Direto do Carf

Carf consolida posição que reconhece receita decorrente de decisões judiciais

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

26 de junho de 2019, 9h53

Há muito o antigo provérbio ensina que “não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe”, e na coluna de hoje trataremos justamente do contribuinte que, em seu momento de júbilo após ver reconhecido um crédito tributário contra o Estado, em processo judicial, passa logo à dúvida e aflição sobre o momento em que deverá pagar o Imposto de Renda (IRPJ) e a Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL) sobre esse ganho.

Em outras palavras, trataremos do momento em que o resultado positivo decorrente da decisão judicial obtida deverá ser reconhecido e oferecido à tributação da renda, tema que tem sido recorrente no Carf, e provavelmente também gerará um contencioso relacionado aos diversos contribuintes beneficiados pela decisão do STF pela exclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.

Sobre o tema, a Receita Federal editou o ADI SRF 25/2003, no qual consignou: a) no caso de reconhecimento das receitas pelo regime de caixa, o indébito e os juros passam a ser receita tributável do IRPJ e da CSLL no momento do pagamento do precatório (para pessoas no lucro presumido ou arbitrado)[1]; b) no regime de competência, o indébito passa a ser receita tributável do IRPJ e da CSLL no trânsito em julgado da sentença judicial que já define o valor a ser restituído; c) ainda no regime de competência, caso a sentença não defina o valor a ser restituído (sentença ilíquida), será c.1) na data do trânsito em julgado da sentença que julgar os embargos à execução, fundamentados no excesso de execução; ou c.2) na data da expedição do precatório, quando a Fazenda Pública deixar de oferecer embargos à execução.

O cerne das controvérsias instauradas pelas autuações fiscais diz respeito à definição do momento em que passa a existir a disponibilidade jurídica a que se refere o CTN, em seu artigo 43. Com efeito, a legislação do IRPJ, incorporando normas da legislação contábil (artigo 187, parágrafo 1º da Lei 6.404/76), elegeu o regime de competência para apuração do resultado das empresas, como regra geral, segundo o qual as receitas e as despesas devem ser reconhecidas contabilmente quando auferidas e incorridas, independentemente do efetivo recebimento ou pagamento (disponibilidade financeira).

Por outro lado, as receitas variáveis, como dito pela Receita no Parecer Normativo CST 11/1976, dependem de evento futuro, por sua natureza aleatória, deverão ser contabilizadas no período-base de sua disponibilidade jurídica, em razão da impossibilidade de, previamente, serem determinados ou fixados seus valores e por não se encontrarem juridicamente disponíveis em tal momento.

O Acórdão 1202-001.088[2] julgou o caso do sujeito que adquiriu precatórios, escriturando-os no ativo, mas procedendo à exclusão desse valor no Lalur. Nos debates, prevaleceu a posição de que o lançamento contábil foi equivocado, pois não haveria ingresso de recursos, mas simples “expectativa” de que o aumento se materializaria no futuro, não havendo disponibilidade jurídica.

No julgamento do Acórdão 1301-001.739[3], autuou-se a omissão no reconhecimento de variação monetária ativa sobre o precatório contabilizado em conta do ativo. Apesar do trânsito em julgado de decisão favorável em execução contra a União, o contribuinte optou por não atualizar a parcela controvertida em razão do ajuizamento de ação rescisório. O colegiado, ao analisar a questão, concluiu que, apesar da definição do valor do precatório, não haveria disponibilidade da renda sobre mera expectativa de recebimento, pela discussão na rescisória, razão pela qual não deveria reconhecer antecipadamente as variações monetárias.

No Acórdão 1301-002.122[4], discutia-se o não oferecimento do valor do precatório no momento do trânsito em julgado da decisão judicial. Ponderou-se, no caso, que, embora o precatório contenha um valor definido, que é o montante requisitado ao Poder Executivo, ele não representa necessariamente aquilo que vai ser pago, e a data da requisição não permite inferir quando o pagamento irá acontecer, à luz da realidade brasileira. Desse modo, o princípio contábil da competência deveria ser harmonizado com a capacidade contributiva e a razoabilidade, para que a tributação recaísse apenas no momento em que houver certeza da realização do direito, com o seu pagamento, compensação ou cessão a terceiros. Aduz também, de forma complementar, que o artigo 27 da Lei 10.833/03 estabelece o IRRF sobre rendimentos em cumprimento de decisões da Justiça Federal apenas no momento do pagamento, aplicável tanto a pessoas físicas quanto às pessoas jurídicas.

