Opinião

Tratado de Tordesilhas não foi um exemplo de arbitragem

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30 de junho de 2019, 6h51

Alguns escritores, na ânsia de defender determinado posicionamento pessoal, afastam-se da técnica exigida para um bom trabalho de pesquisa, o qual, se presume, deve servir de reflexão e, principalmente, de formação do conhecimento. Não raro, na defesa da arbitragem, observa-se trabalhos que indicam, indevidamente, que o primeiro exemplo dela na história brasileira foi o próprio Tratado de Tordesilhas, com alguns mencionando, inclusive, que o país “é fruto de uma arbitragem”[1]. Até mesmo alguns escritores de língua espanhola derrapam no mesmo equívoco[2].

A arbitragem, como uma das diversas formas de resolução de conflitos, tem muitos méritos, e sua utilização deve ser incentivada nos casos em que ela se mostra capaz de propiciar uma alternativa melhor que o método tradicional promovido pelo Poder Judiciário. O Brasil, embora com atraso, avançou bastante no campo legislativo e jurisprudencial, no que diz respeito ao reconhecimento da importância da arbitragem e dos demais métodos de resolução de conflitos. Ainda assim é preciso progredir mais, em especial nas áreas trabalhista e de consumo, além de melhor conscientizar os profissionais de Direito quanto aos benefícios da sua prática e sua correta utilização (com respeito à imparcialidade, ética, observância dos princípios etc.). Na defesa das qualidades da arbitragem, no entanto, não é preciso incluir argumentos que não encontram fundamentos de base fática ou histórica.

A arbitragem, sabemos, exige um compromisso, por meio do qual as partes buscam um terceiro imparcial e independente para resolver o litígio. Esse terceiro (que pode ser um colegiado) atuará como árbitro, analisando os argumentos, as provas, e decidirá a disputa, lavrando uma sentença arbitral (antes impropriamente denominada de “laudo” arbitral). Nada disso, no entanto, se deu quando do Tratado de Tordesilhas.

No século XV, Portugal e Espanha (então Reino de Castela, Leão e Aragão) estavam lançando seus navios aos mares, na busca de nova rota para as Índias ou para a descoberta de outras terras, gerando alguns conflitos. Ambos chegaram ao tratado de Alcaçóvas-Toledo, de 1479-1480, pelo qual, entre outras coisas, combinavam o casamento de seus filhos[3] e dividiam o globo em duas partes: acima ou abaixo das Ilhas Canárias (posse espanhola), utilizando uma linha latitudinal (norte e sul). Todas as novas terras que se descobrisse ao sul daquele traçado pertenceriam a Portugal, e ao norte, à Espanha[4].

Fonte: Blog "Os Descobrimentos Portugueses"

Em 1492, Cristóvão Colombo, pela Espanha, descobre o Caribe, área que pelo tratado então vigente estaria localizado em águas pertencentes a Portugal. Os reis espanhóis, tentando garantir sua proeza, se apressam e pedem em sigilo ao Papa Alexandre VI, um espanhol da família dos Bórgias, uma bula papal reconhecendo seu direito sobre as terras descobertas e a descobrir, no que ultrapassar o limite de 100 léguas a oeste das terras portuguesas de Açores. Nesse sistema, a divisão inverte-se para a longitudinal (não mais norte e sul, mas, sim, oeste e leste). O Papa atende o pedido espanhol e lança a bula Inter Caetera, em 1493, impedindo qualquer nação de navegar naquelas águas a oeste sem a permissão da Espanha[5], sob pena de excomunhão (latae sententiae)[6]. Em troca, a bula exige que sejam enviados experientes homens para educar os novos povos na fé católica e na boa moral[7].

