O assunto “direitos autorais e direitos de imagem” interessa a todos os escritores e criadores em geral. Enfim, quem cria alguma coisa tem de ser preservado. E protegido economicamente. Como escritor de dezenas de livros e centenas de artigos, fico pensando no ato de criação cultural a cada vez que “pego na caneta”.
Quantas coisas que crio são simplesmente apropriadas em salas de aula, textos e livros? Bom, esse é o risco de quem escreve. Se todos seguissem o “fator água mineral” — citando as respectivas fontes —, não melhoraria o bolso do criador, mas ajudaria talvez em aumentar o seu fator H (o meu hoje está em 30, nada mal, de todo modo) no Google acadêmico, medidor do índice de citações.
Por que escrevo sobre isso? Para me colocar no lugar dos intérpretes do audiovisual. O sujeito que interpreta um personagem o faz de forma única. Grava uma vez e depois a TV e outras formas o espalham pelo mundo. Ele não deveria receber por isso? Na Espanha, Colômbia, Itália isso já é garantia dos criadores faz muito tempo. No Brasil estamos avançando. Explicarei no decorrer deste texto.
A criação artística é um ato irrepetível e representa a interpretação do mundo pelo olhar do seu criador. Para a proteção tanto do criador quanto do resultado do ato (a criação), se desenvolveu um sistema jurídico que foi se tornando universal com algumas poucas diferenças entre dois grupos distintos: o direito de autor europeu continental e o direito inglês nomeado copyright. O surgimento das duas escolas em países diferentes fez com que a lógica de cada um deles os exportasse para o mundo.
Há um primado lógico dos sistemas que é o fato de que, quanto mais se explora economicamente a obra do criador, mais ele deve ser remunerado, de forma proporcional aos demais sujeitos que contribuíram numa determinada cadeia produtiva. Isso porque antes de o sistema surgir, ao longo do século XVIII, os artistas eram remunerados da forma que os seus contratantes — em geral a corte e a alta nobreza, no contexto europeu — os remuneraria. O sistema veio a modificar e instituir esta lógica de equilíbrio e proporcionalidade em todas as atividades criativas submetidas ao direito de autor.
Ora, desta forma, os escritores, os músicos, os artistas plásticos e vários outros profissionais da criação são remunerados também de forma proporcional pela exploração da obra comercial. Isso ocorre em diversos países. Em muitas ocasiões — quando o controle não pode ser individual pela sua enorme proliferação —, a forma de remuneração se dá por um sistema de administração de direitos denominado de gestão coletiva.
No caso dos atores e demais criadores do audiovisual, essa lógica também é aplicada correntemente em diversos países. Menos, como sói ocorrer, no Brasil.
O turning point em 3/12/2018
De fato, estávamos atrasados até o dia 3 de dezembro de 2018. Nesta data, o então MinC concedeu às associações de gestão coletiva dos criadores do audiovisual, compreendidos entre estes os diretores, roteiristas e os atores, a possibilidade de exercício do direito de cobrança dos direitos pelas explorações das obras audiovisuais. O nome desta autorização prevista em lei que modificou substancialmente a lei de direitos autorais é habilitação. A concessão, pois, se deu no bojo de processo administrativo.
Essa mudança de paradigma propicia(ria) a proteção efetiva para os criadores e, como consequência, de regulação das relações jurídicas. Não é, porém, o que ocorre com o ato do secretário do qual falarei na sequência.
No caso específico dos intérpretes do audiovisual, seus direitos, já a caminho de uma universalização por conta do Tratado de Beijing surgido em 2012 e da aplicação deste sistema em mais de 40 países, vinham sendo combatidos no Brasil sob o argumento de que o autor da obra seria originalmente o produtor audiovisual e, portanto, a lógica da remuneração proporcional não deveria ser aplicada. Há aqui um grande equívoco, pois o produtor da obra audiovisual, como se pode imaginar, não é criador e, portanto, não poderia, nunca, ser o detentor deste direito na origem, ocorrendo, portanto, uma permissão de exploração da obra de audiovisual. Não mais do que isso. Simples assim.
Já é tempo de entender que o sistema brasileiro de direitos autorais é vinculado às ideias europeias continentais altamente protetivas da figura do criador, o que inclui, obviamente, também os intérpretes dos papéis que representa. Qualquer outro argumento de outra ordem aponta para uma evidente inconstitucionalidade.
Como se vê, há uma lógica perversa no sistema em relação aos atores, pois eles, seja em que país for, são sempre dependentes de uma relação contratual.
Veja-se: a profissão de ator implica necessariamente em uma submissão. Isso não ocorre com os advogados, médicos, economistas, somente para citar algumas outras profissões.
O ator, sim, sempre se submete a um empregador ou contratante. Como consequência, e lembrando que o sistema é dominado pela indústria, o ator se submete a assinar os contratos que lhes são apresentados.
Ora, é rara a situação em que um ator negue trabalho. Impossível, porém, a situação em que ele possa negociar seus direitos no que se refere à transferência ou não deles. Nem vale aqui entrar no mérito se há ou não permissão legal de cessão de direitos autorais sem qualquer pagamento adicional quando ocorrer o uso das obras criadas ou interpretadas. Minha posição é que não pode haver a cessão, mas, sim, uma permissão de circulação da obra. Porém, para o que pretendo expor, basta pensar que a cessão não é, em qualquer circunstância uma obrigação.
