Observatório Constitucional

Diálogos constitucionais interpelam decisão sobre criminalização da homofobia

Autor

  • Christine Peter da Silva

    é doutora em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília professora titular de Direito Constitucional do UniCeub-DF e secretária-geral do Tribunal Superior Eleitoral.

29 de junho de 2019, 8h00

O julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, de relatoria do Ministro Celso de Mello, e do Mandado de Injunção 4.733, de relatoria do Ministro Edson Fachin, marca o primeiro semestre de 2019 com uma decisão antológica do Supremo Tribunal Federal.

A análise que se propõe, a partir de temática tão controvertida, direciona o olhar dos leitores dessa coluna do Observatório da Jurisdição Constitucional para a teoria dos diálogos constitucionais e suas implicações na dinâmica da social e política pós-decisão da Suprema Corte.

Não é preciso ir muito longe, nem histórica nem geograficamente, para confrontar-se com as tensões entre o exercício do poder do Estado nas suas diferentes funções. Os noticiários, as redes sociais, as conversas em rodas de amigos estão sempre repletas de narrativas sobre os fatos que envolvem as decisões, por vezes convergentes, por vezes divergentes, envolvendo agentes públicos dos diferentes ramos do Poder.

A legitimidade das ações e decisões dos agentes públicos está sempre no radar da imprensa e cada vez mais as notícias sobre fatos institucionais, em geral relevantes para a vida da República, passam a fazer parte da avaliação popular, mesmo daqueles que não tem qualquer formação técnica-jurídica ou áreas afins.

Por diálogos constitucionais entenda-se o complexo de discursos, permeado de múltiplos argumentos, por meio dos quais os agentes, órgãos e membros de Poder da República constroem os sentidos das normas constitucionais, especialmente dos direitos fundamentais.

Não há uma receita para conduzir diálogos constitucionais, mas há atalhos metodológicos para tentar jogar luzes em pontos teóricos que devem conduzir a argumentação para questões constitucionais, especialmente aquelas que se produzem em um ambiente de profundo desacordo social.

Assim, mesmo para aqueles temas constitucionais os quais não admitem um único ponto de partida de onde se possa iniciar as discussões e os diálogos, certamente há pontos de vista que constituem paradas obrigatórias para aquelas e aqueles que se dispõem a enfrentá-lo argumentativamente. Isso vale tanto para as instituições quanto para os indivíduos.

Os diálogos constitucionais, para cumprirem sua vocação naturalmente dialética, sustentam-se não apenas no princípio da interdependência entre as funções de poder, mas também, e principalmente, no devido processo constitucional, que se materializa como uma versão do devido processo legal, alicerce e esteio do Estado Constitucional e Democrático de Direito.

A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a criminalização da homofobia gerou, e ainda está por gerar, muitas dúvidas e controvérsias na comunidade jurídica, bem como, e principalmente, na comunidade social e política brasileira. A declaração de uma inconstitucionalidade por omissão, tendo como consequência o reconhecimento de tipificação de uma conduta, com esteio direto no texto constitucional, não é uma tarefa banal, nem muito menos rotineira e cotidiana.

Assim sendo, por meio da doutrina dos diálogos constitucionais, a qual pressupõe que não há uma última palavra em matéria de interpretação constitucional, bem como através da análise do processo constitucional de controle da omissão no direito brasileiro, pretende-se analisar criticamente o que fez o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 e do Mandado de Injunção 4733.

Importante, primeiramente, registrar que o controle de constitucionalidade por omissão implica o reconhecimento de um constitucionalismo dirigente, ou seja, de um modelo constitucional que acomoda a existência de normas constitucionais garantidoras de direitos fundamentais de eficácia contida e limitada, cujos âmbitos de proteção são normativos e exigem atuação legislativa conformadora ou limitadora.

A omissão inconstitucional importa também o reconhecimento de um dever de legislar, que, necessariamente, coloca o legislador numa posição vinculada em relação à norma constitucional, o que, de uma forma ou de outra, impulsiona diálogos constitucionais cada vez mais constantes entre a jurisdição constitucional e os órgãos responsáveis pelo processo legislativo.

Explico melhor: se há normas constitucionais as quais exigem atuação positiva do legislador infraconstitucional para que possam concretizarem-se no seio social, existindo também mecanismos judiciais, próprios da jurisdição constitucional, à disposição do cidadão para dar eficácia a essas normas constitucionais, ampliadas as situações em que, por provocação de entes ou cidadãos legitimados, a jurisdição constitucional será compelida a declarar a inconstitucionalidade da omissão legislativa.

Passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição de 1988 já não há dúvidas de que está esgotado o tempo razoável para a regulamentação legislativa dos institutos reconhecidos pela Constituição de 1988 como direitos fundamentais. Assim sendo, muito embora ainda sejam fortes os argumentos pela autocontenção judicial e pela estrita separação de poderes, já é possível pontuar, ainda que de forma rara, a atuação pró-ativa do Supremo Tribunal Federal no campo da omissão inconstitucional.

Tenho dito que, no Estado Constitucional, especialmente aquele comprometido com os direitos fundamentais, é imprescindível pensar nas funções de poder com atuação interdependente, pois que somente pelas tensões recíprocas é que serão estabelecidos os diálogos necessários à concretização constitucional em sua máxima efetividade. Esse é o verdadeiro espírito da doutrina dos freios e contrapesos, desenvolvida nos Estados Unidos desde os primórdios do constitucionalismo contemporâneo.

Não se pode imaginar que a última palavra em matéria de interpretação constitucional esteja a cargo de apenas uma das funções do Poder da República. Seria o mesmo que afirmar ser a Constituição monopólio de uma das funções do Poder, cujas existências necessariamente pressupõem alteridade e respeito mútuos, nos limites da própria Constituição.

Os diálogos constitucionais, não obstante careçam de precisa definição doutrinária, exigem um colóquio contínuo e efetivo entre as funções do Poder, as quais não podem acomodarem-se diante da relevante tarefa de dar máxima efetividade às normas constitucionais, especialmente numa Constituição complexa e prolixa como a Constituição Brasileira de 1988.

Não por outra razão, o processo constitucional brasileiro, apresenta-se permeável aos diálogos constitucionais, exigindo no exercício da jurisdição constitucional que sejam chamadas a falar no processo as autoridades de ondem emanam ou deveriam emanar os atos impugnados, bem como outros atores sociais relevantes como o Ministério Público e co-responsáveis pelo processo legislativo.

Além disso, a sociedade civil organizada também pode ser convidada a fazer parte dos diálogos constitucionais que se estabelecem no curso de processo e julgamento de uma ação do controle concentrado ou difuso de constitucionalidade, o que ocorre quando são convocadas audiências públicas, em que peritos e experts habilitam-se para prestar esclarecimentos técnicas sobre o tema em discussão.

Diante desse contexto, e postas as premissas da análise aqui proposta, chega-se ao ponto de análise do julgamento do Supremo Tribunal Federal em que se criminalizou, por meio de decisão provisória – ou seja, até atuação positiva do legislador – as condutas homofóbicas e atos discriminatórios por homofobia.

A decisão, que ocupou mais sessões do Supremo Tribunal Federal para ser publicamente proferida do que o usual, foi tomada por maioria, o que demonstra, em especial, o dissenso entre Ministros da Suprema Corte brasileira e a dúvida razoável acerca da possibilidade de dar eficácia à norma constitucional, que exige tipificação penal, por meio de decisão judicial proferida em sede de controle de constitucionalidade por omissão. A questão posta, portanto, resume-se ao seguinte: não seria esta uma típica e exclusiva tarefa do legislador infraconstitucional?

O inciso XLI, do artigo 5º da Constituição da República foi usado como parâmetro constitucional das decisões proferidas por aqueles ministros que entenderam haver autorização constitucional expressa para aplicação imediata das consequências penais aos atos discriminatórios e revestidos de discurso de ódio contra os seres humanos com orientação sexual diversa do seu sexo biológico. Registrou-se na tese do julgado:

“Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe.”[1]

Outro argumento importante, que merece ser destacado, para a oportuna e eventual consideração social e política do tema, é a existência de normas penais coibindo diversas práticas discriminatórias, sem contemplar em suas disposições a devida proteção aos homossexuais e os transexuais. No juízo do devido processo legal substantivo seria um questionamento acerca da proteção insuficiente, o que não deixa, entretanto, de provocar os diálogos constitucionais no seguinte sentido: o legislador pode, a seu juízo, deixar de coibir práticas discriminatórias contra os homossexuais e transexuais?

Importante aqui lembrar o princípio responsabilidade, a partir de um modelo proposto por H. Jonas, segundo o qual o cidadão do hoje deve trabalhar de tal modo que as conseqüências de suas ações sejam compatíveis com uma futura existência humana minimamente digna.[2]

Não é demais aqui invocar a doutrina de Peter Häberle para quem, a Revolução Francesa, juntamente com as contribuições igualmente revolucionárias inglesa e norte-americana, são responsáveis pelo modelo de Estado Constitucional que ainda se tem atualmente.[3]

Dessa forma, os ideais da revolução francesa, especialmente a fraternidade, continuam e devem continuar a nortear, em termos substanciais, as ideologias subjacentes ao Estado Constitucional contemporâneo, como última exigência do ciclo inaugurado em 1789, abrem-se para uma nova oportunidade de compromissos universais a serem continuamente experimentados.[4]

E, nesse contexto, a dignidade da pessoa humana ganha destaque especial, pois deve ser o princípio norteador que, necessariamente, vincula o legislador nos seus deveres constitucionais, especialmente aqueles referentes à coibição de condutas discriminatórias.

A decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26 e no Mandado de Injunção 4.733, ainda que tomada por maioria, impulsiona importante tema a ser objeto de diálogo constitucional com o Congresso Nacional, em particular, e com a sociedade, de uma maneira mais geral.

Tanto o tema de fundo, envolvendo a proibição de discurso do ódio contra homossexuais e transexuais no Brasil, quanto os mecanismos de controle de constitucionalidade por omissão, e, consequentemente, os poderes do Supremo Tribunal Federal, como Corte da jurisdição constitucional no Brasil, devem vir ao debate público, especialmente por meio da atuação positiva das demais funções de poder.

A fórmula mais qualificada de diálogo constitucional é o pronunciamento de todos os atores qualificados, no âmbito de suas competências, de forma positiva e assertiva. Assim, na sua típica função legislativa, o legislador infraconstitucional brasileiro pode estabelecer profícuo processo de elaboração da norma para cuja omissão foi declarada inconstitucional pela Corte Suprema brasileira.

Assim, as consequências mais visíveis da decisão do Supremo Tribunal Federal são, por um lado, demonstrar a atuação incondicional da jurisdição constitucional brasileira na direção da concretização dos direitos fundamentais, e, por outro lado, o despertar para uma questão ainda não muito explorada, que são os diálogos constitucionais.

Não é demais lembrar que toda a abertura à participação e ao debate da sociedade e das demais funções do Poder, uns em relação aos outros, tem como objetivo a construção coletiva de um precedente constitucional com argumentos e discursos mais plurais, mais dialógicos e mais íntegros, que possa repercutir com segurança sobre o comportamento dos indivíduos e grupos sociais.

Esse é o principal motivo pelo qual é imprescindível que os julgadores considerem em suas decisões constitucionais sobre casos difíceis, os elementos trazidos por todos os interlocutores do processo no âmbito da jurisdição constitucional, o que implica que a construção da decisão constitucional seja, ao mesmo tempo, uma resposta, mas também uma provocação para as questões constitucionais nela subjacentes.

Este julgamento do Supremo Tribunal Federal, pela sua importância e originalidade contém em seus diversos, convergentes e divergentes, discursos, as alegações de muitos interlocutores, os quais, num ambiente de permanente questionamento e discussão, expuseram suas teses, ofereceram seus argumentos e colaboraram para a elaboração de uma decisão do colegiado verdadeiramente plural e complexa.

Sem desconsiderar o fato de que se trata de uma decisão provisória, ou seja, de uma decisão que clama por uma seguinte decisão sobre o mesmo tema, a ser processada e proferida pelas Casas Legislativas, não se pode perder de vista que a principal expectativa, cumprida numa primeira análise, de que os julgadores tenham respondido a uma efetiva participação na discussão das questões que permeiam o raciocínio decisório do colegiado, e mais do que resolver o caso, construíram um precedente para o julgamento dos casos futuros, os quais se espera sejam raros, mas emblemáticos o suficiente para demonstrar um critério metodológico do que, no Brasil, será possível chamar de diálogos entre Jurisdição Constitucional e Política, para casos de omissão legislativa inconstitucional.

Não se trata de acreditar a Suprema Corte como legítima para a excepcionalíssima função de entregar normas penais, ainda que provisórias, à sociedade. Não! Mas de reconhecer que há um sistema brasileiro, próprio e legítimo, no âmbito do devido processo constitucional, que provoca diálogos constitucionais entre Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional, impondo construção coletiva, ainda que por meio de tensões e contradições, de decisões constitucionais aptas a dar máxima efetividade à Constituição da República.


[1] Esta tese foi proposta pelo Ministro Celso de Mello e encontra-se disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/tesesADO26.pdf Acessado em 28.06.2019

[2] E o próprio Häberle aqui pontua a responsabilidade dos europeus nas suas relações com o Terceiro Mundo: “Ello afecta también a nuestra relación com el Tecer Mundo”. (Cfr. HÄBERLE, 1998, p. 90).

[3] São palavras de H. Jonas reproduzidas por Häberle pertinentes a este raciocínio: “obra de tal modo que las consecuencias de tu acción resulten compatibles con uma futura existencia humanamente digna, esto es, con el derecho de la Humanidad a sobrevivir sin límite en el tiempo”.(JONAS apud HABERLE, 1998, p. 91-92, nota 19)

[4] HÄBERLE, Peter, 1998, p. 92-95.

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