Opinião

O contingenciamento de recursos da educação e a fraude à Constituição

Autor

  • Onofre Alves Batista Júnior

    é pos-doutorando em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) professor associado do Quadro Permanente da Graduação Mestrado e Doutorado da UFMG e sócio-conselheiro do Coimbra Chaves & Batista Advogados.

26 de junho de 2019, 11h59

Como afirma Joseph Raz, o ideal de autonomia se constitui na visão das pessoas como “autoras de suas próprias vidas”, em oposição à ideia de “vida de escolhas forçadas”. A ideia de autonomia pressupõe a capacidade de se efetuar escolhas livres, onde existam opções adequadas disponíveis. A coerção e a manipulação impedem escolhas livres e afastam a possibilidade da autonomia.

A Constituição Federal, em seu artigo 207, caput, estabeleceu o princípio da autonomia universitária, firmando que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”. A ideia de autonomia universitária se completa com a observância de três de seus aspectos componentes: autonomia didático-científica, autonomia administrativa e autonomia de gestão financeira e patrimonial.

O contingenciamento praticado pelo governo federal afetou diretamente a autonomia da gestão financeira e patrimonial, que cumpre função instrumental relevante para que se possa assegurar a liberdade de cátedra e de expressão, uma vez que, sem o acesso aos meios financeiros necessários para que se possa prestar um serviço adequado de educação, a universidade não pode cumprir sua missão constitucional.

A autonomia financeira outorga à universidade o direito de gerir e aplicar os seus próprios bens e recursos, em função de objetivos didáticos, científicos e culturais programados. Esse aspecto não tem o condão de exonerar a universidade dos sistemas de controle interno e externo, entretanto, como já decidido pelo STF ao julgar a questão, “o controle financeiro se faz a posteriori, através da tomada de contas e das inspeções contábeis”. A autonomia financeira existe para que as universidades não fiquem à mercê dos humores, inclinações ou interesses do Executivo e funciona como um escudo protetor para que as universidades não sejam coagidas ou manipuladas, ou seja, é fundamental para que exista autonomia universitária.

A autonomia financeira, nos termos dos artigos 207, caput, CC, 206, VII e 211, parágrafo 1º, traduz o dever do Estado de prover as universidades públicas com os meios econômicos necessários ao desempenho de suas missões constitucionais, por meio de um sistema no qual o acesso aos recursos não dependa de decisões discricionárias de órgãos políticos. O modelo de contingenciamentos, sem fundamentação adequada e desprovido de critérios gerais e impessoais revela incontestável violação à autonomia financeira das universidades. As decisões que lastrearam o contingenciamento praticado, desarrazoadas e sem qualquer fundamentação adequada, são flagrantemente inconstitucionais porque ofendem diretamente o aspecto autonomia financeira do princípio da autonomia universitária.

Obviamente, autonomia não se confunde com soberania. A autonomia universitária é didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, portanto, não traduz imunidade ao cometimento de crimes (destruição do patrimônio público, pichações etc.). Entretanto, esses crimes não podem ser combatidos com contingenciamentos, mas, ao contrário, exigem recursos financeiros.

A ideia de autonomia universitária estabelece um limite intransponível para o Estado, na medida em que impede a interferência nas decisões tomadas no seio das universidades, sobretudo naquilo que diz respeito às ideias de liberdade de cátedra e de liberdade de expressão.

A autonomia universitária existe para que instituições de ensino não fiquem reféns de nenhum governo e para que o pluralismo, componente essencial da democracia, seja assegurado. O governo não pode intervir no conteúdo pedagógico ou firmar uma orientação ideológica qualquer, sob pena de ofender o aspecto autonomia didático-científica do princípio da autonomia universitária. A propósito, é por isso que debates políticos nas universidades são bem-vindos, porque é assim que se constrói uma democracia com pluralismo.

A ideia de autonomia universitária, como poder de autodeterminar-se e de dirigir suas atividades e seus destinos está mesmo ligada à universidade desde suas origens. Em seu processo de formação, a universidade surge como vontade de liberdade e a própria gênese da universidade medieval pode ser caracterizada como luta, por vezes, dramática, para afirmar sua autonomia.

Como bem assentou a ministra Cármen Lúcia, na ADPF 548, a “autonomia é o espaço de discricionariedade deixado constitucionalmente à atuação normativa infralegal de cada universidade para o excelente desempenho de suas funções constitucionais”. Em suas palavras, a “autonomia universitária está entre os princípios constitucionais que garantem toda a forma de liberdade”, portanto, “impedir ou dificultar a manifestação plural de pensamento é trancar a universidade, silenciar estudantes e amordaçar professores”. A única força legitimada a invadir uma universidade é a das ideias livres e plurais, e “qualquer outra que ali ingresse sem causa jurídica válida é tirana”.