Fonte: Blog "Historitura"

A bula irrita Portugal, e o Rei João II protesta junto ao Papa, pedindo a revisão da bula, sem obter sucesso. Ao mesmo tempo, ele ameaça ação armada contra os navios espanhóis nas novas terras e exige dos monarcas de Castela, Fernando e Isabel I[8], um novo acordo. Fragilizada economicamente (a Rainha de Castela havia empenhado suas joias para financiar a empreitada de Cristóvão Colombo) e enfrentando a possibilidade de conflito com a França[9], a coroa espanhola não quer abrir uma nova frente de batalha e aceita negociar diplomaticamente com Portugal. Além disso, havia uma certa ligação familiar entre as duas coroas[10], o que acabou favorecendo um acordo, em 1494, na cidade de Tordesilhas[11].

Pelo Tratado de Tordesilhas, o mundo a ser descoberto é dividido entre os dois países, por meio de uma linha imaginária que corta o oceano pela metade, entre dois pontos: Cabo Verde (território português) e o Caribe (ilhas descobertas pela Espanha). Essa linha meridiana passaria, portanto, na metade do caminho, a cerca de 370 léguas a oeste de Cabo Verde. A parte oeste daquela linha pertenceria a Espanha, e a parte leste, à Portugal. Os espanhóis não se importam muito com a exigência portuguesa, pois sabiam que as descobertas de Colombo se localizavam muito além daquela marca.

Fonte: Blog "Pensamentos, Sentimentos, Reflexões, e Interesses"

Claro que o ajuste de Tordesilhas entre Portugal e Espanha, duas coroas católicas, necessitava da ratificação do Papa, tendo em vista a necessidade de alterar a bula Inter Caetera, que dava aos espanhóis possessões mais amplas. Além disso, com a homologação do Santo Padre, se tentaria combater a natural contestação dos domínios portugueses e espanhóis pelos demais reinos católicos, em especial Inglaterra, França e Holanda, que também dispunham de grande poderio marítimo. O Papa, ademais, exercia a autoridade de Deus na terra sobre todos os monarcas católicos, legitimando posses, casamentos e reinados[12], e, até por conta disso, no texto do tratado, os reis signatários indicam que quaisquer deles pode pedir o aval do Papa para selar o ajuste de pacificação, “…pondo suas censuras aos que contra ela forem ou procederem em qualquer tempo que seja ou possa ser”.

Essa linha imaginária do tratado, embora conturbada a sua precisão pela cartografia da época, garantiria como propriedade de Portugal, seis anos depois, a Ilha-Brasil, que viria a ser descoberta por Pedro Álvares de Gouveia (Cabral)[13]. Dois séculos mais tarde, ante a indefinição quanto ao exato traçado da linha de Tordesilhas nos mapas da época, a posse efetiva da área pelos colonizadores (em especial pela expansão das capitanias hereditárias e pela atuação desbravadora dos bandeirantes) e a natural observação dos acidentes geográficos (montanhas e rios), alterou-se a linha divisória entre Portugal e Espanha na América do Sul. Por consequência, os novos tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1778) acabaram fixando as fronteiras que mais se aproximam do que viria a ser o atual território brasileiro[14].

Fonte: UOL Vestibular

É preciso observar que o Tratado de Tordesilhas ocorreu em 1494, quando o Papa era o mesmo espanhol Alexandre VI, que permaneceu até 1503, quando foi sucedido pelo Papa Pio III (cujo papado durou apenas 26 dias, em razão de sua morte). Em outubro de 1503, assume como Papa o franciscano e italiano Júlio II. Com as viagens de Américo Vespúcio e Gaspar Corte-Real às novas terras descobertas por Cabral (1501-1504), Portugal tem uma melhor compreensão da vastidão e importância do novo território. Visando ratificar e garantir tal domínio, o Rei de Portugal, Manuel I (João II havia falecido em 1495), aproveitando-se de sua boa relação com o novo Papa, envia diplomatas para Roma em 1505, solicitando a ratificação do Tratado de Tordesilhas. Em 24 de janeiro de 1506, o Papa Júlio II emite a bula “Ea Quae”, reconhecendo o tratado[15].

