Opinião

Conflito de atribuições policiais: uma questão ainda sem solução

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29 de junho de 2019, 12h16

A prática policial muitas vezes traz à luz situações que aparentemente não apresentam solução imediata em virtude da inexistência de previsão legal geral ou específica sobre o caso fático. Não raramente, a decisão quase imediata da autoridade policial (leia-se, do delegado de Polícia Civil ou Federal), em face do caso concreto, exige elevado teor de profundidade na análise da subsunção fato-norma. A escassez natural de tempo, somada à complexidade de algumas questões não regulamentadas expressamente, e a quase sempre concomitante restrição da liberdade de uma pessoa presa em flagrante delito, conduz a autoridade policial a ter que, por dever funcional, formular uma solução juridicamente correta ao problema que lhe é apresentado, em atividade cognitiva muito próxima à proibição do non liquet no campo judicial, mas que, no entanto, deve ser concluída em tempo célere e extremamente limitado.

Inserido nesse contexto, também não raramente a autoridade policial se depara com a situação comum de incidência típica de crimes de competência da alçada federal, praticados em concurso com crimes de competência da Justiça estadual. Majoritariamente, resolvem-se tais situações com a aplicação da Súmula 122[1] do Superior Tribunal de Justiça, aplicada analogicamente ao campo da análise jurídica na seara policial, atraindo-se a competência da Justiça Federal (rectius: atribuição da Polícia Federal), para que a autoridade policial federal analise a legalidade da lavratura do auto de prisão em flagrante.

Ocorre, também com alguma frequência, que tais casos de concurso entre crimes federais e estaduais são apresentados primeiramente à Polícia Civil, já que a abrangência da autoridade policial estadual, através de todo o território nacional, é consideravelmente maior do que a da Polícia Federal, por razões de opção estrutural discricionária da União em face de sua organização administrativa, bem como em razão de circunstâncias históricas referentes à formação dos órgãos policiais estaduais.

Nessa conjuntura, a apresentação da pessoa ou do grupo de pessoas presas ocorre quase sempre por agentes de segurança pública atuantes no campo ostensivo, tais como as polícias militares e a Polícia Rodoviária Federal (mais raramente, por membros da Força Nacional ou do Exército, como ocorrido no caso da intervenção no Rio de Janeiro). A análise jurídica do fato perfunctoriamente empreendida por tais agentes de segurança em atuação ostensiva não somente não vincula a autoridade policial a quem se apresenta o preso e o caso, como também é autônoma em face da conclusão jurídica da Polícia Civil ou Federal. Pode ocorrer, por exemplo, que a Polícia Militar compreenda tratar-se de tentativa de homicídio, e a autoridade policial atribua ao fato o tipo da lesão corporal leve ou grave.

Em suma, vale dizer que a subsunção do fato típico, quando atinge a cognição da autoridade policial civil ou federal, já foi antecipadamente analisada por outros personagens do cenário jurídico criminal, e a partir dessa análise primeva, resultou na captura, condução e apresentação do preso na delegacia de polícia, dentro de um sistema legal e de um fluxo procedimental estabelecido pela Constituição Federal e pelo Código de Processo Penal.

A análise fático-jurídica, nos casos mais recorrentes e comuns, em que a apresentação do preso ocorre primeiro para a Polícia Civil, permite ao delegado de Polícia Civil a tomada da dianteira acerca da conclusão jurídica sobre o fato. Significa dizer que o delegado de Polícia Civil não somente tem autonomia em sua conclusão jurídica sobre o caso apresentado como também tem o dever de expressar sua decisão jurídica e fazer respeitar e executar os efeitos dela decorrentes.

Na exemplificativa situação em que o concurso entre crimes federais e estaduais é apresentado à Polícia Civil (estadual), pela Polícia Rodoviária Federal, nada obsta, em absoluto, que o delegado de Polícia Civil não lavre a prisão em flagrante, por competir a sua formalização a outra autoridade policial com atribuição específica, como, por exemplo, o delegado de Polícia Federal nos casos de tráfico internacional de drogas. Tal é o caso em que se aplica a Súmula 122 do Superior Tribunal de Justiça, acima referida: apresentado o preso à Polícia Civil, conclui a autoridade policial estadual que o órgão com atribuições legais para a formalização do auto de prisão em flagrante é a Polícia Federal, determinando o encaminhamento do caso ao delegado federal — tudo dentro da legalidade e da distribuição de funções previamente estabelecidas entre os órgãos administrativos policiais da União e dos estados, que tem razão de ser na própria necessidade de segurança jurídica.

