MP no Debate

Contato entre eleitores e parlamentares via redes sociais emula o facciosismo

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24 de junho de 2019, 12h45

A imagem de deputados interagindo com aparelhos celulares em suas redes de sociais, durante sessão da Câmara[1], suscitou um antigo tema da democracia representativa: a política levada a efeito sem mediação institucional. Estaríamos vivenciando uma espécie de retorno à teoria do mandato imperativo, no qual o representante se acha vinculado ao representado? O contato direto entre mandatário e eleitores poderia significar um elemento regenerador da democracia? Seria essa uma forma de renovar a crença no regime democrático? Ou esse fascínio pelo contato direto entre representados e representantes seria, na verdade, o germe de uma espécie de novo fanatismo político que colocaria em risco a própria democracia?

A política, em tempos de redes sociais, tem trazido diversas questões, sendo a mais significativa delas a possibilidade de estabelecer um liame direto entre o eleitor e o detentor do poder, sem a mediação das instâncias legais como preconiza vetusta tradição constitucional.

Esse “novo” modo de fazer política sucedeu o ocaso dos partidos políticos tradicionais. A política institucionalizada exercida através do mandato representativo começou a sofrer fortes abalos nas chamadas “jornadas de junho de 2013”. A disfuncionalidade do mandato, evidenciada pela distância entre a classe política e o corpo eleitoral, ficou bem delineada nos eventos com a expressão “não nos representam”, empunhada em faixas e cartazes nas enormes manifestações ocorridas naquele ano.

De outro lado, a apropriação da democracia representativa pelo poder econômico evidenciou outra faceta da degeneração do sistema político, a ponto de se dizer que teríamos criado uma espécie de plutocracia no país, que veio se consolidando ao longo dos anos, seguindo à redemocratização e desaguando na operação "lava jato".

Nas eleições gerais de 2018, esse modelo de fazer política recebeu seu mais forte golpe com a eleição de inúmeros candidatos sem qualquer tradição partidária, boa parte dos quais se apoiam fortemente no contato direto com os eleitores através das mídias sociais. Mas será que os políticos que adotaram as redes sociais como método político vieram para ficar? Será que essa política contribui efetivamente para construção de uma democracia mais robusta?

É verdade que a democracia baseada no mandato representativo se encontra em crise no mundo inteiro — existe uma generalizada desconfiança nos políticos e nos partidos de modo geral —, mas, talvez, o mais grave dessa crise seria a ilusão de acreditarmos que bastaria colocar por terra todo esse sistema para ascendermos tranquilamente ao paraíso. Como afirma Innerarity, “a experiência nos mostra que a democracia nem sempre é feita com democratas”[2]. Daí, acrescento eu, é melhor ir com calma.

Na Constituição Federal, quando o Estado organiza a ação política através de partidos políticos, cuja atuação deve guardar sintonia com os princípios estabelecidos no artigo 17[3] e na democracia representativa, prescrevendo que os mandatários gozam de um longo e detalhado rol de direitos e deveres[4], não o faz com o objetivo de “dificultar” a ressonância da vox populi junto aos respectivos representantes, mas, sim, porque a história do governo dos homens já demonstrou que, quando se afasta desse modelo, o resultado acaba sendo ainda pior.

Noutro modo de dizer, a mediação entre a vontade popular e os seus representantes, através de instituições e regras, tem razões que não se pode desconhecer. Platão, em famosa passagem de A República, assinalou: “É provavelmente a partir da democracia, e de nenhum outro regime, que a tirania se estabelece”[5].

Platão como se sabe, defendia uma espécie de elitismo político que parece não ter muito sentido nos dias que correm, especialmente quando se sabe que a democracia de massa foi responsável pela inclusão de milhões de pessoas como cidadãos ativos nas diversas sociedades modernas — o que demonstra o vigor do regime democrático tout court. Mas a sua reflexão crítica sobre os temores de uma hiperdemocracia podem nos dar algumas pistas, se devidamente atualizadas, sobre a política em tempos de redes sociais.