O Acórdão 1402-001.705[5] analisou o caso de decisão judicial que condenou a União à indenização pelos lucros cessantes do contribuinte (e, portanto, sujeito ao IRPJ e CSLL). Na parte da decisão que tratou da ocorrência do fato gerador do IR, o relator pontuou — com a precisão da melhor técnica, ressalte-se — que a disponibilidade econômica ou jurídica não se confunde com o regime de reconhecimento de receitas, desse modo, ainda que se reconheça contabilmente o precatório como ativo, não há riqueza nova, tributável, nas mãos dos contribuintes.

Pontua também, o referido relator, que se é certo que não há direito que não se contraponha a uma obrigação, e vice-versa, também não se pode falar em receita de uma parte que ainda não corresponda a custo, despesa ou encargo da outra, e que, em termos de contabilidade pública, conforme o artigo 35, II, da Lei 4.320/64[6], a despesa só se caracterizaria com o seu empenho. Desse modo, as receitas do contribuinte devem ser reconhecidas à medida que se tornam despesas incorridas para o poder público.

No Acórdão 1301-003.282[7], o contribuinte lograra êxito em ação contra a União, obtendo decisão líquida e certa, sujeita apenas a cálculo aritmético, que fora contestada pela própria condenada, por meio de embargos à execução alegando excesso. Nesse caso, o colegiado considerou que, apesar da liquidez e certeza do montante, os embargos à execução afastavam a disponibilidade da riqueza nova, relativizando do regime da competência, pois as bases econômicas tributadas deveriam ser analisadas sob a perspectiva da capacidade contributiva que dá sustentação ao poder impositivo do Estado. Assim, a tributação deveria se dar apenas após o encerramento da discussão em embargos, com seu trânsito em julgado.

Em sentido contrário, o Acórdão 1401-001.898[8] entende que com o trânsito em julgado da ação de conhecimento, e subsequente liquidação, já haveria fundamento para, pelo princípio da competência, reconhecer a receita e tributá-la, ainda que haja posterior oposição de embargos de execução. No entender da relatora, os embargos não teria como finalidade o título, mas a execução, apesar de reconhecer que o provimento dessa ação poderia afetar o título executivo.

Essa decisão, entretanto, foi objeto de recurso especial da Fazenda, pois a data do fato gerador firmada pela turma implicou em reconhecimento da decadência. A Câmara Superior de Recursos Fiscais, ao proferir o Acórdão 9101-003.646[9], entendeu, por maioria de votos, que a discussão sobre o valor do crédito perdurara até o trânsito em julgado dos embargos, razão pela qual o próprio Fisco não teria elementos para quantificar o tributo devido, pela possibilidade de redução do montante a ser pago ao contribuinte. Além disso, ressaltou que cobrar o IRPJ/CSLL do contribuinte por riqueza que permanece nas mãos do poder público implicaria em uma tributação com efeito confiscatório.

A CSRF também analisou o tema no Acórdão 9101-002.866[10], mas negou provimento ao recurso especial do contribuinte em razão de circunstâncias específicas do caso concreto: nele, o contribuinte pleiteara judicialmente a restituição do ICMS-ST recolhido a maior, pelo preço de venda ser menor que o presumido pela montadora, e antes do trânsito em julgado já emitira notas fiscais de transferência do ICMS para a montadora, dispondo economicamente o referido valor. Assim, no momento do trânsito em julgado da ação, o crédito já havia sido transferido pelo contribuinte, antecipando assim o evento de realização da renda — em outras palavras, se ele já havia sido computado como receita, não haveria que assim considerá-lo novamente.

