Opinião

Para que o massacre de Manguinhos não se repita nem caia no esquecimento

Autor

  • Rita Cortez

    é advogada presidente da Academia Carioca de Direito e ex-presidente nacional do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros).

27 de junho de 2019, 10h00

Há 43 anos, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), centenária instituição dedicada à ciência, com notáveis estudos destinados à preservação da saúde e da vida, foram cassados ou aposentados compulsoriamente pela ditadura militar. Técnicos da Fiocruz, além de perseguidos, foram impedidos de realizar pesquisas, sob a justificativa de agressão à política de segurança nacional entabulada pelo governo militar. O tenebroso acontecimento ficou conhecido como “Massacre de Manguinhos”. Foi um triste episódio para a ciência brasileira, que teve pesquisas e projetos fundamentais para o desenvolvimento do País interrompidos pelo regime.

Esse fato lamentável e digno de repúdio nos remeteu ao recente embate entre a comunidade científica e representantes do governo, envolvendo o levantamento técnico nacional relativo ao uso de drogas promovido pela Fiocruz. Apesar de a fundação reunir laureados acadêmicos, cientistas e pesquisadores, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, disse à imprensa que não confiava na pesquisa, preferindo as observações sobre o consumo de drogas que ele mesmo fazia na praia de Ipanema.

Não bastasse a desconfiança, o site de pesquisas sobre drogas criado, em 2002, pelo Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (Obid), considerado o único banco de dados vigoroso sobre o tema e utilizado como suporte para pesquisas realizadas pela Secretaria Nacional de Política de Drogas, foi retirado do ar por decisão do ministro da Cidadania, cuja competência para tratar do assunto, antes conferida ao ministro da Justiça, lhe foi transferida a partir do fatiamento e da extinção de ministérios.

Desapreço semelhante ocorreu com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que do alto dos seus 83 anos de existência já deu inúmeras provas da excelente qualidade do trabalho que realiza, obtendo inegável reconhecimento internacional. O IBGE tem desenvolvido ao longo da sua história um trabalho sério, competente e comprometido com o Brasil, gerando dados estatísticos indispensáveis ao planejamento, ao acompanhamento e à fiscalização das políticas públicas.

Nos 176 anos de sua existência, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), desde o Império, tem colaborado para a formação do pensamento constitucional, bem como para a construção e o aprimoramento do ordenamento jurídico brasileiro. Através das comissões temáticas constituídas em diferentes áreas do Direito, o IAB tem intensificado, atualmente, a produção de pareceres técnicos, com o escopo de oferecer alternativas à crise vivida no País, por meio da apresentação de teses jurídicas de superação, sem perder de vista o bem-estar e o progresso social do povo brasileiro.

A Comissão de Direito Penal, por exemplo, no tocante às propostas de mudanças na Lei de Drogas, formulou parecer técnico no qual veiculou crítica ao tratamento bélico empregado no enfrentamento da questão, demonstrando a importância da descriminalização do porte de drogas e propondo a articulação de uma política dirigida, principalmente, à proteção da saúde pública.

As conclusões técnicas adotadas pelo IAB, em pareceres, moções e notas, não são alicerçadas no mero conhecimento empírico das matérias submetidas ao exame dos seus qualificados membros. Ademais da dogmática jurídica, os trabalhos técnicos colocados à disposição da comunidade jurídica e da sociedade tomam por base dados científicos, estudos e levantamentos, incluindo os que foram elaborados pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro no caso específico da descriminalização do porte de drogas.

Para o IAB, que age com a responsabilidade de apresentar opinião jurídica que não abale a tradição de ser uma Casa de cultura e educação jurídicas, são inaceitáveis as manifestações de descaso ou que ignorem os métodos científicos na composição e sustentação das políticas públicas e programas de governo.

A ministra Maria Elizabeth Rocha, primeira mulher a integrar o Superior Tribunal Militar (STM), em discurso proferido na Academia Brasileira de Letras (ABL), advertiu que “um país sem cultura é um país sem alma”. O saudoso mestre Darcy Ribeiro dirigiu-se ao militares, durante a ditadura, em razão da censura à liberdade de expressão e de pensamento, para preveni-los “do muito que se poderia fazer com apoio no saber científico e do descalabro e da pequenez do que se estava fazendo no País”, notadamente quanto à repressão à cultura, à educação e à pesquisa.

Não bastasse a retração financeira e a interferência na autonomia universitária, consagrada na Constituição Federal de 88, o Ministério da Educação (MEC), por meio de documento oficial, buscou instigar a população a “identificar a promoção de eventos (manifestações) tidos como subversivos ou fora de ordem, para ser objeto de punição”.

A Constituição da República consagra a educação como direito social do cidadão (art. 6º), declarando-a "direito de todos e dever do Estado e da família" (art. 205), além de estabelecer que, pela via da educação, buscamos o pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania, e não apenas sua qualificação para o trabalho. Os princípios constitucionais que norteiam a educação são, conforme o art. 206, os da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”.

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) segue a mesma linha quando lastreia o ensino no respeito à liberdade, à tolerância e à diversidade. O artigo 1º da LDB discorre que a educação abrange “os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais, de forma geral”. O Estatuto da Criança e do dolescente (ECA), em seu art. 16, e a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança (Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990), em seu art.13, não discrepam.

O arcabouço jurídico brasileiro desautoriza restrições à pesquisa. A quebra da autonomia de ensino propagada pelo governo abre espaço para a prática da “censura de natureza política e ideológica”, o que, na prática, significa silenciar os que dele divirjam, ferindo de morte as preciosas liberdades políticas garantidas pela Constituição da República de 1988, símbolos da retomada do Estado Democrático de Direito após o fim da ditadura militar.

Em tempos de crise sistêmica, na qual se abandona a observância e o respeito ao Direito e às normas e princípios constitucionais, gerando um “jogo sem regras”, “enganam-se os que acreditam que passarão ilesos por este tipo de crise”, avisa o constitucionalista Marcos Ortiz, quando diferencia as crises políticas institucionais das sistêmicas.

A melhor solução para a presente crise, na concepção do IAB, é a defesa intransigente da Carta Magna de 1988. Não é preciso reformar, emendar ou defender uma nova Constituição Federal. Basta reafirmar as normas constitucionais já existentes. Como diz o professor Lenio Streck, “defender a Constituição, hoje, é realmente uma atitude revolucionária”.

Acima de qualquer governo está o interesse público. O futuro das ciências sociais tem sido duramente posto à prova nos últimos tempos. A atitude de negar valor ao pensamento científico e atacar a educação e a cultura é, no mínimo, estranha e desprovida de qualquer lógica republicana.

O melhor caminho, trilhado pelo IAB, é a defesa intransigente da educação, da cultura e da ciência, para que o “Massacre de Manguinhos” nunca mais se repita, nem caia no esquecimento.

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