A lição dos clássicos é a de que devemos guardar precaução diante das paixões humanas e estruturar mecanismos de contenção constitucional. Na ciência política, um amplo debate já teve lugar entre os defensores do mandato representativo e do mandato imperativo (espécie de estatuto vinculante entre representante e representado), existindo larga preferência pelo primeiro em razão de esse levar em consideração o todo, e não o particular[6]. Ou seja, no mandato representativo o mandatário atua perante toda uma coletividade, e não como representante exclusivo de um determinado grupo.

Como se sabe, entre o que prescreve a lei e a realidade há uma grande distância, sendo notória a existência no parlamento brasileiro, por exemplo, de representantes de interesses específicos (bancada da bala, do boi, da Bíblia etc.). Mas esse desalinho factual não tem o condão de alterar o ideário traduzido no mandato representativo que, indiscutivelmente, se acomoda melhor numa sociedade marcantemente pluralista e heterogênea. O que nos incumbe, enquanto bons democratas, é combater as disfuncionalidades do modelo e corrigir o seu rumo.

As redes sociais — e o contato direto e imediato que elas proporcionam — operam de forma diametralmente oposta à sociedade em que vivemos: seu método “bolha” leva em consideração apenas e tão somente o particular e jamais o todo. O grupo, e nunca a comunidade. Partem e comungam de uma visão parcial da sociedade. Bauman cunhou uma expressão muito feliz quando afirmou que “a diferença entre comunidade e rede é que você pertence à comunidade, mas a rede a você”. E por isso mesmo “as redes não ensinam a dialogar porque é muito fácil evitar a controvérsia”[7].

O contato direto entre eleitores e o poder político, viabilizado pelas novas tecnologias, longe de permitir uma convivência mais democrática, na verdade, emula o facciosismo, o sectarismo de grupos e o espírito tribal presentes naqueles que pensam diferente, como inimigos a serem combatidos. Comunidade segregada em redes e que possuem líderes que os defenderão a ferro e fogo confronta o regime democrático. Como lembrado por Bobbio, uma sociedade em que o dissenso não está permitido é uma sociedade morta ou condenada a morrer[8].

Toda grande transição se manifesta inicialmente como crise, dizia Gramsci[9]. É disso que se trata: vivemos um momento de profunda crise em que a tecnologia tem proporcionado mudanças, sem precedentes, no modo como nos relacionamos com ela e a política não fica de fora. Ainda não sabemos bem como lidar com essa novidade no campo político e temos tateado os riscos que ela pode traduzir. E é exatamente nesse momento crítico que devemos nos precaver diante das falsas profecias e fincar pé na longa tradição que a história construiu — e os clássicos ensinam — a respeito de como o homem deve governar o homem.


[1] BOLDRINI, Angela. Deputados 'youtubers' irritam colegas e escancaram desordem de base aliada. Matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo em 24 de maio de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/05/deputados-youtubers-irritam-colegas-e-escancaram-desordem-de-base-aliada.shtml.
[2] INNERARITY, Daniel. A Política em Tempos de Indignação: A Frustração Popular e os Riscos para a Democracia. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

[3] Dentre os quais a defesa dos direitos humanos.
[4] Artigos 53 a 56 da Constituição Federal.
[5] SULLIVAN, Andrew apud PLATÃO. Trump e os Limites da Democracia. Revista Piauí, Edição 117, de junho de 2016.
[6] Segundo BOBBIO, existem autores que sustentam que a proibição de mandato imperativo deveria ser considerado um elemento estrutural da democracia representativa (BOBBIO, Norberto. O Filósofo e a Política. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltda, 2003).
[7] ABRANCHES, Sérgio apud BAUMAN. A Era do Imprevisto: A Grande Transição do Século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 88/89.
[8] BOBBIO, Norberto. El futuro de la democracia. 3ª ed. México: Fondo de Cultura Economica, 2001, p 70.
[9] ABRANCHES, Sérgio apud GRAMSCI. A Era do Imprevisto: A Grande Transição do Século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 26.

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