Opinião

Sobre a competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes conexos

Autor

  • Roberto Beijato Junior

    é advogado doutor e mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo professor do curso de Direito do Ibmec-SP e autor de diversos artigos e obras nos campos da Filosofia e do Direito.

24 de junho de 2019, 9h58

No dia 14 de março, o Supremo Tribunal Federal julgou o INQ 4.435, onde se debatia se os crimes comuns conexos aos crimes de competência da Justiça Eleitoral deveriam ser julgados no campo da Justiça Federal ou se devia prevalecer a vis attractiva da Justiça Eleitoral.

Em votação bastante apertada (6 a 5) definiu-se que a competência para julgar os crimes conexos deve caber à própria Justiça especializada, tendo-se, portanto, reafirmado a competência da Justiça Eleitoral para julgar os crimes comuns que eventualmente sejam conexos aos crimes de competência eleitoral.

A bem da verdade, em condições jurídicas normais, este é um tema deveras simples. No entanto, condições jurídicas normais é o que não existe no Brasil há um tempo já demasiado longo. Vivemos a era da república dos especialistas na Constituição. As questões de ínsito relevo constitucional deixaram de ser respondidas à luz da hermenêutica constitucional e seus critérios, passando a responder às opiniões, ao "clamor público" e aos mais diversos interesses que orbitam as decisões jurisdicionais.

Não custa reafirmarmos: o valor do Direito impõe que, por vezes, tenhamos de fazer ceder as nossas convicções pessoais, seja de índole moral, ideológico etc., por mais bem intencionadas ou nobres que sejam, para fazer valer o próprio Direito. Quando o Direito deixa de obedecer aos próprios pressupostos, programas e, ao próprio código, cedendo aos pressupostos e programas de outros sistemas ocorre o que Luhmann chamava de "corrupção sistêmica". Isto é, uma situação em que o código do sistema jurídico e a legalidade são utilizadas apenas como simulacros para ocultar o predomínio de uma ratio que foge a este próprio código. Infelizmente esta situação tem se mostrado bastante frequente em se tratando do Direito Constitucional brasileiro. Tem sido cada vez mais comum decisões emanadas do Poder Judiciário que buscam legitimidade popular atendendo ao clamor público. O Direito, neste cenário, perde seu valor. A cada decisão deste jaez reafirma-se o predomínio de valores outros sobre o próprio Direito.

Não custa mencionarmos a título de exemplo a Ação Cautelar 4.070/DF, da relatoria do falecido ministro Teori Zavascki. Trata-se de um belo exemplo da teoria schmittiana. Lembremos a primeira frase da parte I da Teologia Política: Soberano é quem decide sobre o estado de exceção[1]. Esta definição remontará à distinção existente em Schmitt entre a Constituição (com c maiúsculo — no original, Verfassung) e a constituição (com c minúsculo — verfassung). A Constituição consiste numa vontade política fundamental que precede a própria manifestação do poder constituinte originário donde advirá a constituição positiva. A Constituição é que deve ser preservada a qualquer custo e, por vezes, diante de certas situações de excepcionalidade, será necessário excepcionar a incidência das próprias normas constitucionais positivadas, que integram a constituição a fim de resguardar esta vontade política última. Daí porque o grande embate travado entre Schmitt e Kelsen se dava, em especial, na temática da guarda da Constituição. Para Kelsen, considerando a Constituição simplesmente como um conjunto de normas de superior hierarquia dentro de sua estrutura escalonada de ordenamento, certo é que, em última instância, necessita-se de um órgão jurisdicional que uniformize a interpretação do texto constitucional, ou seja, uma corte constitucional que atuará como guardiã da Constituição, compreendida sob o aspecto normativo. Por outro lado, para Schmitt a guarda da Constituição deve caber a um líder político último, no qual o povo se represente e, portanto, será este o sujeito legitimado a estabelecer o conteúdo desta "vontade política fundamental" e, a partir daí, definir uma situação como sendo excepcional ou normal. Sob tal teoria é que durante todo o regime nazista na Alemanha a Constituição de Weimar permaneceu formalmente em vigor, embora excepcionada pelo governo mediante os chamados "decretos de emergência".