Na lei brasileira, portanto, se ela não é uma obrigação nem é determinada compulsoriamente pela lei, a forma de negociar direitos seria, no mínimo, objeto de possível negociação. Pois não é. O que há é uma assimetria que impossibilita ao ator negociar as condições, em especial no que se refere à cessão. Portanto, se o ordenamento brasileiro não presume que os direitos se transferem ao produtor, deveria haver margem para negociação, mas, se ela não é possível, o sistema de direitos de autor e direitos conexos trabalha, neste caso, contra aquele que propriamente dá nome ao sistema. Poderia ser chamado então de direito contra o autor e contra os intérpretes!
O mundo avançou e o Brasil ficou para trás. Só no ano passado é que houve a autorização estatal para que a associação dos atores pudesse arrecadar direitos sob a forma de gestão coletiva. O mesmo ocorreu com as associações de diretores e roteiristas.
O ato administrativo respeitou a lei que determina a concessão da autorização e, por ser um ato vinculado (artigo 98-A, Lei 9.610/98), a autoridade fez a análise das exigências legais.
E então veio a frustração. O secretário de Cultura suspendeu a autorização dada por seu antecessor.
Despiciendo lembrar o que diz a CF, Art. 5º, XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar — faltou só a Constituição dizer “bingo”.
Além da garantia constitucional dos direitos autorais em si, complementa o texto constitucional no inciso seguinte (XXVIII): são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas.
Ora, a participação individual é aquela que ocorre em obra que tenha o seu conceito de obra coletiva entendido como criada por vários participantes, mas organizada por um sujeito em particular. O criador ou intérprete, de modo individual, possui o direito de ser protegido, o que inclui a sua remuneração. É até mais abrangente a CF, pois conduz à mesma lógica para as atividades desportivas.
A consequência da evidência econômica sobre o tema aparece na alínea seguinte, que impõe o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras e interpretações: b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas.
Ora, em verdade, quanto mais o Estado deixa de atuar nesta seara, mais fragilizado fica o criador do audiovisual.
À toda evidência, outros setores já são contemplados com a argumentação constitucional evidente protetiva do criador. E volto a perguntar, por que o mesmo não ocorreu com o setor audiovisual?
A resposta é simples: porque no caso do audiovisual a relação contratual mercadológica começa com o empregador, diferentemente dos outros. E daí se compreende por que o setor audiovisual não conseguia sequer discutir uma temática e direitos de natureza tão evidente.
Mas a pressão é enorme e o poder público muitas vezes sucumbe, mesmo diante dos mais elementares direitos.
A política é um terreno muitas vezes de difícil compreensão. É um universo de importantes decisões e representações, mas não pode dominar o universo do Direito, assim como a moral não pode ser responsável pelas dificuldades de se aplicar o Direito. Bato nessa tecla há décadas. Não são poucos, porém, os terrenos em que a política pretende — às vezes de forma planejada — invadir o terreno jurídico açoitando-o verdadeiramente.
Observe-se que o agente público informa, ao aplicar o efeito suspensivo no já citado processo administrativo, que o “objeto do processo encerra matéria com certo grau de ineditismo no cenário nacional”. Ora, essa “fundamentação” é de espantar, pois certo grau de ineditismo é conceito realmente inovador no Direito, mormente no Direito Administrativo de Pindorama.
No mais, que ainda assim se considerasse a existência de ineditismo, o mais prudente seria exatamente não aplicar efeito suspensivo, considerando que todas as decisões anteriores foram no sentido da concessão da habilitação.
Quem suspendeu a autorização que os artistas tinham conseguido foi o secretário de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual, Mauricio Carlos da Silva Braga. Diz ele que o efeito suspensivo era cabível porque o ato poderia “vir a gerar a necessidade futura de a Administração desfazer atos e realizar compensações”. Ora, excelência, aqui cabe a pergunta: como assim, se o único ato que desfez atos anteriores foi justamente a decisão que suspendeu a concessão da habilitação?
A decisão, pois, deveria ser cuidadosa, para inibir prejuízo de difícil ou incerta reparação e o que promove? Prejuízo imediato e muito mais do que incerta reparação?
Ora, o ato do secretário é que leva os atores novamente à posição de hipossuficiência e os catapulta à velha assimetria sistêmica dos direitos autorais.
Hoje, para alguém fazer uma camisa vintage de um jogador de futebol colocando o nome às costas, é preciso autorização do atleta. Já o artista faz uma novela e depois a emissora passa dezenas de vezes no seu canal, vende-se para o exterior e… o coconstrutor da obra nada recebe. Uau. Pois então, senhor secretário, havia mesmo periculum in mora… Só resta saber para quem…?
Numa palavra: parafraseando Mark Twain, no apocalipse quero estar no Brasil. Aqui tudo chega com anos de atraso. Inclusive o pagamento de direitos autorais como expliquei acima.
Com a palavra, o secretário Maurício.