Com o lançamento do Global Access to Justice Project e o surgimento de uma nova pesquisa mundial sobre acesso à Justiça[1], torna-se importante revisitar algumas premissas do Projeto Florença conduzido pelos professores Mauro Cappelletti e Bryant Garth, este último também coordenador da nova pesquisa.
Com esse estudo, pretendemos contextualizar os três modelos de assistência jurídica catalogados na pesquisa da década de 1970 e demonstrar seus efeitos na realidade brasileira.
O primeiro modelo, denominado pro bono, era caracterizado pela atuação de profissionais sem qualquer relação com o Estado, ausente qualquer fonte de custeio, cujo desempenho da assistência pautava-se em aspectos caritativos.
Em nosso país ele ainda é encontrado por meio da iniciativa de advogados particulares que, imbuídos do espírito de solidariedade, prestam atendimento às pessoas carentes de recursos, inclusive com amparo na legislação de regência da advocacia (Lei 8.906/1994 e Código de Ética da Advocacia)[2]. Explica Cappelletti sobre a atuação pro bono:
Até muito recentemente, no entanto, os esquemas de assistência judiciária da maior parte dos países eram inadequados. Baseavam-se, em sua maior parte, em serviços prestados pelos advogados particulares, sem contraprestação (munus honorificum). O direito ao acesso foi, assim, reconhecido e se lhe deu algum suporte, mas o Estado não adotou qualquer atitude positiva para garanti-lo. De forma previsível, o resultado é que tais sistemas de assistência judiciária eram ineficientes.
Reconhecendo que o direito à assistência jurídica compreenderia uma prestação estatal, Cappelletti catalogou sistemas jurídicos que estabeleciam serviços de assistência jurídica custeados direta ou indiretamente pelo Estado.
No sistema judicare, a prestação da assistência jurídica é feita por profissionais ou organizações da iniciativa privada que são remunerados pelo Estado conforme a respectiva atuação nos processos individuais das pessoas carentes de recursos, figura equivalente à advocacia dativa do Direito brasileiro[3]:
Trata-se de um sistema através do qual a assistência judiciária é estabelecida como um direito para todas as pessoas que se enquadrem nos termos da lei, Os advogados particulares, então, são pagos pelo Estado. A finalidade do sistema judicare é proporcionar aos litigantes de baixa renda a mesma representação que teriam se pudessem pagar um advogado.
Esse sistema ainda é identificado na Justiça Federal brasileira e nos estados em que o serviço de Defensoria Pública não é integral. Interessante considerar também que as universidades públicas que promovem ensino jurídico tradicionalmente prestam o serviço de assistência jurídica, tendo como exemplo o Serviço de Apoio Jurídico (Saju) da Universidade Federal da Bahia, e o Departamento Jurídico XI de Agosto, da Universidade de São Paulo.
A remuneração do sistema dativo brasileiro é regrada pelos diversos tribunais estaduais, cujo pagamento é feito a partir de tabelas previamente estabelecidas que atribuem valores aos atos processuais praticados, dentro da rubrica orçamentária destinada a esse fim.
No plano federal, a matéria é tratada pela Resolução 305, de 7 de outubro de 2014, editada pelo Conselho da Justiça Federal. Esse ato normativo determina a formação de um cadastro no Sistema Eletrônico de Assistência Judiciária Gratuita da Jurisdição Federal (artigo 11), por meio do qual os juízes selecionarão profissionais que prestarão atendimento às partes (artigo 22), quando não houver órgão da Defensoria Pública para prestar atendimento (artigo 7º, parágrafo 2º).
As críticas à advocacia dativa não são uma novidade do Direito brasileiro, pois já ocorrem em escala mundial há décadas. A baixa remuneração dos advogados é a principal fragilidade desse sistema de assistência jurídica.