Alguns dos demais reinos católicos não obedeceram as bulas papais, e nos anos seguintes fizeram ataques às terras teoricamente pertencentes a Portugal e Espanha, chegando a estabelecer colônias no novo mundo. O Rei da França, Francisco I, chegou a declarar que “o sol brilha em mim da mesma forma que no outro, e eu gostaria de ver a cláusula no testamento de Adão que me exclui da minha parte no Novo Mundo”, e usava tal argumento para justificar suas ações e autorizar o ataque de corsários aos navios de Espanha e Portugal que vinham das Américas[16].

É de se observar que, entre a assinatura do Tratado de Tordesilhas e sua ratificação papal, sucederam-se três diferentes papas. Até os reis de Portugal e Espanha já eram outros: respectivamente Manuel I e Joana (“a louca”). O Papa Alexandre VI não teve qualquer participação nas negociações de Tordesilhas em 1493-1494, e não se pode conceituar a atuação do Papa Julio II, já em 1506, como árbitro ou sequer mediador, pois nenhum desses sistemas de resolução de conflitos (ainda que em sua forma mais rudimentar) ocorreu no processo de ratificação do tratado.

Não foi constituída entre as partes uma convenção arbitral, não houve nomeação de árbitro ou tribunal para uma decisão futura, não foi instituído o tribunal arbitral, não ocorreu produção de provas, não existiu audiência com as partes, e não aconteceu uma decisão arbitral pondo fim ao conflito (eis que as próprias partes o solucionaram, sozinhas, mais de uma década antes de a bula ser emitida). Portanto, não houve nem sombra de qualquer arbitragem no episódio do Tratado de Tordesilhas.

E nem se confunda a referida atuação papal de Julio II, ao emitir a bula Ea Quae, com a atividade homologatória de um acordo, por parte de um árbitro. Para que um árbitro possa homologar um acordo entre as partes, fazendo-o em forma de sentença arbitral, é preciso que haja, por óbvio, um procedimento arbitral instituído[17], o que não foi o caso do tratado em questão entre os reinos de Portugal e Espanha.

A atividade acadêmica de formação exige a checagem dos dados e uma análise reflexiva sobre eles, de modo a permitir a evolução do pensamento e o necessário embate intelectual. A adolescente[18] arbitragem brasileira necessita ser bem compreendida pela comunidade jurídica, para que dela se possa extrair os melhores benefícios. Para isso, todavia, é necessário, como em todas as demais áreas do Direito, que seus contornos sejam precisos. Repetir muitas vezes um dado incorreto desfavorece o avanço da ciência, mas, ao contrário do que refere o famoso adágio popular, isso não vai transformá-lo em verdade. Ainda bem!