A autonomia didático-científica não existe para atender aos interesses da universidade ou da comunidade acadêmica, mas ela traduz garantia fundamental do papel da universidade na divulgação livre do conhecimento, da formação profissional e do desenvolvimento científico. No Estado Democrático de Direito, apenas com a produção de conhecimento de qualidade e com reflexão crítica é que se pode criar as condições para a existência de uma democracia. A universidade é um espaço de reflexão crítica e de livre debate de ideias, absolutamente necessário para fazer funcionar a democracia.

Se o Decreto 9.741/2019, as portarias do secretário especial de Fazenda e os atos do Ministério da Educação não primam pela transparência e fundamentada motivação, nas declarações do ministro Weintraub sobraram ameaças de retaliação financeira para impedir o livre exercício do pensar. A comunidade acadêmica ficou chocada com a afirmação do ministro de que o bloqueio de R$ 5,8 bilhões visaria conter a “balbúrdia” nos campi e de que a reversão do contingenciamento dependeria da “aprovação da nova Previdência”. Por um lado, a motivação relevada do ato evidenciou uma espécie de barganha política para conseguir apoio para a aprovação de reformas; por outro, ficou claro que orientações ideológicas guiaram os cortes, ou seja, limitações à liberdade de expressão seriam necessárias para afastar os contingenciamentos.

A intenção de interferir na condução e nos conteúdos pedagógicos das universidades federais traduz ofensa ao princípio da autonomia universitária assegurado pela CF/88. Ações que firam a autonomia didático-científica ofendem o artigo 206, III, da CF/88, que garante o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”. Ademais, atos estatais nessa direção ofendem a moralidade administrativa.

Se os contingenciamentos praticados ofendem diretamente a ideia de autonomia financeira, o seu manejo para impor limitações à autonomia didático-científica das universidades federais revela uma verdadeira fraude à Constituição. Em outras palavras, os cortes e os atos praticados que têm a finalidade de interferir no conteúdo pedagógico e de firmar uma orientação ideológica qualquer revelam uma espécie de manipulação, para usar a expressão de Raz, e impossibilitam a “liberdade de escolha” essencial da ideia de autonomia.

A fraude à lei ocorre quando o agente, para escapar dos resultados previstos por uma norma específica (que deveria ser aplicada), se vale de outra dada para finalidades distintas. O “ilícito” se verifica quando se intenta amparar um resultado contrário a uma lei em outra disposição, dada, em verdade, com uma finalidade diferente.

A fraude à lei pressupõe a presença de duas normas: uma norma instrumento de cobertura e uma norma fraudada. Supõe-se que um determinado resultado, cuja consecução pelos meios jurídicos normais seria esperado, pode ser conseguido por meio de outros meios jurídicos, que natural e primariamente têm fins diversos.

A diferença entre a fraude à lei e a atividade contra legem está no fato de que, no último caso, verifica-se uma infração frontal a uma norma imperativa, ao passo que, na fraude à lei, não se ataca frontalmente a norma fraudada, mas se realizam negócios jurídicos tendentes a substituir tal norma, para que em seu lugar se aplique outra, que favoreça os resultados desejados. Trata-se de uma vulneração oblíqua a uma norma proibitiva ou imperativa, inderrogável pela vontade das partes. A doutrina moderna entende que o conceito pode ser tomado como uma cláusula geral do direito aplicável a todos os casos de elisão normativa. A forma mais adequada de se entender a cláusula geral, portanto, é a de que a fraude à lei pressupõe uma circunvolución de la ley.

Os atos em fraude à lei são realizados (i) ao amparo de um texto legal de uma norma e (ii) perseguem um fim proibido pelo ordenamento jurídico ou contrário a ele, (iii) impedindo a aplicação da norma fraudada.

Quanto ao primeiro ponto, pode-se verificar que a fraude à lei é passível de se materializar com a realização de um ato ou de uma cadeia de atos combinados, sendo que, neste último caso, pode-se verificar a mais perfeita licitude dos atos tomados isoladamente.

Quanto ao segundo, ele traz à baila a questão de se saber se a fraude à lei exige a intenção fraudulenta do agente, ou se, ao contrário, basta que se verifique o resultado antijurídico (proibido ou contrário ao ordenamento jurídico). A melhor doutrina entende que não é necessário que a pessoa que realiza o ato tenha a intenção de burlar a lei, porque o objetivo derradeiro da doutrina da fraude à lei é o de defender o cumprimento das normas, e não a repressão de qualquer intenção maliciosa.