Boaventura de Sousa Santos[4] e Leonardo Greco[5] já advertiam a necessidade de a assistência jurídica prestada pelo Estado ser efetivada a partir de um modelo sólido, em que as pessoas carentes de recursos pudessem litigar em igualdade de condições aos mais afortunados. Na mesma linha, Mayer Goldman acrescenta[6]:
Ocasionalmente, o acusado tem a sorte de ter um advogado experiente e capaz designado a ele. Os advogados ocupados não têm nem tempo nem inclinação para negligenciar sua prática mais lucrativa pelo privilégio de se aquecer na atmosfera do tribunal criminal. Portanto, o tribunal geralmente atribui um advogado entre os advogados presentes no momento ou que estão presentes com a finalidade de serem designados. Frequentemente advogados jovens e inexperientes são designados. Eles geralmente são honestos e meticulosos e dedicam muito tempo à preparação de seus casos. Embora se sintam contentes em aceitar tarefas não pagas, o benefício obtido com a experiência é provavelmente maior do que o que seus clientes recebem. (tradução livre)
Paul Wice em importante pesquisa feita nos EUA a respeito do sistema de assistência jurídica, destaca as vantagens do modelo de defensores públicos[7]:
Leo Silverstein, em seu relatório nacional definitivo para a American Bar Foundation, intitulado “Defesa dos Pobres em Casos Criminais nos Tribunais Estaduais”, concluiu que os programas de defensor público ofereciam as seguintes vantagens:
1. Fornecer aconselhamento experiente e competente
2. Assegurar continuidade e consistência na qualidade da defesa, especialmente em comparação com o advogado designado
3. Ser mais capaz de rastrear os réus para elegibilidade
4. São mais econômicos para operar em áreas populosas
5. Oferecem melhor cooperação entre a defesa e o promotor, o que pode resultar em melhores (mais vantajosos) resultados. (tradução livre)
Nessa perspectiva, há sistemas jurídicos em que a assistência jurídica é prestada por um corpo assalariado de profissionais, modelo conhecido como salaried staff[8], conforme apontam os professores Cappelletti e Garth:
O modelo de assistência judiciária com advogados remunerados pelos cofres públicos tem um objetivo diverso do sistema judicare, o que reflete sua origem moderna no Programa de Serviços Jurídicos do Office of Economic Opportunity, de 1965 — a vanguarda de uma “guerra contra a pobreza”. Os serviços jurídicos deveriam ser prestados por “escritórios de vizinhança”, atendidos por advogados pagos pelo governo e encarregados de promover os interesses dos pobres, enquanto classe.
Este, aliás, é o modelo obrigatório a ser adotado no Direito brasileiro e que teve um interessante processo evolutivo no ordenamento jurídico, até alcançar o formato hoje conhecido como Defensoria Pública, diante da obrigação constitucional contida no artigo 5º, LXXIV, e no artigo 134.
O modelo de assistência jurídica prestado por uma instituição estatal com características próprias é uma opção nascida no âmago da Constituição da República de 1988, diante da experiência exitosa do órgão denominado assistência judiciária existente no estado do Rio de Janeiro, utilizado como padrão para a ampliação do serviço público em âmbito nacional.
Infelizmente, a pesquisa desenvolvida por Mauro Cappelletti, James Gordley e Earl Johnson não alcançou nosso sistema. Justificam os pesquisadores[9]:
Infelizmente, o sistema político vigente no Brasil não tem sido conducente a uma implementação adequada dos direitos à assistência jurídica. A maioria dos estados brasileiros ficou satisfeita em estabelecer equipes muito pequenas. Consequentemente, os observadores relatam que, apesar das garantias constitucionais e estatutárias, o sistema financiado pelo governo só atende a uma pequena fração da necessidade. Uma pequena parte dessa lacuna é preenchida por sindicatos que são obrigados por lei a prestar assessoria jurídica e representação a seus membros em questões trabalhistas, e por alguns esforços modestos de organizações privadas de assistência social, especialmente em casos de direito de família. (tradução livre)
É interessante destacar que o modelo do antigo estado da Guanabara (atual estado do Rio de Janeiro), inspiração das outras Defensorias Públicas, nasceu do Ministério Público desse mesmo estado. A atividade de assistência jurídica era prestada no âmbito do órgão de promoção da ordem jurídica e persecução penal[10], sempre pelos ocupantes iniciais da carreira, realidade que perdurou até meados da década de 1970, quando houve a fusão do estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro e o consequente desmembramento paulatino das carreiras da assistência judiciária e do Ministério Público.
A ideia central que predominava no ordenamento jurídico era a de que um único órgão estatal poderia receber encargos para o exercício de posições processuais antagônicas. Assim, até o advento da Constituição da República hoje vigente, o Ministério Público, no plano federal, exercia a função de representação e defesa processual das pessoas jurídicas de direito público interno, no caso, a União Federal. Em alguns estados, o Ministério Público, além de exercer a função de titular da ação penal, também teria a missão de exercer a defesa, inclusive criminal, das pessoas carentes de recursos, como outrora ocorreu no estado do Rio de Janeiro.
Outro exemplo interessante do modelo público de assistência jurídica, já com estruturação diversa, foi identificado no estado de São Paulo, onde a assistência foi prestada por muitos anos pela sua Procuradoria-Geral, órgão de representação da pessoa jurídica de direito público. No ano de 2006, depois de intenso movimento de pressão popular, houve a criação da Defensoria Pública naquele estado[11].
A criação da Defensoria Pública derivava, em grande parte, da desconfiança com o modelo paulista, especialmente nas causas aforadas em face das pessoas jurídicas de direito público (estado de São Paulo, por exemplo), como o usuário dos serviços poderia confiar no profissional encarregado de sua defesa se ele estaria administrativamente vinculado à parte contrária do processo.