Feito esse apanhado das decisões mais recentes sobre a matéria, no âmbito do Carf, pode-se verificar que é amplamente majoritária, inclusive com manifestação recente da CSRF, o entendimento de que não haverá o fato gerador do IRPJ e da CSLL, relativo a ganhos decorrentes de decisão judicial definitiva, enquanto houver qualquer contestação ou dúvida acerca de seu conteúdo, ou não se tenha certeza do seu recebimento.

O fundamento dessa posição, entretanto, se dá por argumentos distintos:

i) o argumento da incerteza se baseia na assunção de que, ainda que a decisão judicial tenha definido o valor do crédito, a sua contestação, seja por embargos à execução, seja por ação rescisória, afastaria a confiabilidade necessária para que se reconheça essa receita;

ii) o argumento da dissociação sustenta que as noções de disponibilidade econômica ou jurídica não se encontram atreladas ao regime de competência, de modo que o reconhecimento da receita, para atender a um padrão contábil, não implicaria necessariamente a sua tributação, pela inexistência de acesso à riqueza nova.

Independente do argumento adotado, ambos dão suporte a decisões com entendimento distinto daquele proposto pela Receita no artigo 5º, caput da ADI SRF 25/2003[11].

Em relação aos precatórios expedidos, o Carf também tem se manifestado de forma crítica em relação ao artigo 5º, parágrafo 1º, II, do ADI SRF 25/2003[12]. Os precedentes analisados tem considerado que a mera expedição do precatório não é suficiente para que o contribuinte reconheça a sua receita, oferecendo-a a tributação.

Nesse ponto, novamente há duas linhas argumentativas identificadas, incompatíveis entre si:

i) o argumento da flexibilização aduz que o regime de competência deve ser interpretado à luz da capacidade contributiva e da razoabilidade (considerando a realidade do pagamento de precatórios no Brasil), para diferir o reconhecimento para o momento em que haja certeza da realização do direito patrimonial, com o seu pagamento, compensação ou sua cessão.

ii) o argumento da congruência pontua que o reconhecimento da receita do contribuinte deve se dar no mesmo exercício em que o ente público reconheça a despesa, que deve corresponder ao empenho do precatório, nos termos do artigo 35, II, da Lei 4.320/64.

Feitas essas considerações, pode-se concluir que, se ainda há a dúvida sobre o momento de reconhecimento dessa receita, pelo menos o Carf tem dado sua contribuição para que esse mal não dure para sempre, adotando uma linha mais atenta à efetiva disponibilidade de riqueza para o contribuinte.

*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] Para as empresas no lucro presumido, o entendimento pelo reconhecimento da receita apenas com o recebimento foi reafirmado recentemente pela Solução de Consulta Cosit 217/2018.
[2] Redator designado conselheiro Orlando Bueno, julgado em 11/2/2014.
[3] Relator conselheiro Luiz Tadeu Matosinho, julgado em 27/11/2014.
[4] Relator conselheiro Roberto Silva Júnior, julgado em 13/9/2016.
[5] Relator conselheiro Fernando Brasil, julgado em 3/6/2014.
[6] Art. 35. Pertencem ao exercício financeiro:
I – as receitas nêle arrecadadas;
II – as despesas nêle legalmente empenhadas.

[7] Relator conselheiro Nelso Kichel.
[8] Relatora conselheira Lívia de Carli Germano, julgado em 20/6/2017.
[9] Relator conselheiro Flávio Franco, julgado em 3/7/2018.
[10] Relatora conselheiro Daniele Souto Amadio, julgado em 14/9/2017.
[11] Art. 5º Pelo regime de competência, o indébito passa a ser receita tributável do IRPJ e da CSLL no trânsito em julgado da sentença judicial que já define o valor a ser restituído.
[12] § 1º No caso de a sentença condenatória não definir o valor a ser restituído, o indébito passa a ser receita tributável pelo IRPJ e pela CSLL: I – na data do trânsito em julgado da sentença que julgar os embargos à execução, fundamentados no excesso de execução (art. 741, inciso V, do CPC); ou II – na data da expedição do precatório, quando a Fazenda Pública deixar de oferecer embargos à execução.

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