Tribuna da Defensoria

Tecnologia da informação como recurso ou obstáculo ao acesso à Justiça

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7 de maio de 2019, 8h00

Em nossa pesquisa sobre acesso à Justiça, já apontamos que os sistemas informatizados seriam um novo passo no modo de se prestar assistência jurídica, por causa da crise econômica que assola todo o mundo e a necessidade de se reduzir os gastos com o custeio da atividade[1].

Departamentos de call center, assistência jurídica on-line por meio de chats ou videoconferência e os sites interativos na internet que auxiliam o usuário a resolver simples problemas jurídicos (self help systems) são alguns dos diversos exemplos.

Estamos diante de um fenômeno novo e que caminha no rumo de muitas possibilidades a serem exploradas ao longo desse caminho. Na medida em que as alternativas tecnológicas evoluem, novas portas vão se abrindo e novas perspectivas vão surgindo para o futuro da assistência jurídica no mundo.

Atualmente, vários juristas, especialmente os que se dedicam ao estudo do Direito Processual, têm suscitado uma série de debates sobre a incorporação da tecnologia da informação no campo jurídico, e essa reflexão tem sido muito profícua, especialmente na aplicação da inteligência artificial no Poder Judiciário[2].

Quero, então, trazer esse debate para a realidade da Defensoria Pública e problematizar alguns aspectos essenciais a serem observados na aplicação da tecnologia da informação no contexto da instituição pública de prestação de assistência jurídica.

Várias Defensorias Públicas estaduais e a própria Defensoria Pública da União têm se utilizado da tecnologia da informação como forma de potencializar a prestação da assistência jurídica e facilitar o acesso de seus usuários. Desde uma maior interação em redes sociais com o exercício de um papel de educação em direitos; o uso de plataformas de comunicação digital (WhatsApp, Facebook e e-mail) para minorar as dificuldades da comunicação por carta e acelerar a transmissão da informação; o uso de sistemas de gerenciamento de informações para construção de bancos de dados no âmbito da instituição; além do uso de centrais telefônicas e outros canais para dúvidas, tudo feito como forma de ampliar o acesso aos serviços institucionais.

Embora a sociedade brasileira ainda não tenha alcançado o mesmo nível de sofisticação de algumas sociedades europeias e norte-americanas, onde o uso da tecnologia como forma de facilitação da vida cotidiana é empregado de forma massiva, entendo que esses avanços devem ser analisados a partir de uma série de premissas de infraestrutura base.

Apesar de ser extremamente pertinente admirar os avanços tecnológicos das nações mais desenvolvidas, é importante reconhecermos nossas limitações ao emprego atual de várias dessas soluções.

Infelizmente não somos um país de primeiro mundo. Em uma realidade onde quedas de energia elétrica são frequentes, talvez por causa de infraestrutura precária[3], fornecimento de serviço de internet não é completo, vide o fato de que o Plano de Banda Larga projetado em 2011[4] ainda não foi concretizado[5] e a cobertura de internet móvel também não está a pleno vapor[6], encontramos exemplos de infraestruturas básicas para o ambiente de tecnologia que não são satisfatórias.

Esse panorama serve como um verdadeiro pré-requisito. Não é admissível que um país queira implementar tecnologias e funcionalidades que possam ser utilizadas no cotidiano do serviço público e da própria Defensoria Pública como forma de facilitação de seu público-alvo se não há uma infraestrutura básica e segura. Do contrário, viveremos sempre com um serviço avançado que não será utilizado em sua plenitude.

Longe de pregar a tecnofobia, quero apenas demonstrar que as inovações tecnológicas no campo jurídico brasileiro dependem de medidas estruturais antecedentes, sob risco de se criar não um instrumento de acesso à Justiça, mas uma enorme barreira de segregação.

Aqui então destacarei alguns problemas característicos da atuação institucional que foram criados pela informatização da área jurídica e farei a devida correlação com os instrumentos do futuro que poderiam ser utilizados.

Primeiro, quero tratar dos atos de comunicação e peticionamento praticados pela Defensoria Pública. O Condege, um organismo extraoficial que congrega todos os defensores públicos gerais do Brasil, possui um regramento corporificado em seu termo de cooperação[7], estatuindo uma rede de conexão entre todas as Defensorias Públicas com vistas a proporcionar o peticionamento eletrônico quando o assistido reside em um estado, mas precisa demandar ou é demandado em outro.

A ideia do termo de cooperação é extremamente válida, especialmente para assegurar o caráter integral da assistência jurídica gratuita prestada pela Defensoria Pública. Todavia, a disparidade entre as diversas Defensorias Públicas e a interpretação restritiva dos órgãos administrativos dos tribunais é um primeiro obstáculo ao acesso à Justiça.

Não raras são as vezes em que a Defensoria Pública não consegue protocolizar a petição ou responder a uma intimação advinda de processo de outro estado em virtude da ausência de defensor público na comarca.

Trago, como exemplo, a Defensoria Pública do Paraná. A referida instituição não possui defensores públicos em todas as comarcas e, por tal razão, se vê impossibilitada de protocolizar petições quando o juízo de destino não tem membro da instituição em exercício.

Nesse caso, o fato de um defensor público do Rio de Janeiro não ter acesso ao processo eletrônico do Judiciário paranaense cria uma barreira de acesso à Justiça, já que o assistido que reside no estado do Sudeste não consegue apresentar sua manifestação processual porque o órgão jurisdicional paranaense é restritivo em relação ao recebimento de petições não encaminhadas pela via de seu sistema eletrônico.

