Direito Comparado

A MP da liberdade econômica: o que mudou no Código Civil? (parte 2)

Autores

  • Otavio Luiz Rodrigues Jr.

    é advogado da União; professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); coordenador de área e membro do Conselho Superior da CAPES; conselheiro Nacional do Ministério Público. Acompanhe-o em sua página.

  • Rodrigo Xavier Leonardo

    é advogado doutor em Direito Civil pela USP professor de Direito Civil na UFPR e integrante da Rede de Direito Civil Contemporâneo e do IBDCONT.

8 de maio de 2019, 16h14

Spacca
Na sequência da primeira coluna publicada sobre a MP da liberdade econômica, passa-se agora ao exame de outros aspectos relevantes desse texto legislativo.

É importante observar que, a despeito da tentativa de conferir maior objetividade a determinados artigos do Código Civil, a MP da liberdade econômica terminou por ampliar o recurso a conceitos jurídicos indeterminados, a respeito dos quais não há (para o bem e para o mal) um mínimo de antecedentes doutrinários que permitam compreender seu objeto, alcance e seus limites. A experiência doutrinária e jurisprudencial pré-legislativa é muito relevante para se firmar acordos semânticos e se evitar conflitos de interpretação em novos textos normativos[1]. Nada impede, por conseguinte, que se estabeleçam colisões entre princípios contidos na medida provisória e outros previstos em outras leis (como é o caso do Código de Defesa do Consumidor) ou mesmo na Constituição, o que só escalará o problema para um nível de insegurança jurídica ainda maior do que o supostamente combatido pela MP da liberdade econômica. Ao se alterar um código, faz-se necessário dialogar com sua estrutura principiológica, sob pena de se iniciar um processo de erosão desnecessário de seus fundamentos[2].

Vejam-se dois exemplos desse problema nos novos artigos 480-A e 480-B, que tratam da revisão contratual. Há farta e antiga literatura sobre o tema no Direito Civil brasileiro sobre o tema, especialmente sobre as diferentes teorias que servem de fundamento às hipóteses de modificação do objeto contratual por efeito da alteração superveniente das circunstâncias[3]. Com maior ou menor uniformidade, a doutrina nacional traçou diferentes modelos de aplicação da revisão contratual para as relações de consumo (teoria da onerosidade excessiva) e para as relações cíveis (teoria da imprevisão com teoria da onerosidade excessiva), adotando para estas últimas um rigor muito maior quanto à intervenção judicial na economia interna dos contratos. Basta observar que eventos macroeconômicos (inflação, alteração do padrão monetário, desvalorização da moeda, variação cambial e planos econômicos) não são admitidos como fatos imprevisíveis, o que limita e muito o poder de revisão ou de resolução negocial pelo juiz.

O artigo 480-A refere-se às “relações interempresariais”, afirmando que em seu âmbito “é lícito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de resolução do pacto contratual”. Há aqui um problema inicial: “relações interempresariais” é uma expressão sem maior uniformidade semântica. Além disso, o objeto do Código Civil compreende relações de Direito Civil e de Direito Empresarial, como resultado da uniformização legislativa no campo obrigacional, o que evidentemente não comprometeu a autonomia de ambas as disciplinas. De outro modo, a faculdade criada pelo artigo 480-A sempre foi exercitável pelas partes, independentemente de previsão legal. O problema está em como o Poder Judiciário examinará essas cláusulas. Ainda que haja tal previsão em lei, nada impede que o juiz considere que houve excesso, abuso ou desvio na redação de tais regras, o que não obstará sua intervenção.

O artigo 480-B, por seu turno, dispõe que, “nas relações interempresariais, deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida”. O caráter paritético das relações empresariais é a regra e só tem sido afastado em casos excepcionais (embora discutíveis) pela jurisprudência em situações que requalificam a relação jurídica para o Direito do Consumidor. A expressão “alocação de riscos”, embora não seja ignorada pela literatura mais recente, termina por deixar aberta a questão interpretativa, o que reconduz o problema já assinalado de uma fuga que se revela um retorno às cláusulas gerais.

