Opinião

A discussão fundamental no caso Intercept e o significado do império da lei

Autor

  • Gilberto Morbach

    é doutorando e mestre em Direito summa cum laude pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos como bolsista do CNPq editor do Estado da Arte (Estadão) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Iris Murdoch Society.

24 de junho de 2019, 6h42

Os homens pensam pouco sobre quão imoralmente agem ao interferir de modo precipitado no que não compreendem. Sua ilusória boa intenção não é desculpa para sua presunção."
(Edmund Burke)

1. Notas introdutórias; a questão que nunca foi
Como não poderia ser diferente, poucas coisas têm sido tão comentadas quanto a divulgação, pelo Intercept Brasil, de diálogos entre o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol. Desnecessário dar mais detalhes; seja “normal” ou não, o conteúdo já é suficientemente conhecido a ponto de dispensar notas introdutórias. Já não é mais novidade.

Também não é novidade o fato de que o episódio é marcado pela polarização que já é típica de nossos tempos. Discussões sobre legalidade, sobre meios e fins, sobre responsabilidades e deveres adquirem caráter de guerra ideológica e cultural. Tudo torna-se uma questão de ser contra ou a favor; contra a corrupção, a favor da "lava jato"; contra Moro, a favor de Lula. Ou vice-versa. (Tanto faz; os extremos quase sempre guardam muito mais semelhanças entre si do que admitem. Afinal, “quando nos estabelecemos em um dos extremos da atividade política e perdemos contato com a região intermediária” — dizia Michael Oakeshott —, “não apenas deixamos de reconhecer qualquer coisa que não seja um extremo como passamos a confundir os próprios extremos”. Não é por acaso que se supõe que quem inspirou Thomas Mann na criação de Leo Naphta em Der Zauberberg foi György Lukács. Não é por acaso que a governabilidade de ontem seja o combate à corrupção de hoje[1].)

Esse é apenas mais um sintoma da politização integral de todas as coisas que marca nossa época; o surgimento quase simultâneo de uma infinidade de livros que discutem o fim, a morte, a possível morte da democracia não é mera coincidência, de modo que seria impossível encerrar a discussão neste espaço.

De todo modo, há algo nessa questão que é paradigmático daquilo que caminha sempre ao lado desse binarismo tribal: uma confusão conceitual que transforma conceitos políticos em meras abstrações que nada significam. E se Sir Isaiah Berlin tinha razão ao dizer que a adesão cega a noções gastas é uma das maiores causas de desgraças, é necessário trazê-la à claridade — sob pena de caminharmos todos no escuro.

A (problemática) personificação que centraliza e direciona tudo aquilo que foi revelado pelo Intercept apenas à figura do ex-presidente Lula antecede a percepção de que este episódio engendrou uma disputa: de um lado, a esquerda, os progressistas, contra Sergio Moro, contra a "lava jato" e a favor da corrupção; de outro, a direita, os conservadores[2], a favor de Sergio Moro, a favor da "lava jato", contra a corrupção.

Acontece que a questão não é essa. Por uma série de razões, e uma série de confusões.

2. As questões fundamentais que o caso levanta (e o que delas eu penso)
O primeiro ponto diz respeito à particularização personalista de algo que é muito mais amplo e impessoal do que aparenta prima facie. O particular daquilo que foi revelado até agora é, de fato, um diálogo que envolve diretamente o ex-presidente. Mas se negar isso é cegueira, esquecer-se de que a questão transcende um único caso específico é comportar-se como alguém que vê apenas a árvore, mas é incapaz de enxergar a floresta.

O que se está a discutir… corrijo-me. O que se deveria estar a discutir não é (apenas) processo, condenação, suspeição no caso do ex-presidente. Trata-se de algo que diz respeito aos fundamentos próprios daquilo que faz parte de nossa concepção de direito. Quais são os limites da atuação judicial? Que tipo de interpretação do texto legal é aceitável em um Estado constitucional? Um juiz tem uma obrigação legal de obedecer à lei? Um juiz tem uma obrigação moral de obedecer à lei? Os fins justificam os meios? Todas essas são perguntas tão legítimas quanto difíceis; encerrá-las também é impossível neste espaço. Seja como for, sua autoevidente relevância já é capaz de indicar algumas coisas. Reduzi-las às figuras de um ex-presidente e um então juiz federal é dar a eles uma grandeza que ninguém tem em uma democracia autêntica: a titularidade de um protagonismo que se sobrepõe às questões mais fundamentais que dão forma a uma República.

