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A crise de credibilidade no sistema de Justiça brasileiro

Autor

  • Ricardo Prado Pires de Campos

    é procurador de Justiça aposentado presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático e professor de Direito com mestrado em Processo Penal. Foi promotor do júri por uma década tendo atuado no 1º Tribunal do Júri de São Paulo.

6 de maio de 2019, 13h04

Não é novidade que o Brasil se arrasta faz anos numa crise profunda, de natureza econômica, política e jurídica. E embora se costume marcar o advento da crise com as revelações da operação "lava jato", o certo é que tais eventos começam muito antes. A "lava jato" somente trouxe para a luz do dia fatos que ocorriam na calada da noite na capital da República e em muitos outros rincões de nosso país.

O Brasil tem passado por crises recorrentes, todavia, nunca houve tamanha clareza sobre as razões desses eventos.

Desvios de conduta por parte dos gestores públicos sempre estiveram presentes em nossa história. No entanto, para que o sistema político e jurídico continue funcionando, é necessário que os autores dos desvios sejam punidos e, principalmente, afastados das funções públicas.

Para que as lideranças sejam obedecidas, é necessário que gozem de credibilidade junto à população, que as pessoas lhes devotem respeito e consideração; do contrário, o uso da força tornar-se-á recorrente; e aí não teremos um Estado de Direito, mas um Estado ditatorial.

O Brasil é uma democracia e um Estado de Direito que está vigente faz décadas, mas que, neste momento, padece de uma crise de legitimidade sem precedentes.

É verdade que, em relação aos Poderes Executivo e Legislativo, houve uma significativa renovação nas últimas eleições, o que, ao menos temporariamente, lhes concedem certa dose de tolerância e esperança.

Necessário registrar, todavia, isso já nos parece claro, embora nem todos tenham se dado conta: as eleições dão legitimidade aos eleitos para assumirem os cargos que disputaram e venceram, mas não lhes dá legitimidade para fazerem o que quiserem no exercício do cargo. A eleição não concede um mandato ilimitado, pois há diversas limitações. Os eleitos estão obrigados a obedecerem à Constituição e às leis do país; estão sujeitos aos limites de gastos fixados nas leis orçamentárias e de responsabilidade fiscal; e estão vinculados aos compromissos assumidos com a população durante o pleito eleitoral.

Portanto, se qualquer dos eleitos se afasta desses compromissos, pode perder sua legitimidade e estar sujeito à perda do cargo. Os tais “crimes de responsabilidade”, previstos na lei respectiva, não são necessariamente “crimes” no sentido técnico penal, não estão sujeitos à pena de prisão, mas, sim, à perda do cargo e dos direitos políticos (artigo 2º da Lei 1079, de 1950).

Os crimes de responsabilidade são, primordialmente, atos de abuso do poder, condutas que atentam contra o regular funcionamento da democracia e de suas instituições e que podem configurar — ou não — crimes da legislação penal ordinária.

Pois bem, se as eleições do final do ano passado trouxeram algum alento e esperança para parcela significativa da população nos novos membros eleitos para os Poderes Executivo e Legislativo, o mesmo não se pode dizer no que toca ao Poder Judiciário.

Nossa Constituição prevê que os membros dos tribunais superiores, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, sejam nomeados pelo presidente da República, após aprovação pelo Senado Federal, mas seus mandatos são vitalícios, não há previsão de término, salvo pela aposentadoria compulsória, atualmente aos 75 anos de idade. Temos no STF, atualmente, ministros com mais de 20 ou 30 anos de exercício no cargo.

Quando o nomeado exerce suas funções condignamente, não há problema, mas, quando não, cria-se uma crise de difícil solução.

Parece-nos que é quase unânime a sensação de que o STF passa por uma crise de legitimidade sem precedentes. Os julgamentos televisionados trouxeram fama para o tribunal e seus ministros, mas muitos de seus pronunciamentos, especialmente aqueles beneficiando pessoas envolvidas em atos de corrupção, levaram vários de seus membros ao mais completo descrédito.

O pior é que isso contamina a instituição e prejudica a imagem do sistema vigente.