Quanto ao artigo 423, a nova redação é a seguinte:

“Quando houver no contrato de adesão cláusulas que gerem dúvida quanto à sua interpretação, será adotada a mais favorável ao aderente.

Parágrafo único. Nos contratos não atingidos pelo disposto no caput, exceto se houver disposição específica em lei, a dúvida na interpretação beneficia a parte que não redigiu a cláusula controvertida”.

O caput do artigo 423 conserva um defeito lógico que já era objeto de críticas doutrinárias em sua redação original: será adotada a interpretação mais favorável aderente quanto houver, no contrato de adesão, cláusulas que gerem dúvidas interpretativas. Seria possível formular o seguinte raciocínio em sentido contrário: um contrato com cláusulas bem redigidas, induvidosas e claras que disponha objetivamente contra os interesses do aderente não será passível de interpretação a seu favor. A interpretação mais favorável está vinculada à existência de dúvidas, o que é um abuso de linguagem em termos de lógica. O erro redacional do artigo 423, caput, em seu texto primitivo, bem que poderia ter sido corrigido agora.

O parágrafo único é igualmente susceptível a este exame crítico, pois mantém a questão da dúvida como elemento determinante da reapreciação do texto da cláusula. Ademais, seria melhor usar a terminologia tradicional para contratos de adesão, ao contrário de se referir àquele que redigiu a cláusula controvertida.

Estas as considerações complementares à MP da liberdade econômica, todas oferecidas com o intuito de seu aprimoramento. A complexidade dos temas nela contidos e a necessidade de audiência da comunidade universitária é algo que se mostra imperativo.


[1] Veja-se que esse é um procedimento muito comum no Direito estrangeiro na hipótese de reforma de códigos, como se pode observar em: COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Alguns aspectos da lei para a modernização do direito das obrigações na Alemanha. Revista de Direito Privado, v. 12, n. 45, p. 147-161, jan./mar. 2011.
[2] Esse tipo de investigação baseada na genealogia das ideias que conduziram à estrutura de um código pode ser encontrada aqui: BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Liberdade contratual e sua funcionalização : orientação metodológica e linguagem utilizadas pela comissão elaboradora do Código Civil brasileiro. Revista brasileira de direito comparado, n. 38, p. 104-120 2010.
[3] BORGES, Nelson. Revisão contratual: conveniente (des)interpretação da cláusula rebus sic stantibus. Curitiba: Juruá, 2017; EHRHARDT JUNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque. Revisão contratual: a busca pelo equilíbrio negocial diante da mudança de circunstâncias. Salvador: Juspodivm, 2008; BARLETTA, Fabiana. Estudo comparativo da revisão contratual por excessiva onerosidade nos direitos brasileiro, português e italiano. Revista da Emerj, v. 10, n. 39, p. 120-149 2007; KHOURI, Paulo R. Roque A. A revisão judicial dos contratos no novo Código Civil, Código do consumidor e Lei n. 8.666/93: A onerosidade excessiva superveniente. São Paulo: Atlas, 2006. p. 28; RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: Autonomia da vontade e teoria da imprevisão. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 128-134; OLIVEIRA, James Eduardo C. M. Código Civil anotado e comentado: doutrina e jurisprudência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 497; BRITO, Rodrigo Toscano de. Onerosidade excessiva e a dispensável demonstração de fato imprevisível para a revisão ou resolução dos contratos. In. BARROSO, Lucas Abreu (Org.). Introdução crítica ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 119 e ss; MARQUES, Cláudia Lima. Sociedade de informação e serviços bancários: primeiras observações. Revista de Direito do Consumidor, n. 39, p. 49-74, jul./set. 2001; CASTRO MAGALHÃES, J. A cláusula “rebus sic stantibus”: parecer. Revista Forense, p. 45-46, jan./jun. 1920.

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    é coordenador da área de Direito da Capes, professor associado (livre-docente) em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil, com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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    é advogado, professor associado de Direito Civil na Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutor e mestre em Direito Civil pela Universidade do São Paulo (USP) e estágio de pós-doutorado na Università degli studi di Torino.

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