Entre nós, ao contrário, não se faz qualquer distinção entre Constituição e constituição. Daí porque o artigo 102 de nosso texto constitucional outorgou ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, ou seja, delegando tal função a um órgão jurisdicional responsável, em última instância, por estabelecer o conteúdo, sentido e alcance das normas constitucionais. O Supremo é o protetor da Constituição, e não o seu proprietário, não obstante recentemente tanto o ministro Celso de Mello como o ministro Luís Roberto Barroso tenham afirmado em julgamentos distintos que "a Constituição é aquilo que o Supremo diz que ela é".

Num tal cenário se verifica como pôde ser possível, por exemplo, que na já mencionada AC 4.070 tenha se decidido pela suspensão do mandato parlamentar de Eduardo Cunha e, por conseguinte, de seu afastamento da presidência da Câmara dos Deputados. Causa estranheza. A Constituição de 1988 não trata da hipótese de suspensão de mandato parlamentar. Trata, sim, da hipótese de perda, a qual, ainda que condenado criminalmente o parlamentar, será decidida pela respectiva Casa Legislativa, e não pelo Poder Judiciário, consoante parágrafo 2º do artigo 55 da Constituição. O ministro Teori também percebeu este fato. Mas reconheceu se tratar de uma situação "excepcional" e, portanto, ainda que a Constituição não permitisse a decisão que viria a tomar, seria o caso de se excepcionar a Constituição para fazer valer sua vontade política. Trata-se da soberania schmittiana sendo exercida por um guardião normativo da Constituição, e não de um guardião de uma vontade política que entre nós sequer se fala. Com a vênia que uma decisão deste tipo merece, mas estamos diante de uma aberração jurídica. Numa situação de normalidade jurídica esta decisão seria fervorosamente atacada. Ao contrário, na situação em que vivemos a mesma é aplaudida e, mais gravemente, pelos próprios "juristas".

Vejamos trecho de referida decisão que bem remonta à teoria schmittiana que aqui se traz a tona:

Decide-se aqui uma situação extraordinária, excepcional e, por isso, pontual e individualizada. A sintaxe do direito nunca estará completa na solidão dos textos, nem jamais poderá ser negativada pela imprevisão dos fatos. Pelo contrário, o imponderável é que legitima os avanços civilizatórios endossados pelas mãos da justiça. Mesmo que não haja previsão específica, com assento constitucional, a respeito do afastamento, pela jurisdição criminal, de parlamentares do exercício de seu mandato, ou a imposição de afastamento do Presidente da Câmara dos Deputados quando o seu ocupante venha a ser processado criminalmente, está demonstrado que, no caso, ambas se fazem claramente devidas. A medida postulada é, portanto, necessária, adequada e suficiente para neutralizar os riscos descritos pelo Procurador-Geral da República[2].

Reconhece-se que não há previsão específica, com assento constitucional acerca do afastamento de parlamentar pela jurisdição criminal, mas pouco importa, "as medidas se fazem devidas".

Veja-se: do ponto de vista ideológico e moral a maior parte dos brasileiros desejam que Eduardo Cunha fique muitos anos preso. No entanto, quando o Direito cede aos ditames da moral, perde seu valor e sua dignidade. Por mais que ideológica e moralmente desejemos algo, o valor do Direito impõe que nos abstenhamos de satisfazer este desejo. Infelizmente, não é o que tem ocorrido no Brasil.

Esta breve introdução sobre a teoria schmittiana e a atuação de longa data pelo Supremo nos moldes do soberano de Carl Schmitt serve para retratar um cenário em que até mesmo o óbvio resultado em um 6 a 5 no Supremo e precisa ser debatido não sob os pressupostos do Direito, mas sob os pressupostos da política, que alguns membros do Poder Judiciário se veem como autênticos emissários.

