Opinião

A finada Carteira de Previdência dos Advogados e a imoralidade administrativa

Autor

30 de junho de 2019, 7h39

Muito se fala de excesso de litigiosidade para explicar o grande número de processos que atolam o sistema de Justiça. Esse é um debate longo e que não teria lugar aqui. Certo é, no entanto, que um dos grandes contributos para o elevado número de processos em andamento no Poder Judiciário é a marginalidade do próprio Estado.

Emprega-se aqui a expressão marginalidade na acepção de delinquência civil, de contumácia no descumprimento da Constituição e das leis. Sim, isso mesmo. O Estado é, por estranho que possa parecer, um dos principais infratores do ordenamento, a ponto de se justificar a necessidade de uma infinidade de juízes especializados (da Justiça Federal e das varas da Fazenda Pública), notáveis recordistas em número de ações judiciais.

Daí se dizer, sem medo de exagero, que o Estado é um péssimo, senão o pior exemplo para os cidadãos.

Não foi diferente o que o Estado (agora nos referimos especificamente ao estado de São Paulo) fez com a classe dos advogados, que, ninguém se esqueça, são indispensáveis à própria administração da Justiça (artigo 133 da CF).

A despeito da clareza e importância desse princípio, consagrado na Constituição de 1988, o estado de São Paulo se esmerou em desrespeitá-lo, notadamente quando o assunto diz respeito à Carteira de Previdência dos Advogados, vulgarmente conhecida como “carteira do Ipesp”, sigla do órgão criado para a administração e pagamento dos benefícios correlatos, o Instituto de Previdência do Estado de São Paulo (depois rebatizado como Instituto de Pagamentos Especiais).

A carteira foi criada em 1959, pela Lei estadual 5.174/59. Tinha autonomia financeira e patrimônio próprio, com a finalidade de conceder aos advogados participantes uma aposentadoria complementar ao regime geral, garantindo também a segurança de seus dependentes, no caso de morte do titular.

O estado prometia aos advogados participantes que, cumpridas as carências e os aportes previamente estipulados por faixas, teria o participante uma aposentadoria de até dez salários mínimos, o que constituiu grande atrativo, sobretudo após a limitação dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social.

O patrimônio da carteira formava-se a partir de múltiplas fontes de receita; era composto dos aportes dos participantes, da conhecida “taxa de mandato” (recolhida por todo e qualquer advogado que juntasse procuração em juízo), uma parcela das custas processuais, também recolhidas em todos os processos em tramitação na Justiça estadual, além de doações, dotações e rendimentos advindos do próprio patrimônio acumulado.

De longa data já se ouvia que os recursos da carteira foram, ao largo do tempo, utilizados pelo estado de São Paulo para finalidades diversas, o que se deu, obviamente, sempre em prejuízo de seu patrimônio, este o manancial exclusivo dos benefícios de aposentação e pensão.

Mas o pior estava por vir.

Em 2009, o primeiro golpe. Por meio da Lei estadual 13549/2009, a carteira dos advogados foi colocada em “regime de extinção”, sendo vedado o ingresso de novos participantes e facultada a retirada daqueles participantes em gozo ou não de suas aposentadorias, mediante um deságio de “meros” 40%. Naquela ocasião, a Lei 13.549 foi questionada perante o STF, que, embora reconhecendo a constitucionalidade do deságio, afirmou a responsabilidade do estado pela abrupta alteração no sistema originalmente concebido.

Em si mesma considerada, a vedação para novas adesões não representou o malfeito. Mas a inovação legal àquela época assegurou a sobrevida da carteira para os que dela já participavam: aí estava armada a armadilha!

Incautos, cerca de 15 mil advogados permaneceram na carteira, submetendo-se a um novo sistema de capitalização imposto pela novel legislação, certos de que, embora o resultado final não fosse mais o originalmente prometido, ainda assim teriam a chance de se aposentar pelo Ipesp, sujeitando-se à nova sistemática de contribuições e às regras de transição impostas.

A essa altura, a carteira já não contava mais com os aportes proporcionais das custas processuais recolhidas, mantendo-se apenas com as contribuições individuais dos participantes e da taxa de mandato.

Neste ponto é importante não perder de vista que a taxa de mandato não provinha (e ainda não provém) de ninguém menos que os próprios advogados. Trata-se de sistema de distribuição solidária de ônus social, segundo o qual todos os advogados com atuação em juízo contribuem para a formação do patrimônio que garantia a aposentadoria dos advogados participantes da carteira ― estes, além da contribuição mensal individual, também se sujeitam ao recolhimento da taxa de mandato, de tal modo que duplamente concorreram para formar o patrimônio da carteira.

Eis que ao apagar das luzes de 2018 um novo e derradeiro golpe foi aplicado pelo estado de São Paulo. A carteira dos advogados foi definitivamente extinta pela Lei estadual 16.877/2018, até mesmo para aqueles participantes que já haviam implementado os requisitos para a aposentação entre 2009 e 2018! O direito adquirido? Às favas!

Como contrapartida, o estado, por meio da indigitada lei, propôs-se a restituir aos participantes os valores por eles aportados até então, corrigidos monetariamente. Mas só a parcela correspondente às contribuições mensais. Como se isso pudesse indenizar a subtração, à mão grande, do projeto de vida vendido a milhares de advogados cuja aposentadoria condigna era até então futuro sério e plenamente factível; desafortunados que se deixaram iludir pelo estado, acreditando na lisura da administração pública, notadamente porque deveria ser ela regida pelos princípios da legalidade e da moralidade, nos termos do artigo 37, caput, da Constituição Federal.

A ousadia estatal chegou ao ponto de, a par de extinguir a carteira e ceifar o projeto de vida dos participantes, reservar-se à administração a prerrogativa de restituir tão somente o valor das contribuições individuais, apropriando-se o estado das outras fontes de custeio da carteira, das parcelas das custas recolhidas até o início dos anos 2000 e também da taxa de mandato, em verdadeiro enriquecimento sem causa.

Deve-se aqui repetir: o estado surrupiou até mesmo a taxa de mandato por décadas recolhida ― aquela mesma que, por gênese legal, é paga pelos advogados em benefício dos próprios advogados.

A cereja do bolo, contudo, vem sempre no final: sem qualquer pudor, o estado de São Paulo baixou por decreto norma que condicionou a restituição dos valores (já artificialmente ressequidos) a uma renúncia genérica a todo e qualquer outro direito do participante em relação à carteira e sua gestora ― ela, a Fazenda Pública.

O Direito brasileiro não contempla o princípio da “irresponsabilidade civil” do Estado por atos praticados pela administração pública que resultem em prejuízos a terceiros. Longe disso, a Constituição prevê expressamente essa responsabilização, que, bem se sabe, é de ordem objetiva (artigo 37, parágrafo 6º, da CF).

Foi assim que, ao fim e ao cabo do velório do Ipesp e da carteira, os seus incautos participantes sofreram gravíssimos danos materiais e extrapatrimoniais; e o estado de São Paulo deverá agora indenizá-los, em uma nova avalanche de ações judiciais, por uma questão que poderia e deveria ser resolvida com um mínimo de bom senso e, sobretudo, de ética e moralidade administrativa. Eis, mais uma vez, a repetição daquelas práticas que fazem da administração pública o maior cliente do Poder Judiciário.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!