Quanto ao terceiro requisito, se a atividade contra legem tem como sanção a nulidade do ato, na fraude à lei, aplica-se a norma fraudada. Se a norma fraudada é imperativa ou proibitiva, o ato será nulo; por outro lado, nos demais casos, o ato será válido, entretanto, os seus efeitos serão dados pelo previsto na norma elidida.

A fraude à lei é um atentado contra o espírito e finalidade do ordenamento jurídico como um todo, ou seja, abrange atos que perseguem um resultado proibido ou contrário ao ordenamento jurídico em uma consideração global.

A fraude à Constituição se dá quando a Carta Maior é fraudada por atos que distorcem o modelo firmado pela Constituição. Tal como na fraude à lei, na fraude à Constituição ocorre uma circunvolución de la Constitución. Não ocorre uma inconstitucionalidade direta e flagrante, uma infração frontal e aberta à norma constitucional, mas uma espécie de vulneração oblíqua aos mandamentos constitucionais.

Destaque-se a decisão proferida, na qual o ministro Gilmar Mendes examinou o caso relativo a prefeito municipal (STF, RE 637.485/RJ), o qual, após cumprir dois mandatos consecutivos em determinado município, concorreu, logo em seguida, à eleição para prefeito em outro município. A vedação constitucional admite a reeleição, para um único período subsequente (parágrafo 5º do artigo 14 da CF), tendo o STF, porém, decidido que a eleição para outro mandato de prefeito, ainda que em município distinto, configuraria fraude à Constituição.

A invocação da fraude à Constituição também se fez presente em decisão do ministro Gilmar Mendes, na medida liminar no MS 34.070/DF, na qual se verberou a nomeação de ministro de Estado. Ali, ponderou o relator que a configuração da fraude à Constituição, naquele caso, havia se configurado, “a despeito de sua aparência de legalidade”, porque os motivos para a nomeação “destoam da razão que a justifica, escapam ao princípio e ao interesse que lhe é subjacente. Trata-se simplesmente de garantir coerência valorativa ou justificativa ao sistema jurídico e de apartar, com clareza, discricionariedade de arbitrariedade”. Gilmar Mendes identificou a similaridade entre três espécies diferentes de “ilícitos atípicos”, quais sejam, “abuso de direito, fraude à lei e desvio de finalidade/poder”. Pontuou, então, que, em todos eles, há uma “ação que, prima facie, estaria em conformidade com uma regra jurídica”, mas que produz “resultado danoso como consequência, intencional ou não”, de modo que a correção da fraude impõe “o estabelecimento de uma segunda regra que limita o alcance da primeira para qualificar como proibidos os comportamentos que antes se apresentavam travestidos de legalidade”.

No caso em tela, fica patente a fraude à Constituição. É notória e revelada a intenção de interferir nas universidades e de alinhar uma forma de pensamento. As declarações do ministro Weintraub não deixam dúvidas de que os bloqueios visavam afastar o que se chamou de “balbúrdia” nos campi (eventos políticos, manifestações partidárias etc.).

Com a finalidade de interferir na liberdade de cátedra e na liberdade de expressão das universidades, os atos do ministro buscaram apoio na possibilidade jurídica de se efetuar contingenciamentos. Com suporte em uma “norma de cobertura”, os atos foram praticados para afastar (fraudar) a aplicação de uma “norma fraudada”. Buscando amparo no artigo 165 da CF, densificado pelo artigo 9º da LRF, que embasam a possibilidade de se fazer contingenciamentos (norma de cobertura), os atos estatais são praticados para afastar a proibição firmada pela CF de o governo intervir na liberdade de cátedra e na liberdade de expressão. O Decreto 9.741, as portarias do secretário especial de Fazenda e os atos do Ministério da Educação se amparam em uma normatização de cobertura dada para finalidades diversas e embasam medidas que pretendem atacar a autonomia didático-científica das universidades federais (norma fraudada).

O arcabouço normativo que ampara a possibilidade de efetuar contingenciamentos funciona como norma de cobertura para que o governo possa desatender a proibição de interferência posta pela ideia de autonomia didático-científica (norma fraudada). A fraude à Constituição é evidenciada pelo ataque ao artigo 207 da CF (autonomia didático-científica).

Se a autonomia financeira das universidades é diretamente atacada, os contingenciamentos fazem, a toda evidência, uma circunvolución de la Constitución, ou seja, fraudam a proibição de interferência nas universidades. A autonomia didático-científica sofre uma espécie de vulneração oblíqua. A fraude à Constituição precisa ser afastada, e ao STF cumpre invalidar os atos que fazem o contingenciamento das verbas do ensino superior.

A Constituição merece respeito! Contornar sua aplicação é indigna e antijurídica fraude!

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  • Brave

    é professor de Direito Público da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pós-doutor em Direito (Democracia e Direitos Humanos) pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.

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