Era necessária a construção de um modelo de assistência jurídica estatal que ostentasse plena autonomia funcional, administrativa e financeira, tal como proposto pela Constituição de 1988, posteriormente emendada em 2004, 2012, 2013 e 2014, nas matérias afetas à Defensoria Pública.
Nesse cenário é que nasce a Defensoria Pública, instituição pública composta de agentes políticos que ingressam por meio de concurso público de provas e títulos, prevendo a Constituição e a Lei Complementar 80/1994 uma séria de funções institucionais, princípios, garantias e prerrogativas que evitam qualquer potencial limitação à sua atuação.
A importância da pesquisa realizada no seio do Global Access to Justice Project é modernizar a percepção que se tem sobre o acesso à Justiça e como os novos institutos jurídicos e novas tecnologias podem servir de instrumento de facilitação dos mais carentes à tutela adequada de direitos.
A evolução do sistema jurídico brasileiro é um importante indicador da necessidade se aprimorar a pesquisa, que conta com a participação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, da Universidade Federal Fluminense e de outras instituições de ensino e Defensorias Públicas.
[1] Mais informações sobre a pesquisa podem ser obtidas em http://globalaccesstojustice.com.
[2] “(Lei n. 8.906/94) Art. 2º O advogado é indispensável à administração da justiça.
§ 1º No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.
(Código de Ética da Advocacia) Art. 30. No exercício da advocacia pro bono, e ao atuar como defensor nomeado, conveniado ou dativo, o advogado empregará o zelo e a dedicação habituais, de forma que a parte por ele assistida se sinta amparada e confie no seu patrocínio.
§ 1º Considera-se advocacia pro bono a prestação gratuita, eventual e voluntária de serviços jurídicos em favor de instituições sociais sem fins econômicos e aos seus assistidos, sempre que os beneficiários não dispuserem de recursos para a contratação de profissional.
§ 2º A advocacia pro bono pode ser exercida em favor de pessoas naturais que, igualmente, não dispuserem de recursos para, sem prejuízo do próprio sustento, contratar advogado.
§ 3º A advocacia pro bono não pode ser utilizada para fins político-partidários ou eleitorais, nem beneficiar instituições que visem a tais objetivos, ou como instrumento de publicidade para captação de clientela.”
[3] GARTH, Bryant; CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988, p. 199.
[4] “No Brasil está-se a realizar aquilo que eu propus em Portugal, mas que não foi possível concretizar devido, sobretudo, à oposição da Ordem dos Advogados: a criação de uma defensoria pública. A experiência comparada mostra-nos que que, quando a assistência judiciária é entregue à Ordem dos Advogados, não funciona com eficácia. A razão é simples: a Ordem dos Advogados quer proteger o seu mercado, ou seja, reservar para a advocacia bem remunerada o desempenho profissional de qualidade. A logica de mercado não lhe permite deslocar bons advogados para fazer assistência judiciária. Seria um contrassenso. Tem, por isso, que haver um outro sistema. Mas, em Portugal, quando propus a criação do defensor público, que não era um funcionário do estado, houve logo a reação de que se tratava de mais uma burocracia do Estado. O que eu propunha era a criação de um instituto público, uma figura diferente da de um serviço de Estado” (SANTOS, Boaventura de Sousa. Par uma revolução democrática da justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2014. p. 50).
[5] “O sistema ideal é aquele em que o patrocínio dos interesses dos pobres é exercido em igualdade de condições com o daqueles que podem arcar com a contratação de advogados particulares.” (GRECO, Introdução ao direito processual civil. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 1. p. 434).
[6] GOLDMAN, Mayer C. The public defender: a necessary factor in the administration of justice. New York: G. P. Putnam’s Sons, 1917, p. 20.
[7] WICE, Paul. Public defenders and the american Justice System. Connecticut: Praeger Publishers, 2005. P. 12.
[8] GARTH, Bryant; CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988. P. 202.
[9] CAPPELLETTI, Mauro; JOHNSON, Earl, Jr.; GORDLEY, James. Toward equal justice: a comparative study of legal aid in modern societies. Milano: Giuffrè, 1975. p. 649).
[10] A própria regulamentação do Ministério Público foi marcada por grande instabilidade até o advento da Constituição de 1988. A primeira lei nacional que definiu o seu regime jurídico foi a Lei Complementar 40, de 14 de dezembro de 1981, afirmando o seu papel de defesa da ordem jurídica.
[11] “A sociedade civil organizada se mobilizou objetivando o cumprimento, pelo legislador estadual, do mandamento constitucional que impõe a institucionalização da Defensoria Pública Estadual. A demanda era pela criação da Instituição, cuja independência frente ao Poder Público asseguraria a efetiva tutela jurídica integral e gratuita aos necessitados.” GROSTEIN, Julio. Lei orgânica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo: comentários à Lei Complementar estadual 988/06. Salvador: Juspodivm, 2014. (Coleção Estatutos Comentados, p. 39).