Negociação penal

"Em sociedades civilizadas, obrigatoriedade da ação penal não faz sentido"

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29 de junho de 2019, 7h06

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É raro ser julgado por um crime nos Estados Unidos. Lá, o papel do juiz tem se resumido a homologar acordos assinados entre promotores e réus ou investigados. São os plea bargain, acordos em que o acusado confessa algum crime menos grave que o crime do qual ele é acusado, em troca de uma pena menor que a que ele receberia caso a denúncia fosse levada a julgamento.

O ministro da Justiça, Sergio Moro, quer traduzir esse sistema para o Brasil, numa forma de tornar a jurisdição penal mais efetiva. Mas, ao sugerir a importação em seu pacote de reformas legislativas, também importou as críticas que o sistema sofre no país em que se tornou popular.

Nos EUA, entre 90% e 95% dos processos penais da Justiça Federal são resolvidos por plea bargain, segundo estudo do Escritório de Assistência Judiciário do Departamento de Justiça (BJA). E 90% dos réus se declaram culpados nesses acordos, segundo a estatística oficial da Justiça Federal dos EUA.

Mas, segundo pesquisa da Associação Nacional de Advogados Criminalistas dos EUA (NADCL, na sigla em inglês), quem se recusa a fazer acordos acaba duplamente punido. Quem aceita o plea bargain recebe penas de, em média, três anos e quatro meses. Já quem é julgado pega, em média, dez anos e dez meses de prisão. O resultado é que pessoas inocentes se declaram culpadas para pegar penas menores e ficar menos tempo afastadas da sociedade.

Ao mesmo tempo, o Innocence Project, iniciativa que revisa processos penais que resultam em condenações altas, vem revertendo condenações de inocentes que receberam penas de 20 ou 30 anos.

“Nenhuma dessas críticas deve ser considerada no Brasil”, no entanto, adverte a juíza Larissa Pinho, de Rondônia, em entrevista à ConJur. Estudiosa do assunto, ela acaba de voltar de Harvard, onde fez um curso na Faculdade de Direito e estudou alguns pontos da “Justiça Penal negociada”.

Ela reconhece os problemas do modelo americano, mas acredita que a proposta do governo proponha melhorias no formato dos EUA. Moro sugere, por exemplo, que a “solução penal negociada”, só seja possível depois de recebida a denúncia. Seria uma garantia de já haver justa causa para ação penal e pelo menos uma análise prévia das provas, afirma Pinho.

Segundo ela, transpor o modelo de acordos para o Direito Penal garantiria que as penas aplicadas fossem proporcionais aos crimes cometidos, eliminando o encarceramento desnecessário para crimes menores, sem violência, e dando tratamento mais adequado a crimes graves, que exigem forte repressão.

“Em uma sociedade moderna, a obrigatoriedade da ação penal não tem mais sentido”, afirma Pinho. Juíza criminal, Larissa Pinho é mestre e doutora em políticas públicas e judicialização de demandas e especialista em soluções negociadas de conflitos.

Leia a entrevista:

ConJur — A senhora é uma grande defensora da adoção de um modelo de plea bargain no Brasil. Mas a delação premiada já não é suficiente? Qual a diferença?
Larissa Pinho — São institutos diversos. A principal diferença é que o plea bargain, ou solução negociada, não tem nenhuma exigência quanto à delação de comparsas ou ao fornecimento de informações. A solução penal negociada é o réu confessar um crime em troca da redução da pena sem que o caso vá a julgamento. De certa forma, isso legitima ainda mais o plea bargain, já que não precisa indicar a autoria de outra pessoa para fazer jus ao benefício.

ConJur — A efetividade das delações premiadas tem sido bastante questionada. Enquanto delatores conseguiram praticamente se livrar das penas e alguns até lavaram o dinheiro que conseguiram por meio do crime, muitas investigações deram em nada. O que garante que o plea bargain não teria o mesmo destino?
Larissa Pinho — A desnecessidade de se apontar coautores ou partícipes. Basta uma ação individual, qual seja, a confissão circunstanciada. Mas não só isso, precisam estar presentes todos os requisitos para uma denúncia ser recebida e a plausibilidade jurídica do pedido, justa causa, interesse processual, o que traz não só segurança, mas credibilidade para a confissão do acusado, evitando que seja comprada uma confissão para livrar bandidos de serem processados.

ConJur — E ele seria aplicado a qualquer tipo de crime?
Larissa Pinho — 
Sim. Diferentemente do acordo de não persecução, que envolve a suspensão condicional do processo, o acordo penal (plea bargain) deve se estender a qualquer tipo de crime.

ConJur — A senhora diz que o plea bargain permite o tratamento mais adequado para diversos tipos de crimes. De que forma?
Larissa Pinho — Os modelos de acordos ganharam força por serem mais eficientes. No Brasil ele ganhará uma nova roupagem, suficientemente capaz de reduzir as fragilidades e injustiças que acontecem no sistema Common Law. Permitirá que os crimes sejam tratados conforme a gravidade, fazendo com que a ressocialização do preso e a punição sejam efetivas e proporcionais. Além disso, o plea bargain tem tramitação rápida e mais barata para o Judiciário. A redução de presos cumprindo penas por crimes menos graves demonstra preocupação com a sociedade, com as vítimas e com as testemunhas, minimizando traumas e a pressão de um julgamento.