Pois bem, vamos à questão objeto. No INQ 4.435, o Supremo Tribunal Federal reafirmou sua jurisprudência no sentido de reconhecer como competente a Justiça Eleitoral para julgamento dos crimes comuns conexos aos eleitorais. A partir disso, uma onda de levantes que davam caso do suposto fim da operação "lava jato" que seria ocasionado por tal decisão. Nada além de sofismas de banal compreensão, como é tão comum nesta era de parca reflexão em que vivemos[3]. Fato é que a questão se mostra bastante simples. No caso em questão discutia-se se caberia à Justiça Eleitoral julgar os crimes comuns que fossem conexos a crimes especificamente eleitorais ou se seria possível a cisão do processo, destinando-se à Justiça Federal o julgamento dos crimes comuns e à Justiça Eleitoral tão somente o crime de índole eleitoral.

As hipóteses de conexão no processo penal são definidas no artigo 76 do Código de Processo Penal. Ocorrendo uma daquelas hipóteses a fixação da competência para julgamento unitário das infrações penais será definida, por sua vez, na forma do artigo 78 do mesmo diploma legal, onde ler-se-á, em seu inciso IV, que no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta. Uma regra desta clareza deveria, em tempos de normalidade jurídica, solucionar o problema enfrentado no INQ 4.435 sem maiores delongas. Trata-se de um mero caso do atualmente tão esquecido, mas que bem faria se fosse lembrado, brocardo romano in claris cessat interpretatio.

Não fosse o suficiente, o artigo 121 da Constituição Federal delega à legislação infraconstitucional a definição da competência da Justiça Eleitoral. Cumprindo essa finalidade, o artigo 35, inciso II do Código Eleitoral dispõe que compete aos juízes processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do tribunal superior e dos tribunais regionais. Mais uma vez, resta clara a competência da Justiça Eleitoral para julgar os crimes comuns conexos aos crimes eleitorais.

Ainda, o delito de "caixa 2" eleitoral, em que pese não possua tipificação específica, acaba encontrando adequação típica no crime descrito no artigo 350 do Código Eleitoral. Tratando-se, por sua vez, de crimes conexos a este, certo é que a vis attractiva será exercida pela Justiça Eleitoral, a quem competirá o julgamento unificado da infrações penais.

Do ponto de vista jurídico, longe está de ser um caso cuja complexidade justifique um 6 a 5 no STF, mas, como já dito, vivemos tempos em que até mesmo o óbvio, no Direito, obedece a fatores alheios ao sistema jurídico, e assim procede de forma oculta.

Correta, portanto, a fixação da competência eleitoral para julgamentos dos crimes comuns conexos aos crimes eleitorais e, ainda, sendo absolutamente descabidas conjecturas acerca da aptidão estrutural da Justiça Eleitoral para tanto. A uma porque tal conjectura é absolutamente impertinente no exame hermenêutico das normas definidoras da competência da Justiça Eleitoral e das regras nos casos de conexão, que são bastante claras. A duas, porque nada há — além dos sensacionalismos vazios de conteúdo — que permita fazer uma tal assunção.


[1] Cf. SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 7.
[2] STF, AC 4.070. Rel. Min. Teori Zavascki, tendo a liminar sido confirmada pelo plenário da Corte aos 04 de maio de 2016.
[3] Sobre a crise do pensamento moderno, conferir: BEIJATO JUNIOR, Roberto. O tempo da modernidade e o tempo da reflexão, in Revista do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, ano XX, nº 140, p. 69-86.

Autores

  • Brave

    é professor de Direito Penal e Processual Penal da Escola Paulista de Direito (EPD), coordenador do curso de Direito da mesma instituição e mestre e doutorando em Filosofia do Direito pela PUC-SP.

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