O acesso ao processo eletrônico e o mecanismo de envio de petições ao Poder Judiciário precisa ser repensado sob a ótica da Defensoria Pública, levando em conta o princípio da unidade da instituição e o fato de ela poder atuar em todo o país, por meio das diferentes Defensorias Públicas estaduais. Cabe, então, ao Conselho Nacional de Justiça ser mais sensível ao acesso por parte dos necessitados e propor medidas tendentes a flexibilizar a utilização dos processos eletrônicos enquanto a Defensoria Pública não estiver devidamente estruturada em todo o país.

Outro caso recorrente e de difícil solução diz respeito à presença em audiências. Uma parte que reside no Rio de Janeiro e se socorre dos serviços da Defensoria Pública por ser economicamente necessitada por certo não terá condições de comparecer a uma audiência de conciliação ou instrução e julgamento realizada na Justiça amazonense por falta de recursos para custeio de seu deslocamento.

Não seria aqui o caso de potencializar o uso das videoconferências, hoje previstas nos artigos 236, parágrafo 3º, 385, parágrafo 3º, 453, parágrafo 1º e 461, parágrafo 2º do Código de Processo Civil, criando ambientes digitais nas comarcas de modo que o assistido possa comparecer ao juízo situado em seu domicílio e utilizar a infraestrutura estatal para participar de ato processual que se realiza em outra comarca?

A Defensoria Pública da União e Departamento Penitenciário Nacional contam com interessante projeto denominado Visita Virtual, onde a instituição facilita o acesso de detentos que se encontram reclusos em penitenciárias federais, permitindo-lhes o contato virtual com seus familiares.

Sem propor a fragilização do direito de presença daqueles que podem comparecer ao ato processual e da própria imediatidade que deve nortear a atividade instrutória produzida em audiência, a Defensoria Pública deve se organizar para, junto com os tribunais e demais órgãos públicos, investir em medidas de facilitação do contato e participação de seu público-alvo, utilizando-se da videoconferência em hipóteses de longas distâncias.

Um terceiro ponto que também gera problemas de acesso à Justiça são as propostas de adoção de mecanismos de auxílio ao usuário dos serviços públicos da Defensoria Pública. Diversas proposições sugerem o uso da inteligência artificial para orientar o assistido a preencher dados relativos ao seu litígio, montar petições iniciais que possam ser distribuídas nos juizados especiais e negociar acordos diretamente com a parte adversária.

Creio que medidas dessa natureza devam ser internalizadas pela Defensoria Pública como instrumentos colocados à disposição do membro da instituição, mas jamais apresentados como alternativa ao atendimento institucional.

Explico! Não se trata de defender uma posição corporativa ou antever uma possível redução da mão de obra institucional em virtude do uso da inteligência artificial. Na realidade, importa observar que parte do público-alvo da Defensoria Pública não possui compreensão e meios suficientes para utilizar programas de preenchimento de petições (compreender a natureza do seu litígio e as postulações adequadas) e negociar diretamente com robôs com aptidão para avaliar a pertinência de propostas de acordo.

Mauro Cappelletti e Bryant Garth já apontavam em sua pesquisa sobre as ondas renovatórias[8] que a aptidão para reconhecer e buscar a tutela de direitos era um obstáculo ao acesso à Justiça:

A “capacidade jurídica” pessoal, se se relaciona com as vantagens de recursos financeiros e diferenças de educação, meio e status social, é um conceito muito mais rico, e de crucial importância na determinação da acessibilidade da justiça. Ele enfoca as inúmeras barreiras que precisam ser pessoalmente superadas, antes que um direito possa ser efetivamente reivindicado através de nosso aparelho judiciário. Muitas (senão a maior parte) das pessoas comuns não podem — ou, ao menos, não conseguem — superar essas barreiras na maioria dos tipos de processos (25). Num primeiro nível está a questão de reconhecer a existência de direito juridicamente exigível. Essa barreira fundamental é especialmente séria para os despossuídos, mas não afeta apenas os pobres. Ela diz respeito a toda a população em muitos tipos de conflitos que envolvem direitos. Observou recentemente o professor Leon Mayhew: “Existe um conjunto de interesses e problemas potenciais; alguns são bem compreendidos pelos membros da população, enquanto outros são percebidos de forma pouco clara, ou de todo despercebidos” (26). Mesmo consumidores bem informados, por exemplo, só raramente se dão conta de que sua assinatura num contrato não significa que precisem, obrigatoriamente, sujeitar-se a seus termos, em quaisquer circunstâncias. Falta-lhes o conhecimento jurídico básico não apenas para fazer objeção a esses contratos, mas até mesmo para perceber que sejam passíveis de objeção.

Dentre as inúmeras hipóteses de vulnerabilidade tuteladas pela Defensoria Pública, medidas tendentes ao uso da inteligência artificial podem estimular o surgimento de vulneráveis digitais, pessoas que deixam de buscar a tutela de seus direitos por não terem a compreensão e aptidão necessárias ao manuseio de novas tecnologias.

Cabe à Defensoria Pública trazer essas tecnologias para o seu cotidiano como forma de tornar sua atividade mais eficiente e menos onerosa, mas sempre oferecendo seu atendimento presencial àqueles que não se sintam aptos a manusearem instrumentos digitais.

Em outra oportunidade, continuaremos a reflexão a respeito da tecnologia da informação e sua utilização no cotidiano da atividade-fim da Defensoria Pública.


Autores

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    é defensor público do estado do Rio de Janeiro, mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professor da Universidade Candido Mendes, da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e de cursos preparatórios para a carreira da Defensoria Pública.

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