Opinião

A situação do estrangeiro nos dias atuais e a posição do Supremo

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24 de junho de 2019, 14h29

Michael, um finlandês de nascimento, teve de ganhar o mundo ainda em tenra idade, quando a cidade onde morava foi pilhada em selvageria, num palco de conflitos religiosos.

Cassado, o barco de fuga do estrangeiro adernou. Seu corpo moribundo, febril e ferido, foi resgatado por uma cidadã europeia. Acolhido em uma igreja, o órfão foi educado por padres.

Anos mais tarde, o jovem enfrentaria outra tragédia. Numa visita de trabalho, nas imediações de Veneza, ele foi vítima de um assalto violento, intentado por sua condição de forasteiro.

Já casado, Michael ainda sofreu outro golpe do destino. Presenciou sua companheira — aquela que o socorreu da tentativa de latrocínio — ser presa sob acusação de cunho religioso.

Para alegria do leitor comovido, Michael não existe. Ele é personagem central da obra O Aventureiro, do novelista finlandês Mika Toimi Waltari[1].

Waltari descreveu muito bem as perseguições políticas e religiosas feitas ao estrangeiro Michael. Enalteceu que o martírio de quem está fora de sua pátria é sempre redobrado.

Observem que a história de Michael teria ocorrido no século XV, em uma Europa tomada por dissensos do movimento reformista cristão: protestantismo[2].

Ainda nas trevas do conhecimento, o cidadão que deixasse de ir à missa ou apresentasse a cura repentina de um mal desconhecido poderia ser considerado herege, ser preso e ainda queimado.

Mas paremos para pensar: quantos Michaeis não há, nos dias de hoje, em um barco à deriva? Saqueados nas sarjetas? Presos sem saber por quê?

Problemas com estrangeiros, vistos daqui do centro da América do Sul, parecem uma realidade distante, fora dos espectros de preocupação para um brasileiro comum.

O que desterrados fugitivos da Síria, do Afeganistão, da Nigéria, da Turquia ou até do México têm conosco? Em princípio, realmente, nada.

Segundo o Acnur (órgão das Nações Unidas), há 60 milhões de refugiados, dos quais, cerca de 7 milhões se movimentam na América Latina[3].

As ruas de cidades brasileiras, pequenas e grandes, revelam uma segunda onda migratória, com rostos, línguas e hábitos diferentes. A primeira delas ocorreu após e durante as grandes guerras.

Para além das opções do turismo, do trabalho livre ou mesmo da realização de sonhos, de fato, há milhões de estrangeiros deixando suas casas e países: não por opção, mas para preservarem suas vidas.

Há países que não dão condições a seus cidadãos para conviverem pacificamente em um mesmo solo, partilhando ideias distintas das definidas por um sistema (político ou religioso) rigorosamente instituído[4].

Estudiosos dão a este fenômeno o nome de política da diferença[5], pela qual determinados grupos dominantes, alinhados por esta ou aquela posição de vida, acabam por alijar de seu convívio quem é diferente.

Entre países soberanos há listas de pessoas procuradas internacionalmente. Estados soberanos buscam, entre si, a localização e o apenamento dos listados. Esse assunto está afeto às polícias internacionais, pedidos de extradição etc.

Nesse contexto, é preciso diferenciar aqueles que praticam infrações penais graves (fugitivos) e cidadãos a mercê de perseguição política (refugiados). O fator distintivo deve sempre estar na gravidade do ato apontado como criminoso.

O parâmetro brasileiro, após 2016, estabelece como graves, para fins de extradição e proteção contra terrorismo, os crimes praticados à moldura da Lei 13.260/2016: terror social ou generalizado… o perigo à paz pública.

O ambiente internacional dos últimos dois anos parece chamar mais a atenção dos brasileiros para os vizinhos venezuelanos, além de episódios silenciosos, como o de turcos que optaram por viver no Brasil.

Dias atrás, a mídia noticiou que um professor nascido em Kastamonu (e criado em Ankara) foi detido, em São Paulo, sob a acusação de ter praticado terrorismo, a partir de acusação feita pelo atual governo da Turquia.

Sipahi, o turco, é naturalizado brasileiro. O jovem, de pouco mais de 30 anos, deixou casa, amigos e ancestrais para construir, no Brasil, a retomada de sua vida que foi obstruída em seu país de nascimento.

Foi detido por ter depositado cerca de R$ 1 mil em conta financeira (ligada ao Hizmet), que faria oposição política ao atual governo turco (Erdorgan) e por se agremiar em centro cultural daquele país que funciona por aqui.

No século XV, um desvio de olhar bastava a detentores de poder eclesiástico para definir a sorte (ou não) de um cidadão. Para sobreviver às intempéries da vida, Michael e sua família só contavam com a sorte e a coragem.

O que socorre Sipahi, nos dias de hoje, que diferencia sua vida do aventureiro finlandês?

É de conhecimento público que o Hizmet é uma agremiação pacifista que não se vale de força nem de recursos com risco à segurança pública. O Brasil é um país hospitaleiro aos turcos, nos termos das leis de reciprocidade.

Ainda, o Supremo Tribunal Federal brasileiro tem entendimento sólido no sentido de que a interpretação de atos terroristas, para evitar perseguições, é feita à luz das liberdades constitucionais e dos direitos humanos[6].

Diferentemente de tempos passados, pelo menos três fatores socorrem os perseguidos de hoje. A velocidade da comunicação, a diminuição das fronteiras nacionais e a prática do discurso dos direitos humanos.