Porém, assim como o delegado de Polícia Civil tem autonomia em sua conclusão jurídica, o delegado da Polícia Federal igualmente a possui, baseado na Lei 12.830/13. Nada obsta que sua conclusão seja imediatamente contrária àquela explanada pelo delegado de Polícia Civil, gerando um imediato conflito de atribuições entre órgão federal e estadual, sem previsão de resolução legal imediata, tendo que ambas as autoridades dar solução célere e constitucionalmente adequada ao caso, posto que a liberdade de uma pessoa a aguarda.

Diferentemente do sistema judicial processual penal, a fase pré-processual encontra diversas lacunas sistemáticas, gerando questionamentos como o presente: a quem caberia dirimir um conflito de atribuições entre a Polícia Federal e a Polícia Civil, no calor do caso concreto e dentro do prazo de 24 horas imposto pelo CPP, para que se comunique a prisão ao órgão judicial (artigo 306, parágrafo 1º)[2]? A lei é silente sobre isso, e o sistema não apresenta auxílios muito precisos na solução da questão. Recomendações de órgãos externos, como as do Ministério Público, se prestam apenas temporariamente e não dão uma solução democrática ao caso com a edição de regulação legal, embora sejam úteis no exercício prática policial por indicarem formalmente um caminho a ser seguido.

Em consonância a isso, a maior flexibilidade da atribuição policial para lavrar o flagrante ou investigar o caso concreto, em face da inflexibilidade natural à competência judicial, permite uma maior gama de possibilidades de análise para dirimir esse conflito imediato entre órgãos policiais, sobretudo em virtude do fato de atribuições administrativas normalmente emanarem da lei stricto sensu, e regulações de competência emanarem direta e precipuamente da norma constitucional.

A experiência prática e as circunstâncias dos casos concretos em que esse conflito ocorre levam a crer, de lege ferenda, e considerando a grave restrição da liberdade daquele que é conduzido preso, que cabe à primeira autoridade policial a quem apresentado o caso explanar sua conclusão jurídica e encaminhar, em seguida, o custodiado e seu caso à autoridade policial que entende detentora de atribuição legal para a lavratura da prisão em flagrante delito, seja ela o delegado de Polícia Federal ou delegado de Polícia Civil.

A autoridade policial receptora do preso e do caso apresentado, remetido pela autoridade policial que analisara a situação com primazia, haveria de deter palavra determinante sobre a sua conclusão, sem a possibilidade de determinar o retorno do capturado à autoridade policial que já analisara a situação anteriormente, na medida em que solução diversa certamente imperaria contra a celeridade que exige a autuação do flagrante e contra a liberdade do conduzido.

Outra solução possível, também em sede especulativa, seria a apresentação imediata da controvérsia ao juízo plantonista para que determine a remessa ou mantença do caso, dentro de prazo exíguo, à autoridade policial com atribuição adequada ao caso, passando a situação a ser analisada pelo Poder Judiciário, e a partir daí preenchendo essa ausência de regulamentação sobre a solução desse conflito de atribuições policiais e possibilitando que a controvérsia iniciada possua um meio de resolução dentro do sistemas de competências, já que houve intervenção do Poder Judiciário (exceção de incompetência; conflitos negativo e positivo de competência etc.).

Fato é que atualmente visualiza-se verdadeiro limbo nas situações em que nem uma nem outra autoridade policial se presta a se reconhecer como detentora de atribuição para o ato da prisão, permanecendo a situação insolúvel através do sistema processual penal positivado. Não há, de imediato, uma autoridade superior a ambos os órgãos administrativos estadual e federal (com exceção dos conflitos de atribuições internos), que dentro do prazo de 24 horas determine qual órgão policial há de formalizar o flagrante delito. Assim como em sede judicial, a proibição do non liquet é obrigatória nessas situações, em que uma solução jurídica há de ser encontrada para a integração normativa no caso de conflitos de atribuições entre órgãos policiais, especialmente entre as polícias Federal e Civil.

Resta construir sistematicamente tal solução dentro dos parâmetros genéricos e abstratos da lei, e não de normativas infralegais ou recomendações ministeriais que inclusive podem ser contraditórias entre si, nas esferas estadual e federal (por exemplo, recomendações do Ministério Público Federal, em um sentido, e do Ministério Público estadual em sentido diametralmente oposto).

A despeito dessa exposição, a título de contribuição para o debate, segue o sistema pré-processual lacunoso nesse ponto (e em muitos outros), até a edição de regulamentação em lei de caráter nacional que vincule as autoridades policiais (judiciais e ministeriais) em todo o país e garanta a tão almejada segurança jurídica também no campo da atuação das forças de segurança pública e, consequentemente, no âmbito processual e judicial, onde ao final tudo resvala em sede penal.


[1] Súmula 122 do STJ: Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal.
[2] Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. § 1º Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

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