Como solucionar o difícil impasse no qual nos encontramos? A solução está na própria Constituição.

A Constituição Federal, em seu artigo 52, inciso II, dispõe que compete privativamente ao Senado Federal “processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal […] nos crimes de responsabilidade”[1]; e a Lei 1.079, de 10 de abril de 1950, em seu artigo 39, define quais são esses crimes:

Art. 39. São crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal: 1- altera, por qualquer forma, exceto por via de recurso, a decisão ou voto já proferido em sessão do Tribunal; 2 – proferir julgamento, quando, por lei, seja suspeito na causa; 3 – exercer atividade político-partidária; 4 – ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo; 5 – proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decôro de suas funções.

Diante dos textos previstos no ordenamento jurídico do país, não há dúvida de que a saída para a crise do sistema de Justiça está nas mãos do Senado Federal. É imperioso que os senadores exerçam a competência que lhes foi outorgada pela Constituição Federal. Pelo sim ou pelo não, cabe ao Senado Federal apurar as condutas imputadas a alguns ministros dos tribunais superiores e dizer da procedência ou não das acusações. Muitas dessas acusações estão na mídia, nas redes sociais, e são de conhecimento da população. Fatos relevantes não podem passar desapercebidos como se não existissem. E até o momento não vieram a público quaisquer explicações, dos personagens envolvidos, em estranhas histórias que não dignificam suas funções.

É chegada a hora de debater com consistência os critérios de nomeação das mais altas autoridades do sistema de Justiça e, também, o prazo de duração de seus mandatos. A renovação pode trazer insegurança, mas traz esperança de dias melhores, o que é imprescindível. A segurança de que os dias ruins continuarão não é alentadora. Não é uma garantia que se possa comemorar.

Existe um princípio importantíssimo no Direito, que é o princípio da responsabilidade, de que as pessoas respondam por seus atos e pelas consequências de suas condutas[2]. Toda vez que se cria uma hipótese de irresponsabilidade, geradora de impunidade, principalmente de agente público, instaura-se uma crise no sistema.

A Constituição Federal exige que os ministros dos tribunais superiores detenham “reputação ilibada” (artigos 101 e 104, parágrafo único), portanto, se há alguma suspeita de que isso não esteja ocorrendo, ela deve ser apurada.

Necessário registrar que há diversos ministros das cortes superiores, inclusive do STF, contra quem nada de irregular tem sido apontado; todavia, estão pagando o desgaste da imagem suportada pelo tribunal.

Todo o poder público está sujeito a dois tipos de controle: interno e externo. Se o próprio tribunal não consegue controlar a conduta de seus membros (e permitir decisões monocráticas foi um desastre), então a ação do controlador externo se torna imprescindível, e esse controle, nos termos da Constituição Federal, é atribuição do Senado Federal.

A situação em que nos encontramos continua particularmente grave e exige providências das autoridades constituídas que detêm poder para solucionar o problema. Impeachments são procedimentos traumáticos, mas dão sobrevida às democracias. Sem eles, a situação fica insustentável. Já tivemos dois presidentes da República cassados, depois da Constituição de 1988, e a democracia sobreviveu. Senadores e deputados que perderam os mandatos foram inúmeros, mas, recentemente, passou-se a permitir que permanecessem nas funções mesmo depois de condenados criminalmente, o que é outro fator de descrédito das instituições.

Sem confiança e credibilidade, os sistemas operacionais da nação (financeiro, jurídico e político) não funcionam a contento. As crises prosseguem se sucedendo, e os resultados são sempre insatisfatórios.

Para que o Brasil venha a entrar para o primeiro mundo do desenvolvimento, é necessário que suas instituições funcionem a contento e seus mecanismos de controle exerçam efetivamente seu papel.

O Senado Federal detém a obrigação constitucional de apurar e julgar as denúncias apresentadas contra os membros dos tribunais superiores, inclusive para preservar a honorabilidade dos demais ministros e permitir que os tribunais voltem a funcionar condignamente.


[1] Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
II processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).
[2] Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.
Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).

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