar, pois não são poucos os juízes processados administrativamente por “crime de opinião”.

Fatos recentes demonstram que esses problemas não passaram. Relato alguns ocorridos neste ano.  

Primeira história: um desembargador de Brasília defere uma liminar para soltura de um preso às 21h de uma sexta-feira, em fevereiro. O plantão de Brasília remeteu ao plantão do TRF-3 (SP) uma carta precatória digital por e-mail, com alvará de soltura. A gentil assessoria do desembargador encaminhou também aos advogados uma cópia. O plantão deveria ter cumprido a ordem de madrugada, todavia, às 7h de sábado chegamos ao Centro de Detenção Provisória III de Pinheiros. Lá, o “guarda da esquina”[7] informou que “não é dado cumprimento a alvará de soltura aos fins de semana e feriados”, pois “não teria equipe para 'sarquear'”. Também foi informado que “advogado não entra no fim de semana”! Em que pese o artigo 7º da Lei 8.906/94[8]. Sem saída, nos dirigimos ao plantão. A juíza federal argumentou que não teria competência porque o preso estava custodiado em um presídio estadual, que seria a nova autoridade coatora. Mas estava preso por uma ordem de um juiz federal, cuja liminar foi proferida por um desembargador federal. Depois de muita insistência, a juíza determinou verificar se havia outra ordem de prisão (sarquemento) e mandou o oficial de Justiça ir ao presídio.

O oficial de Justiça passou horas no presídio e quando saiu sem o preso informou: “Meu papel é protocolar! Somente entregar o alvará”. Ou seja, ele não fez cumpriu o alvará de soltura. Ficamos em frente do presídio esperando por horas sem nada ocorrer ao lado da fila que se formava, dos pobres parentes que iriam dormir para ingressar na visita do dia seguinte! Incrível, o tamanho equivalente às filas do desemprego. Enquanto esperávamos novas notícias, a colunista Mônica Bergamo estampou no noticiário on-line que o preso famoso seria libertado. Em 30 minutos o Brasil todo sabia e as TVs já replicavam a notícia. Assim, resolvemos aproveitar e avisamos o diretor do presídio que a imprensa estava a caminho. Imediatamente o preso foi liberado, antes da chegada da imprensa.

Segunda história: um cidadão foi preso temporariamente por cinco dias. Essa prisão é a mais covarde de todas! Isso porque não há tempo para a apreciação de um Habeas Corpus enquanto dura a prisão. Se não for deferida a liminar por um tribunal, a única saída é tentar superar a Súmula 691 e recorrer aos tribunais superiores. Essas prisões são dolosamente executadas no fim da semana para impedir a defesa. Raras são as decisões como a da desembargadora federal Simone Schreiber, do TRF-2[9], rechaçando a prisão com os fins de o investigado ser escutado. Superada a temerária sem decreto preventivo, têm se determinado o arquivamento do Habeas Corpus com base no artigo 659 do CPP. Desta forma, a ordem de prisão jamais será apreciada quanto à ilegalidade. Se configura um verdadeiro cerceamento de acesso à Justiça. O Regimento Interno do STF prevê a possibilidade de julgamento, mesmo depois de cessada a ordem[10].

Após o cumprimento dos dias da prisão temporária e todas as tentativas de revogação durantes os cinco dias, não foi decretada a prisão preventiva e fomos despachar com o desembargador, já que à meia-noite venceria o mandado de prisão. Sabemos que, vencendo o mandado, o preso deveria ser liberado, mas sem alvará de soltura surgiria problemas decorrentes da burocracia. Os carcereiros soltariam o preso? O desembargador que determinou a prisão é responsável pelo preso. O tribunal fechou e permanecemos nas serventias até que às 22h24 enfim conseguimos o alvará de soltura. Mas não havia nenhum oficial de Justiça para ir à Polícia Federal fazer o “sarqueamento”. Só foi possível a liberação do preso no dia seguinte, perto das 12h. Registre-se que há alguns anos era a Polícia Federal que cumpria o alvará dos presos federais, retornando como detento para a sede da PF, e soltando. Hoje a Polícia Federal prende, mas não solta.

