Opinião

Por que querem o plea bargain ou o acordo penal no Brasil?

Autor

  • José Carlos Abissamra Filho

    é advogado criminal doutor e mestre pela PUC-SP ex-diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e autor de Política Pública Criminal - Um Modelo de Aferição da Idoneidade da Incidência Penal e dos Institutos Jurídicos Criminais (Juruá Editora).

3 de maio de 2019, 6h42

Porque não querem dar satisfações à sociedade. Não querem responder pelos seus atos. Querem praticar ilegalidades sem a responsabilidade posterior. Querem o silêncio e o anonimato das sombras, agindo impunemente.

Algumas das ilegalidades praticadas por essas operações midiáticas nunca chegaram ao Poder Judiciário — permanecendo até hoje no submundo jurídico — justamente por causa dos acordos penais celebrados.

Por outro lado, em sentido oposto, outras ilegalidades tornaram-se bastantes conhecidas justamente por serem confrontadas segundo as regras do Direito. Foi o que tornou possível a constatação da ilegalidade praticada pelo Juízo Federal da 13ª Vara Federal de Curitiba, quando tornou públicas conversas telefônicas interceptadas por ordem dele mesmo; ilegalidade manifesta quando confrontada com a Constituição Federal e com a Lei 9.296/96. Lembrando que constitui crime, a teor do artigo 10 dessa lei, “quebrar segredo da Justiça (…) com objetivos não autorizados em lei”.

Ora, essa ilegalidade foi verificada e ganhou a amplitude devida após confrontada segundo as regras do Direito — e, via de regra, ilegalidades são constatadas dentro do processo. Valendo ressaltar que dela adveio, ainda que não uma punição formal, pelo menos um constrangimento público. Tanto assim que o próprio juízo pediu desculpas pela ilegalidade. Disse, na ocasião: “Diante da controvérsia decorrente do levantamento do sigilo e da r. decisão de V. Ex.ª, compreendo que o entendimento então adotado possa ser considerado incorreto, ou mesmo sendo correto, possa ter trazido polêmicas e constrangimentos desnecessários. Jamais foi a intenção desse julgador, ao proferir a aludida decisão de 16/03, provocar tais efeitos e, por eles, solicito desde logo respeitosas escusas a este Egrégio Supremo Tribunal Federal” (pedido de quebra de sigilo de dados e/ou telefônico 5006205-98.2016.4.04.7000/PR — ofício 700001743752 — medida cautelar da Reclamação 23.457).

É isso. Se processo não existisse no Brasil, o juízo acima mencionado não se veria obrigado a prestar contas de seus atos à sociedade. Não fez isso por livre e espontânea vontade — ou por sincero arrependimento —, mas por constrangimento diante das barreiras do processo e do Direito.

O exemplo acima bem demonstra que aquele que exerce o poder tende a exercê-lo até encontrar limites; se não os encontra, exerce até o poder total, chegando ao totalitarismo. A finalidade do Direito é justamente criar regras, ou seja, limites, nesse caso, ao exercício do ius puniendi, para que o exercício do poder não se torne um exercício totalitário.

É por isso que essas pessoas não querem mais processo, mas, em vez disso, o tão falado plea bargain (ou o acordo penal), pois não querem passar pelo constrangimento público de dar satisfações à sociedade.

Processo exige esforço; observância da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37, caput, CF/88); exigindo, por exemplo, idoneidade na produção de prova; além de respeito à distribuição do ônus probatório, sendo esse preponderantemente — para não dizer totalmente — da acusação. Processo dá trabalho e é para dar mesmo, afinal, a constatação de uma ilegalidade não é algo simples. Há que se verificar a legalidade das provas, a existência delas, a cadeia de custódia da prova. Tudo isso em decorrência de um crime cometido e ante a perspectiva de uma condenação que retirará alguém do seu estado natural, a liberdade.

Segundo o então ministro Nilson Naves (HC 36.813/MG): “A tarefa de construir em direção à sentença condenatória é tarefa da acusação, é trabalho a ser desenvolvido principalmente em juízo”. Tudo tem que ser trazido às luzes do contraditório (artigo 155 CPP), sob pena de não se configurar “prova”. Nem tudo é prova e nem tudo é válido. As provas ilícitas, por exemplo, não são admitidas (artigo 157 CPP).

Esses que querem instituir o plea bargain estão justamente cansados de tudo isso, não querem mais o processo, porque não querem ser confrontados, não querem prestar contas de seu trabalho. Querem atuar nas sombras, nos porões, onde a ausência de publicidade impede que se enxergue as várias ilegalidades a serem futuramente discutidas e trazidas à tona no processo.

O processo garante espaço para as luzes democráticas via exercício do contraditório e da ampla defesa; o acordo penal, ao contrário, coloca de lado tudo isso, em detrimento justamente do maior interessado: o cidadão.

Na ausência de processo, a verdade não aparece, nunca, diante da preclusão da decisão que homologou o acordo. Uma vez celebrado o acordo penal, nada mais haverá para ser discutido. O réu assina e está tudo acabado.

Quem perde com isso? As luzes da democracia. Quem ganha? As trevas do poder totalitário, o qual será exercido por alguém desobrigado de observar a legalidade.

A lei, então — que ironia! —, dispensará a observância da própria lei!

Oxalá a sociedade não compre essa ideia que só vem em detrimento de si e em prol exatamente da ilegalidade.

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