Segunda Leitura

No Direito, professor não é juiz, e juiz não é professor

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de maio de 2019, 8h00

Spacca
Aviso, desde logo, que a análise que aqui se faz nada tem a ver com juízes que são professores. Exercer essas duas atividades, sendo a de professor a única que se permite a um juiz (Constituição, artigo 95, inciso I), sempre me pareceu positivo ao que ensina e aos que aprendem. Aos que conseguem acumular as duas atividades, sem que uma delas fique prejudicada, nada do que está adiante escrito se aplica.

Aqui o foco é outro, absolutamente diverso. Vou tratar daqueles que, no exercício de sua profissão, lançam-se em arriscados voos, a críticas ou tentativas de dar soluções para a outra, muitas vezes de forma inadequada, por pretensão ou desconhecimento. Restringindo a análise ao nosso restrito âmbito do Direito, vejamos como se dão estas indevidas incursões.

O magistério, em qualquer nível ou matéria, é a base da evolução da sociedade. A luta de Confúcio (551-479 a.C), há 2.500 anos, para transformar a sociedade da China de seu tempo através da educação, continua mais atual do que nunca.

No Direito, ninguém há de negar a relevância do mestre. A transmissão dos conhecimentos jurídicos, adquiridos em toda uma vida de estudos, abre aos alunos um novo horizonte. E, em meio ao Direito, porém além dele, passagens da vida, exemplos, orientações, vão sendo passadas e contribuindo para a formação do jovem que ali está a receber as informações.

A atividade do professor do Direito não tem limites. É comum avançar por áreas inexploradas, oportuno suscitar questões hipotéticas, para que sejam solucionadas à moda de Michael Sandel[1]. Ser zetético, ou seja, o “que busca, examina; que assume uma atitude intelectualmente investigativa, inquisitiva”[2]. Ao mestre é adequado teorizar, idealizar, deixar, enfim, que as mentes dos que o ouvem avancem sem limites na busca do conhecimento.

Todavia, este fantástico ir além nos sonhos e nas ideias não deve se situar apenas no plano do ideal e pretender que as ideias devam ser as adotadas nos julgamentos, criticando as decisões judiciais por não as adotar.

E mais. As críticas ao sistema de Justiça, que muitas vezes podem ser procedentes, devem ser seguidas de sugestão concreta para que ele possa ser aprimorado. Viagens intelectuais não podem ser levadas a sério, é preciso que sejam propostas factíveis e em consonância com a realidade social e econômica do Brasil.

Por exemplo, certa ocasião, em um painel, ouvi de respeitável pessoa da área acadêmica que os casos mais complexos, após a decisão do Supremo Tribunal Federal, deveriam ser submetidos a uma apreciação popular que decidiria se deveria ser aplicada. Surpreso com a proposta, já que não via que isso poderia ser exequível, perguntei como, onde e quem participaria dessa assembleia. Fiquei sem resposta.

Em outro momento, participando de banca de doutorado, ouvi sérias críticas à forma de julgamento nos juizados especiais cíveis da Justiça estadual. Pouco interessado com as múltiplas citações de importantes autores, perguntei ao arguido o que ele sugeria para substituir o sistema atual. Nada foi concretamente sugerido.

Tais situações, com enorme ausência de pragmatismo, são muito comuns. Os trabalhos acadêmicos, constantemente, limitam-se a criticar a legislação e as decisões judiciais, sem que ofereçam algo que aprimore o sistema. Ouvi de um professor da Universidade de Utrecht, Países Baixos, que atuava como diretor de uma revista eletrônica de administração da Justiça, que ele tinha dificuldades em aprovar a publicação de artigos de brasileiros, porque se limitavam a comentar e a fazer citações, sem nada propor ao final.

A propósito, uma boa forma de colaborar com o Poder Judiciário é realizar pesquisas científicas, por exemplo, sobre sua administração ou estatísticas das decisões. A FGV Direito Rio deu, neste particular, valiosa contribuição, analisando o tempo do andamento dos processos e recursos no Supremo Tribunal Federal[3].

No lado oposto, juízes não se contentam em decidir e pretendem fazer de suas sentenças ou votos aulas de Direito. O juiz é um agente político que recebe do Estado a missão de decidir os conflitos, sejam individuais ou coletivos. Essa é a sua missão.

No entanto, cada vez mais, o ato de decidir se transforma em um emaranhado de citações de doutrina ou de precedentes, ali colocados em razão da facilidade que a tecnologia oferece (ctrl+c e ctrl+v). O principal, que é o conflito posto, raramente é colocado de forma clara logo ao início. Disso resulta que o leitor não sabe exatamente o que se está decidindo.

Um parágrafo para a síntese da disputa entre as partes e outro para as provas produzidas são o essencial para a compreensão dos fatos e para avaliar se a motivação que virá a seguir está adequada. Contudo, a matéria de fato vem ficando cada vez mais reduzida e dando lugar a uma tese jurídica, que nem sempre está adequada à discussão.

Esta busca de ser professor através da decisão extrapola a função judicial, torna-a mais longa, sem necessidade alguma, e distante da realidade do processo. Esquece-se do seu papel principal, que é resolver a demanda, em linguagem simples e compreensível.

Sem nenhuma razão, também, fazer dos votos dados em julgamentos colegiados a oportunidade de exibir familiaridade com os autores consagrados no momento. Citar o professor alemão Niklas Luhmann para dar voto em pedido de auxílio de doença previdenciário não é apenas desnecessário como irá gerar a má vontade dos colegas da turma julgadora, que nunca se preocuparam ou talvez nem conheçam o sociólogo alemão.

Por outro lado, o juiz não está também obrigado a obter títulos acadêmicos, dar palestras ou publicar artigos para ser um bom profissional. Evidente que o estudo na pós-graduação lhe dará uma visão mais ampla do Direito. Mas poderá ser um excelente profissional e optar por uma atuação discreta, o que em nada o desmerecerá.

Em suma, magistério superior e magistratura são atividades importantes e de grande relevância. O importante é que acadêmicos e magistrados devem ter demarcadas as suas atividades, complementando-se nas diferenças, e não um procurando ser o outro.


[1] SANDAL, Michael. Justiça. O que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2015.
[2] ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Disponível em: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/zetetica-e-zetetico/18712 . Acesso em 4/5/2019.
[3] FALCÃO, Joaquim et alli. III Relatório Supremo em Números. O Supremo e o Tempo. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2014. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/12055/III%20Relat%C3%B3rio%20Supremo%20em%20N%C3%BAmeros%20-%20O%20Supremo%20e%20o%20Tempo.pdf. Acesso 4/5/2019.

Autores

  • Brave

    é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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