[1] Veja, por exemplo: Selma Ferreira Lemes (entrevistada por Alessandro Cristo e Elton Bezerra), "Advogado deve abandonar Processo Civil na arbitragem", (2013) ConJur; Jose Ferreira de Lima, "Arbitragem, a Justiça Privada" (CA 2010) 13; Marcelo Ricardo Escobar, "Arbitragem Tributária no Brasil" (Almedina, 2017) nota 276); Ivan Antonio Pinheiro, "Negociação e Arbitragem" (UFSC 2016) 58; Marcelo Barreto de Araújo, "Primeiras Linhas sobre a Arbitragem” (CNC 2018) 14; Matheus Sousa Ramalho, “Um Diálogo entre o Conceito de Jurisdição e a Arbitragem na Perspectiva do Ordenamento Jurídico Brasileiro” (<http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=e63e28f4e0b0bb9c>); entre outros.
[2] Belén Rodrigo, “El Tratado de Tordesillas y cómo repartió Portugal y Castilla” (2013) ABC Internacional; Juan Sebastian Elcano, “El Tratado de Tordesillas” (<http://blog.elcanolaprimeravueltaalmundo.com/el-tratado-de-tordesillas>); Website Hispanidad, “El Tratado de Tordesillas de 1494” (<http://www.hispanidad.info/torde.htm>).
[3] O tratado envolvia o casamento de Afonso, filho do rei português, então com quatro anos de idade, e Isabel de Aragão, filha dos reis espanhóis, com nove anos. O casamento acabou ocorrendo cerca de dez anos mais tarde, em 1490, em Évora, quando ele tinha 15, e ela, 20 anos. Afonso morreu um ano depois, aos 16 anos, de uma queda.
[4] Manuela Mendonça, “De Alcaçóvas a Tordesilhas: A Terra de Vera Cruz” (2004) HR 9(1) 21-34.
[5] William Henry Scott, “Demythologizing the Papal Bull "Inter Caetera”” (1987) PS 35(3) 348-356.
[6] Thomas Duve, “Treaty of Tordesillas” (2015) OPIL – OUP.
[7] Com menções dessa natureza, as “divinas” autorizações papais foram utilizadas como justificativas para muitas das atrocidades cometidas contra os povos indígenas nas Américas.
[8] O início do tratado realça o título completo dos reis espanhóis: “Dom Fernando e D. Isabel, por graça de Deus, Rei e Rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília, de Granada, de Toledo, de Valência, de Galiza, de Maiorca, de Sevilha, da Sardenha, de Córdova, da Córsega, de Múrcia, de Jaém, do Algarve, de Algeciras, de Gibraltar, das ilhas de Canária, conde e condessa de Barcelona, senhores de Biscaia e de Molina, duques de Atenas e de Neopatria, condes de Roussilhão e da Sardenha, marqueses de Oristán e de Gociano”.
[9] O Tratado de Barcelona de 1493, entre Espanha e França, era um acordo frágil e realmente acabou sendo revogado em 1495, motivando o apoio militar da Espanha em favor do Rei de Nápoles, na Itália, em sua disputa contra a França.
[10] A Rainha Isabel I, de Castela, era bisneta do ex-rei de Portugal, D. João I. Além disso, como mencionado anteriormente, os príncipes herdeiros das duas coroas, Isabel e Afonso, haviam se casado apenas quatro anos antes (1490).
[11] Lawrence A. Coben, “The Events that Led to the Treaty of Tordesillas” (2015) TI 47(2) 142-162.
[12] José Dalmo Fairbanks Belfort de Mattos, “O Recuo do Meridiano de Tordesilhas em face do Direito Internacional”.
[13] Íris Kantor, “Usos Diplomáticos da Ilha-Brasil – polêmicas cartográficas e historiográficas” (2007) VH 23(37) 70-80.
[14] Veja: S. Whittemore Boggs, “The Map of Latin America by Treaty” (1938) PAPS 79(3) 399-404 e Fernando Camargo, “As pendenga interminável: As demarcações do Tratado de Santo Ildefonso” (2003) SBPH, anais 235-240.
[15] Frances Gardiner Davenport e Charles Oscar Paullin, European Treaties Bearing on the History of the United States and Its Dependencies (TLE 2004) 107-111.
[16] Germán Arciniegas, Caribbean – Sea of the New World (Harriet de Onis tr, 3rd ed, AAK 1958) 118.
[17] Como corretamente se observa na atualidade, pelo artigo 30, 1, da Lei Modelo da Uncitral ou pelo artigo 28 da Lei de Arbitragem brasileira (Lei 9.307/96).
[18] Termo emprestado de Francisco José Cahali, Curso de Arbitragem (6th edn RT 2017) 30.

Autores

  • é juiz titular da 3ª Vara do Trabalho de Blumenau (SC), doutorando pela Universidade de Strathclyde (Escócia), mestre em Direito pela Universidade de Lisboa e vice-presidente da União Ibero-Americana de Juízes. Foi conselheiro do CNJ (2011-2013) e vice-presidente da AMB (2008-2010).

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