Opinião

Limites do sigilo entre médico e paciente para fins penais

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5 de maio de 2019, 6h51

O sigilo médico sempre foi consagrado pelas leis brasileiras, a fim de não expor a relação de confiança estabelecida entre o paciente e o profissional que o atende. Tanto é verdade que o Código de Processo Penal (1941) dispõe no artigo 207: “São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”. No tocante ao médico, o Conselho Federal de Medicina não permitia a quebra de confiança nem mesmo no caso de consentimento do paciente, ao menos quando pudesse comprometer este último no cenário criminal.

Como regra, o Conselho Federal de Medicina veda a exibição do prontuário ou ficha médica do paciente, salvo com o consentimento deste. Para tanto, editou a Resolução CFM 1.605/2000, contendo os seguintes principais artigos:

Art. 1º – O médico não pode, sem o consentimento do paciente, revelar o conteúdo do prontuário ou ficha médica.
Art. 2º – Nos casos do art. 269 do Código Penal, onde a comunicação de doença é compulsória, o dever do médico restringe-se exclusivamente a comunicar tal fato à autoridade competente, sendo proibida a remessa do prontuário médico do paciente.
Art. 3º – Na investigação da hipótese de cometimento de crime o médico está impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo criminal. (…)
Art. 5º – Se houver autorização expressa do paciente, tanto na solicitação como em documento diverso, o médico poderá encaminhar a ficha ou prontuário médico diretamente à autoridade requisitante. (…)
Art. 7º – Para sua defesa judicial, o médico poderá apresentar a ficha ou prontuário médico à autoridade competente, solicitando que a matéria seja mantida em segredo de justiça” (grifamos).

Diante dessas normas, sempre defendi que o médico não deve enviar o prontuário do paciente ao juiz, seja de que vara for. E mais: em particular no âmbito criminal, tratando-se de autoria do crime (ou circunstâncias pessoais do agente, como personalidade, conduta social etc.) há de se preservar o sigilo médico. Assim sendo, a proibição de depor, para guardar segredo, sempre envolveu o médico quanto ao seu paciente.

Por outro lado, cuidando-se de prova da materialidade do crime, nunca concordei com a omissão do médico, em nome do sigilo. Nem mesmo o advogado pode ocultar dados sobre a existência do crime (por exemplo, o cliente não pode guardar, impune, drogas ilícitas no escritório do causídico). Portanto, se houver um exame médico em mulher que acabou de abortar, não pode o profissional da medicina ocultar das autoridades a ocorrência do referido aborto. É a materialidade do delito. Deve enviar a ficha clínica ou prontuário a juízo (ou para instruir inquérito).

Argumentando ainda, se o assassino confessa o crime ao médico psiquiatra, este não pode mandar o prontuário do paciente para a Justiça, pois estaria quebrada, de vez, a confiança existente entre ambos. Mas se o paciente pretender esconder o cadáver no consultório do médico (materialidade), por óbvio, não há sigilo algum a protegê-lo.

Ocorre que, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública perante a 3ª Vara Federal de Florianópolis requerendo a declaração de inconstitucionalidade do artigo 4º da Resolução CFM 1.605/2000 e do parágrafo 1º do artigo 89 da Resolução CFM 1.913/2009, bem como para que o CFM não mais limite o acesso ao prontuário e ficha médica de qualquer paciente, quando houver requisição judicial. Assim sendo, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, deu provimento à apelação para declarar ilegal o referido artigo 4º da Resolução CFM 1.605/2000 e parágrafo 1º do artigo 89 da Resolução 1.931/2009, afirmando que o prontuário ou ficha clínica seja disponibilizado apenas ao médico nomeado perito judicial, quando houver requisição do juiz.

Surge então o artigo 4º da Resolução 1.605/2000, nos seguintes termos: “Se na instrução de processo criminal for requisitada, por autoridade judiciária competente, a apresentação do conteúdo do prontuário ou da ficha médica, o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz, para que neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento” (vide circular CFM-COJUR 16/2018).

Ora, a situação, hoje, encontra-se em verdadeiro conflito aparente de normas. Enquanto o artigo 207 do CPP veda o depoimento do médico acerca de seu paciente, o artigo 4º da Resolução 1.605/2000 (com nova redação) prevê a entrega do prontuário/ficha médica ao perito judicial. Há de se ponderar o seguinte:

a) se o médico deve guardar sigilo sobre seu paciente, não devendo depor a respeito, como pode enviar o prontuário/ficha médica ao perito judicial? É contraditório. Se deve ficar calado diante do juiz, não tem como prestar declarações por meio de prontuário. Daria no mesmo: falar sobre o paciente ou enviar os dados do paciente por escrito;

b) a ação civil contra norma constante em resolução do CFM tem o risco de não ter eficácia em face do artigo 207 do CPP, ou seja, por meio da resolução não haveria óbice ao envio do prontuário/ficha médica; porém, segundo o artigo 207 do CPP, não pode depor;

c) retirando-se do tema a referência à materialidade do crime, os médicos, pelo menos em seus consultórios, podem manipular dados para entrar (ou não) no prontuário do paciente; com isso, nada se conseguiria obrigando o profissional a enviar o texto a juízo. Pode ser remetido um prontuário vazio de dados.

Dar depoimento em juízo ou enviar, por escrito, o mesmo texto sobre o qual seria falado à frente do juiz são situações idênticas. Se o médico não é obrigado a depor sobre seu paciente, não pode, também, mandar o prontuário/ficha clínica ao perito judicial, expondo seu paciente.

Acima da resolução do CFM está o Código de Processo Penal.

Em conclusão, mantenho a minha ótica no tocante ao sigilo médico. Não se pode omitir dados quanto à materialidade de um crime. Pode o médico, lastreado no artigo 207 do CPP, recusar-se a enviar o prontuário/ficha médica do paciente caso diga respeito à autoria ou circunstâncias pessoais do delito.

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