Opinião

Cumpre aos três Poderes coibir eficazmente abusos de autoridade

Autor

6 de maio de 2019, 14h10

No ano de 476, o chefe bárbaro Flávio Odoacro invadiu a capital do Império Romano do Ocidente, provocando seu colapso. O território imperial, cuja extensão abarcava quase todo o mundo conhecido à época, fracionou-se em múltiplos pedaços, logo ocupados por distintas forças que passaram a dominar os diversos povos antes submetidos a um comando central.

Tem início então a Idade Média, que perdurou até 1453, data da tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, período caracterizado por uma extraordinária pulverização do poder. Ao longo de quase mil anos prevaleceu aquilo que Georg Hegel (1770-1831) denominou de "poliarquia", correspondendo a uma multiplicidade de ordens e jurisdições, a exemplo de reinos, feudos, comunas, guildas, prelazias e irmandades em permanente disputa pela autossuficiência, emancipação ou supremacia.

Com o advento do Estado moderno, nos estertores do medievo, a autoridade voltou a concentrar-se. Primeiramente, nas mãos de monarcas absolutistas, que a exerceram sem quaisquer limites. Depois, como consequência das revoluções liberais do século 18, viu-se enquadrada por normas constitucionais. E para evitar o ressurgimento de autocracias, foi repartida, por inspiração do barão de Montesquieu (1689-1755), entre três poderes independentes, Legislativo, Executivo e Judiciário, cada qual representando, no desempenho de suas atribuições, uma parcela da soberania popular.

Nos dias atuais, contudo, esse tradicional modelo de governança, concebido para funcionar como um sistema de freios e contrapesos, começa a ser colocado em xeque, não apenas no Brasil como em outros países, pelo ressurgimento de uma nova e perniciosa fragmentação do poder, em que distintas corporações — consideradas no seu sentido lato — ensaiam uma espécie de retorno à poliarquia de antanho.

Já no começo da centúria passada, Max Weber (1864-1920) anteviu tal fenômeno, vaticinando uma preocupante expansão dos estamentos burocráticos, sobretudo estatais, com o potencial de colocar em risco a própria ordem democrática. Advertia que o "poder da burocracia (…) é sempre muito forte", acrescentando que ela "procura aumentar ainda mais essa superioridade (…) ao guardar segredo sobre seus conhecimentos e intenções".

Mais recentemente, Claude Lefort (1924-2010), outro estudioso do tema, observou que a burocracia não constitui simplesmente uma forma de organização social, configurando antes um modo particular de dominação, que tende a expandir-se em momentos de crise política. Essa dominação se expressa não apenas nos micropoderes dos burocratas de pequeno e médio escalão, mas especialmente no macropoder de seus hierarcas, cuja atuação é pautada por um projeto de autopreservação e contínuo fortalecimento.

Entre nós, certos estamentos, na acepção sociológica da palavra, como ministérios públicos, órgãos de fiscalização, polícias em geral, guardas municipais, agências reguladoras, repartições fazendárias, setores do funcionalismo e até mesmo segmentos da magistratura, nos últimos tempos, vêm ampliando sua atuação, sem maiores obstáculos, mediante diferentes pretextos, para muito além das respectivas esferas de competência, transmudando-se em verdadeiros — embora anômalos — atores políticos.

Na esteira das conjecturas de Weber e Lefort, é possível constatar que hoje a hipertrofia de algumas dessas corporações mostra-se cada vez mais evidente, permitindo entrever que elas, ou ao menos parte delas, no limite, almejam a completa autonomização.

Cumpre aos poderes constituídos — os quais ainda se resumem aos três originalmente idealizados por Montesquieu — tornar a inseri-las nos lindes de onde têm extrapolado com inusitada desenvoltura, sobretudo por meio de medidas que visem a coibir eficazmente abusos de autoridade, sob pena de chegar-se a um irreparável esgarçamento institucional.

*Artigo originalmente publicado na edição desta segunda-feira (6/5) do jornal Folha de S.Paulo

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!