Nos dias atuais, a rede mundial de computadores joga luz sobre movimentos políticos internacionais que perseguem cidadãos e tomam de empréstimo o nome do terrorismo para qualificar quem lhes opõe.

No campo da internet não há mais segredos. Com velocidade, a fragilidade de acusações políticas montadas para satisfazer interesses particulares são mais facilmente descobertas[7].

Em segundo lugar, as fronteiras dos países raramente conseguem conter movimentos migratórios em situações de turbulências internacionais. Isso não é novidade, e a humanidade tem centenas de diásporas historicizadas[8].

O difícil dilema norte-americano de fortificar fronteiras apenas simboliza a dificuldade extrema de controlar, um a um, os meios de locomoção transfronteiriços, cada vez mais acessíveis.

Por fim, parece cada vez mais real que o cidadão do mundo tenha direito de manifestar e vivenciar suas liberdades no campo político e religioso, conforme dispõe o artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Do papel à vida prática, os dias atuais assistem à consolidação de uma série de declarações, convenções, órgãos e mecanismos de proteção internacional aos cidadãos, cada vez mais efetivos e integrados a soberanias nacionais[9].

Conflitos étnicos, políticos e religiosos continuarão a desterrar pessoas diariamente. Se cada vez mais brasileiros viajam ao exterior (e recebem estrangeiros), é tempo de despertar para o pertencimento[10] desse problema.

O conterrâneo brasileiro é nosso igual. Fala bem o português, compartilha o traço cultural e está impregnado pelos nossos costumes. Ele tem a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados e seus correligionários a lhe proteger.

E o estrangeiro no Brasil?

É salutar saber que pesa aos ombros do estrangeiro o fardo da diferença. Até prova em contrário, o estrangeiro é, antes de tudo, um estranho que veio de fora. Sua vida depende de si e de uma compreensão hospitaleira[11] do Brasil.

Para poder afirmar que o Brasil é um país livre, de pessoas livres, é preciso saber se o frugal da vida dos estrangeiros de bem, que aqui vivem, pode ou não se dissipar ao sabor de desventuras governamentais externas.

A lente de Mika Waltari, ao desenhar a trajetória de Michael, mostrou que o governo eclesiástico da Europa seiscentista não deu liberdade nem descanso a nenhum cidadão que desafiasse seus postulados.

Michael Foucault, em sua obra sobre a coragem e a verdade[12], aponta que, de todos os sistemas políticos e jurídicos, considera-se democrático aquele que não segrega os indivíduos apenas pela narrativa de seus soberanos.

O destino de Sipahi e tantos outros estrangeiros perseguidos na atualidade estão nas mãos da Justiça do país que lhes acolhe. O julgamento do turco, que se avizinha no STF brasileiro, é momento para tais reflexões.


[1] Vieira, José Geraldo (Trad.). Belo Horizonte: Ed. Itatiaia Ltda., 1991.
[2] SCAER, David P. Sanctification in Lutheran Theology. Concordia Theological Quarterly, v. 49, n. 2-3, p. 181-195, 1985.
[3] DAS FORÇAS ARMADAS, A. Atuação; Venezuelanos, Deslocados. Operação Acolhida. MILITARY REVIEW, 2019.
[4] HANLEY, David (Ed.). Christian democracy in Europe. A&C Black, 1996.
[5] GUPTA, Akhil; FERGUSON, James. Beyond “culture”: space, identity, and the politics of difference. Cultural anthropology, v. 7, n. 1, p. 6-23, 1992.
[6] Por todos, tem-se no julgamento da QO no Pedido de Prisão Preventiva na Extradição 730/DF (Governo do Peru vs. Segundo Panduro Sandoval) um marco jurisprudencial importante. O caso, relatado pelo ministro Celso de Mello, estabelece que a definição de terrorismo, para fins de extradição, é feita à luz dos valores legais e constitucionais brasileiros. Para além de eventual “variação terminológica registrada nas leis penais em confronto”, o ordenamento jurídico brasileiro não adota automaticamente a concepção alienígena de terrorismo, balizando-se pelos requisitos materiais e formais da lei brasileira (STF, 16/12/2014).
[7] FARRELL, Henry. The consequences of the internet for politics. Annual review of political science, v. 15, 2012.
[8] ROSENAU, James N. Along the domestic-foreign frontier: exploring governance in a turbulent world. Cambridge University Press, 1997.
[9] FACHIN, Melina Girardi (org.). Guia de proteção dos direitos humanos: sistemas internacionais e sistema constitucional. Editora Interssaberes, 2019.
[10] CALHOUN, Craig. ‘Belonging’ in the cosmopolitan imaginary. Ethnicities, v. 3, n. 4, p. 531-553, 2003.
[11] Expressão de Jaques Derrida (DERRIDA, Jacques; DUFOURMANTELLE, Anne. Of hospitality. Stanford University Press, 2000.). “O estrangeiro…, desajeitado ao falar a língua, sempre se arrisca a ficar sem defesa diante do direito do país que o acolhe ou que o expulsa; o estrangeiro é, antes de tudo, estranho à língua do direito na qual está formulado o dever de hospitalidade, o direito ao asilo, seus limites, suas normas, sua polícia… Ele deve pedir hospitalidade numa língua que, por definição, não é a sua, aquela imposta pelo dono da casa, o hospedeiro, o rei, o senhor, o poder, a nação, o Estado.”
[12] FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e de outros II: curso no collège de France (1983-1984). Eduardo Brandão (trad.) Marins Fontes, 2017.

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