Olhar Econômico

Impactos do Estatuto da Pessoa com Deficiência e do Decreto 9.762/2019

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

27 de junho de 2019, 8h00

Spacca
O reconhecimento dos direitos das minorias pela Constituição Federal de 1988 incentivou a edição de leis infraconstitucionais sobre essa temática. Entretanto, para que essas leis possam ser efetivas, elas dependem de prévia análise econômica e social, ou, em outras palavras, da verificação dos impactos regulatórios[1]. Isso é tanto mais necessário, face às dimensões continentais e às peculiaridades do Brasil, dotado de 26 estados federados, Distrito Federal e 5.570 municípios. A utilização de avaliação de impacto regulatório relativamente às políticas públicas em formulação aumenta o grau de certeza quanto à sua viabilidade.

A propósito, examinem-se os artigos 51 e 52 da Lei 13.146, de 6 de junho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), vigorante desde janeiro de 2016:

Art. 51. As frotas de empresas de táxi devem reservar 10% (dez por cento) de seus veículos acessíveis à pessoa com deficiência.

Art. 52. “As locadoras de veículos são obrigadas a oferecer 1 (um) veículo adaptado para uso de pessoa com deficiência, a cada conjunto de 20 veículos de sua frota”

Parágrafo único. “O veículo adaptado deverá ter, no mínimo, câmbio automático, direção hidráulica, vidros elétricos e comandos manuais de freio e de embreagem”.

Os artigos acima foram regulamentados pelo Decreto 9.762, de 11 de abril de 2019, que entrará em vigor no próximo dia 11 de julho. Nele constam diretrizes para a transformação e a modificação de veículos automotores, que comporão frotas de táxi e de locadoras de veículos acessíveis a pessoas com deficiência. Os percentuais referidos nos artigos 51 e 52 da Lei 13.146/2015 são reproduzidos, respectivamente, nos artigos 3º e 4º do Decreto. Quando a própria lei estabelece percentuais, a atualização fica dificultada em razão do complexo trâmite para mudança legislativa. No caso de o decreto fixar percentuais, a mudança fica facilitada.

O Decreto, muito provavelmente à míngua de verificação da realidade e de possíveis impactos, determinou que, do montante da cota exigida pela Lei, 1 a cada 20 carros, isto é 5%, deveria ser adaptado na seguinte proporção: 40% para condutores com deficiência e 60% para o transporte de uma pessoa em cadeira de rodas.

Certamente, não foi levada em consideração a definição de deficiência, constante do artigo 2º do Estatuto de Pessoa com Deficiência: “pessoa que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” Não foi indicado, ademais, quais seriam os instrumentos de avaliação da deficiência, descumprindo o determinado no artigo 2º, § 2º, da referida lei que estabeleceu que “o Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência”. Obviamente, essas duas omissões elencadas são fontes de insegurança jurídica.

É óbvio que o desenho e a implementação de políticas públicas no setor pressupõem o conhecimento do número de deficientes no Brasil, como eles se distribuem pelos diferentes municípios, quais as respectivas rendas etc.

Consoante o Denatran, enquanto na região norte o número de condutores habilitados portadores de deficiência é de 9.226 (2,2%), no Nordeste é de 41.028 (9,9%), no Centro Oeste é 32.220 (7,8%) e no Sul é 61.799 (14,9%). No Sudeste este percentual ultrapassa o total das demais regiões; atingindo 65,1% (número absoluto: 269.727). Essa ausência de uniformidade reproduz-se também nas unidades da federação. No Sudeste, por exemplo, a participação do Estado de São Paulo supera três quartos do total da região. Percentualmente, o número de deficientes habilitados é de 209.941, isto é, 77,8%; enquanto que no Espírito Santo é de 1,3%; Minas Gerais, de 10,3% e Rio de Janeiro 10,6%.

Depreende-se desses números, que em razão da variegada realidade brasileira, não se justifica haver uma única proporção válida para todas as regiões e unidades da federação. Os números ensinam que políticas públicas efetivas devem, desde o início, reconhecer a complexidade econômica e social das distintas realidades e levá-las em conta.

Coeficiente de condutores com deficiência por estados do Sudeste e região
Condutores habilitados portadores de deficiência ES MG RJ SP Total
3.488 27.739 28.55 209.941 269.727
Fonte: Denatran

Dessa forma, sob pena de onerar, demasiada e desnecessariamente, determinado setor da sociedade ou, em última instância, transferir o custo de tal política, do setor público às empresas e ao mercado consumidor; prejudicando toda a economia.

Além disso, trata-se de imposição de difícil ou impossível implementação, pois não se teve em mente: a quantidade de veículos a serem adaptados, o número de empresas certificadas para tal adaptação, o tempo necessário para a adequação dos diferentes tipos de veículo e, também, o custo advindo de tal tarefa. Estima-se que a frota das três principais locadoras de veículos, excluindo os veículos destinados a gestão e terceirização de frotas, ultrapassa trezentos mil veículos. Em quanto tempo todo esse percentual de veículos poderia ser adaptado? Quantas e em que unidades da federação, haveria empresas para fazer o serviço?

Política pública desconectada da realidade pela maneira como vem sendo feita, não conseguirá seus nobres objetivos em benefício dos portadores de deficiência. Ao revés, imporá altos custos de implementação aos consumidores, elevando o preço da locação de automóveis.

Ações judiciais foram propostas, invectivando itens da Lei 13.146/2015, como, por exemplo, seus artigos 52 e 127 (ADI 5452 – Distrito Federal), não sendo improvável que mais ações sejam distribuídas, ao se aproximar o dia 11 de julho, quando entrará em vigor o Decreto 9.762/2019.

Se tivesse havido diálogo efetivo entre os setores privado e público, participando e retroalimentando o processo decisório, provavelmente o recurso ao Poder Judiciário poderia ter sido obviado.


[1] “Análise de Impacto Regulatório e a verificação prévia de proposta de regulação, visando aferir o respectivo custo-benefício, quem será o beneficiário e quem suportará os custos, bem como quais serão os efeitos distributivos a longo prazo, levando em conta, para tanto, os impactos sociais, critérios econômicos, sociais e consequências ambientais da regulação”. Rodas, João Grandino, “É indispensável a avaliação do impacto regulatório”, Revista Eletrônica Conjur, 2 de maio de 2019.

Autores

  • Brave

    é sócio do Grandino Rodas Advogados, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor titular da Faculdade de Direito da USP, mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!