Terceira história: em março, a 1ª Turma Especializada do TRF-2 concedeu a ordem de liberdade a um preso. A decisão foi proferida por volta das 15h. O alvará foi expedido às 17h. A oficial de Justiça ficou um pouco relutante, mas aceitou cumprir no mesmo dia. Desde o tribunal, acompanhamos a oficial de Justiça à Polícia Federal para fazer o “sarqueamento”, procedimento que demorou quase duas horas para ser finalizado. Somente por volta das 19h é que a oficial conseguiu se dirigir até Bangu 8. O presídio “fecha” às 20h, e assim não queriam cumprir o alvará, afirmando que não seria possível por causa do horário. Mais uma vez nos deparamos com o descumprimento de uma ordem judicial. As notícias davam conta de que o diretor do presídio e o secretário de Administração Penitenciária não cumpririam a ordem em razão de resolução interna da secretaria. A notícia chegou ao juiz da Vara das Execuções Penais, que nessa oportunidade determinou o cumprimento da ordem após a meia-noite.

A lista seria interminável. São evidentes os descumprimentos constantes de ordem de soltura. Como não lembrar que a Polícia Federal descumpriu, por ordem do juiz de férias Sergio Moro, atual ministro da Justiça, uma ordem de soltura de Lula deferida durante o plantão do TRF-4? Posteriormente, o presidente do TRF-4 deferiu uma suspensão da liminar, contra o regimento interno do próprio tribunal.

É necessário que o CNJ e os tribunais tomem imediatas providências sobre esse grave problema e que o Ministério Público venha acionar todos os que descumprem ordens judiciais, ou estarão prevaricando a favor de seus interesses punitivos. O tema merece atenção do Conselho Federal da OAB e das seccionais.

*O título deste artigo é uma homenagem à luta de Émile Zola pela revisão da humilhante condenação de Dreyfus. Inicia-se com um artigo publicado em forma de carta em 13 de janeiro de 1988. Em seguida, lembrando os protestos e movimento dos advogados que hoje compõem o grupo chamado de “as prerrogativas”, contra a condenação de luta, contra o “projeto fake” de Moro, contra o corte de verbas para universidades. Em 1988, vários intelectuais fizeram um abaixo-assinado a favor da revisão do caso Dreyfus, como Anatole France, Georges Courteline, Octave Mirbeau ou Claude Monet, as assinaturas tendo sido recolhidas por estudantes ou jovens escritores como Marcel Proust.


[1] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen)/Ministério da Justiça. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil.
[2] Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246.
[3] O “verbo” gíria é decorrente do sistema que permite verificar o banco de dados de prisão Sarq-Polinter, da Polícia Civil.
[4] Ver Resolução 71, de 31/3/2009, que prevê a apreciação de liberdade provisória. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-normativos?documento=63.
[5] Não se vê a aplicação da penalidade aos juízes: CPP – Art. 653. Ordenada a soltura do paciente em virtude de habeas corpus, será condenada nas custas a autoridade que, por má-fé ou evidente abuso de poder, tiver determinado a coação.Parágrafo único. Neste caso, será remetida ao Ministério Público cópia das peças necessárias para ser promovida a responsabilidade da autoria. No regimento interno do STF repete o art. 653 no art. 195 e ainda prevê: Art. 197. Havendo desobediência ou retardamento abusivo no cumprimento da ordem de habeas corpus, por parte do detentor ou carcereiro, o Presidente do Tribunal expedirá mandado de prisão contra o desobediente e oficiará ao Ministério Público, a fim de que promova a ação penal.
[6] Disponível em: https://conceitos.com/fax.
[7] Em 13 de dezembro de 1968, véspera do AI 5, o ato institucional que retirou as garantias individuais e escancarou a ditadura, o vice-presidente da República, o civil Pedro Aleixo, manifestou dessa maneira sua contrariedade ao presidente-general Costa e Silva: “O problema de uma lei assim não é o senhor. O problema é o guarda da esquina”, disse.
[8] III comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis;
VI Ingressar livremente:
a) nas salas de sessões dos tribunais, mesmo além dos cancelos que separam a parte reservada aos magistrados;
b) nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios de justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independentemente da presença de seus titulares.
[9] Proc. 0001286-54.2019.04.0000 TRF-2 Sistema Apolo.
[10] Art. 199. Se, pendente o processo de habeas corpus, cessar a violência ou coação, julgar-se-á prejudicado o pedido, podendo, porém, o Tribunal declarar a ilegalidade do ato e tomar as providência cabíveis para a punição do responsável.

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