Além disso, o ordenamento jurídico já se habituou aos modelos de justiça consensual, como acontece desde a Lei 9.099/95, que se insere na Justiça Penal Reparatória e trouxe o sistema da transação penal e a suspensão condicional do processo. Há, de fato, um movimento de Política Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos no âmbito do Poder Judiciário, com a Resolução 125 do CNJ, que incentiva a adoção de modelos e sistemas adequados de solução de litígios judiciais. E diante dos modelos de justiça reparatória, consensual e restaurativa no país, abrir o Direito Penal aos modelos de negociação não seria uma grande novidade.

ConJur — O projeto do governo não propõe um sistema de discovery, em que todos os envolvidos na negociação têm direito de saber que provas os outros têm, como existe nos EUA. Isso não seria injusto com os réus?
Larissa Pinho — Não. O sistema apresentado no Brasil é muito mais eficiente. O acordo entre acusador e acusado poderá ser realizado durante o processo, após o recebimento da denúncia ou queixa e antes da instrução, com intuito de evitar o prosseguimento do processo. Para se ter o acordo, o juiz já terá analisado uma série de requisitos penais e processuais que oferecem suporte técnico e plausibilidade à denúncia apresentada.

Por exemplo, o juiz analisará a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, a indicação do elemento subjetivo do tipo, que é dolo ou culpa, além das condições mínimas da ação, que são o interesse processual. Além disso tudo, para que a denúncia seja recebida, é preciso estar presente a justa causa para a ação penal, o que exige um suporte mínimo de provas suficientemente hábeis a atribuir ao denunciado um fato criminoso.

ConJur — Um estudo de 2005 diz que o plea bargain não funciona em países de Civil Law, em que o processo existe para descobrir a verdade, e não como uma espécie de arbitragem entre acusação e réu, como é no Common Law. Concorda? O plea bargain é incompatível com o Civil Law?
Larissa Pinho — Não é incompatível. Ao contrário, sustenta e reforça a evolução do Direito em buscar meios alternativos relevantes para solução de conflitos inclusive na seara penal. Em uma sociedade moderna, a obrigatoriedade da ação penal não tem mais sentido.

Algumas críticas ao modelo do plea bargain resgatam pesquisa feita nos EUA segundo a qual 56% de réus inocentes aceitam o acordo para não ser afastados de suas famílias e do trabalho. Outras críticas apontam blefe dos acusadores em propor acordos sem ter provas do cometimento do crime. Nenhuma dessas críticas deve ser considerada no Brasil.

ConJur — Por quê?
Larissa Pinho — Aqui, o instituto dos acordos funcionará de forma mais clara e eficiente, não admitindo chantagem, coerção ou blefe de nenhum órgão e com controle efetivo do juiz. Enfim, os modelos estão bem melhores e mais adaptados à nossa realidade.

ConJur — Esses números indicam crise no modelo de plea bargain. Há essa pesquisa sobre inocentes que confessam, há dados do Innocence Project, que reverte condenações de inocentes que pegaram 20 ou 30 anos de prisão. Segundo pesquisa do BJA, entre 90% e 95% das ações penais na Justiça Federal são resolvidos por plea bargain, e a estatística oficial diz que 90% dos réus se declara culpado. Considerando nossa tradição de excesso de prisões e erros judiciais – os mutirões carcerários do CNJ soltaram 45 mil pessoas presas além do tempo da sentença –, o plea bargain não vai piorar tudo?
Larissa Pinho — Muito pelo contrário. A tendência é o encarceramento de pessoas apenas em casos realmente relevantes e passíveis de maior represália. Esses dados apresentados estão corretos e de fato o instituto do plea bargain precisa ser reformulado nos países que adotam a Common Law. No entanto, mesmo nesses países, a reforma do instituto já vem acontecendo paulatinamente, como pela fiscalização pelo juiz do caso.

No Brasil o modelo proposto é diferente, só seria possível depois do recebimento da denúncia. Assim, o risco de declaração de culpa por parte de inocentes está muito reduzido ou praticamente inexistente.

ConJur — Por que importar esse sistema para o Brasil?
Larissa Pinho — É uma realidade necessária diante de inúmeros avanços com relação à duração razoável do processo e a soluções alternativas de conflitos. Tudo indica que os modelos antigos e frágeis do sistema brasileiro precisam de reformas e modernização. Por exemplo, em 2018, o Brasil caiu nove posições no índice de percepção de corrupção da Transparência Internacional. Está em 105º numa lista de 180 países. Apesar disso, menos de 1% dos custodiados estão presos por crimes ligados a corrupção. É preciso evoluir. Os modelos de acordos ganharam força por serem mais eficientes.

ConJur — Mas que benefícios ele traria? Nos EUA, os promotores usam isso para dar satisfações aos eleitores, mas aqui ninguém do sistema de justiça é eleito.
Larissa Pinho — A importação do sistema não é integral, está adaptado. No Brasil não há interesse do MP em produzir números de condenações, não há a obrigação de fechar acordos e não há compromisso com encarceramento de pessoas. Enfim, não há obrigação de resultado. No plea bargain proposto no Brasil, o MP e o acusado, assistido por seu defensor, poderão requerer, mediante acordo penal, a aplicação imediata das penas. Deve ter acontecido a confissão e ser apresentado o requerimento de pena, com a sugestão de penas em concreto ao juiz. Além do mais, deve ter expressa manifestação das partes no sentido de dispensar a produção de provas por elas indicadas e de renunciar ao direito de recurso.

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