Além disso, antes do segundo ponto, uma necessária inflexão. Se minha principal preocupação aqui é a clareza conceitual, também deve estar clara minha posição; se é impossível encerrar essas questões todas aqui, também é impossível manter-se neutro. Entendo que a atuação de um magistrado como juiz de instrução é contrária ao sistema acusatório e aos princípios que constituem e regem o procedimento penal no Brasil. Não me parece estritamente jurídica a atividade conjunta entre juiz e procurador. Penso que, em uma democracia liberal, a autoridade está no texto da lei, e não na figura daquele que deveria aplicá-la.

Que Sergio Moro, no mínimo, flertou com uma violação ao inciso IV do artigo 254 do Código de Processo Penal parece inegável; é preciso um enorme esforço retórico para normalizar (i) as críticas privadas à atuação de uma procuradora em audiência, (ii) a indicação de testemunhas à acusação e o consentimento com seu eventual uso baseado em notícia apócrifa, (iii) a sugestão de inversão na ordem de fases da operação e (iv) a manifestação em favor da divulgação de nota à imprensa por parte da força-tarefa da "lava jato". A discussão — a discussão honesta — parece-me, portanto, gravitar em torno da (eventual) justificativa capaz de sustentar e legitimar (ou não) essa postura; e é essa discussão que me parece poluída pela obscuridade de conceitos.

O que me leva, finalmente, ao segundo ponto: a confusão conceitual propriamente dita. Comecemos por alguns exemplos.

3. A confusão conceitual, a disposição conservadora e o rule of law
Roberto Campos dizia que o Brasil parece “particularmente vulnerável à perversão de objetivos”: a seus olhos, parecia curioso que a Revolução de 1930, que tinha por objetivo eliminar o “voto falso”, acabasse por eliminar todos os votos — falsos e verdadeiros; que o regime inaugurado pelo golpe de 1964[3], que prometia “conter a onda socializante do anarco-sindicalismo”, socializasse ainda mais.

O que hoje talvez lhe parecesse curioso é que, em nome do conservadorismo, se defenda exatamente a relativização do império da lei e a flexibilização de critérios mínimos que materializam uma ordem legal. Quando foi que a esquerda passou a defender a legalidade e o conservadorismo tornou-se disruptivo?

É paradoxal: membros e militantes de um governo eleito exatamente por levantar a bandeira da lei e da ordem sustentam algo antitético ao próprio conceito de ordem.

Quem defende a flexibilização dos procedimentos previstos em lei em nome de fins abstratos não está fortalecendo princípios de lei e ordem; está reduzindo-os a nada. Quem aceita a transgressão de limites e parâmetros legais claros não está combatendo a corrupção, está corrompendo o combate.

“Abusar da autoridade”, nas palavras de Chesterton, “é atacar a autoridade”. Autoridade não significa ter apenas o poder de fazer algo; ela exige também o direito de fazê-lo. Em uma democracia, o próprio conceito já pressupõe sua limitação institucional.

Tomada por uma ética conservadora, a luta contra a corrupção a qualquer custo degrada o conservadorismo a um tribalismo reacionário que aceita abrir mão dos limites institucionais quando lhe é conveniente, quando se tem fins que vão de encontro a seus propósitos assumidos a priori. Ora, a verdadeira disposição conservadora, pautada pela prudência, vê com olhos céticos qualquer arbitrariedade baseada em boas intenções: prefere o que é bom, embora limitado e conhecido, ao que é melhor, sempre utópico e desconhecido; prefere sempre a segurança de uma realidade tangível à incerteza de uma utopia prometida. Esperar antes dos homens e não das leis é adotar a arrogância epistemológica de quem ignora a imperfeição humana e, seduzido pelos amanhãs que cantam, sente a nostalgia de um futuro que justifique o injustificável.

A defesa da legalidade não deveria ser privilégio ou monopólio dos partidários de um ex-presidente, mas um dever de todo aquele capaz de perceber os riscos subjacentes à rejeição das instituições e, sobretudo, do direito — o único critério externo e impessoal a que se pode apelar se desejamos um mínimo de civilidade e coordenação. Sem critérios, tornamo-nos reféns do arbítrio, das circunstâncias, das maiorias eventuais.

Portanto, que se discuta o que realmente importa, e que as coisas sejam chamadas pelos nomes que têm. Que se defenda aquilo em que se acredita a partir dos conceitos que realmente fundamentam essas crenças. Que não se perca de vista que ignorar a lei é uma forma de corrupção e que, quando os fins não se submetem a uma instância que os regule, o império da lei é reduzido ao império dos homens. À barbárie é questão de um passo.

De minha parte, acredito na observância dos parâmetros e procedimentos legais, no respeito à autoridade do texto, no Direito como critério último. Temos, afinal, uma dívida com o passado e com o futuro: a conservação do rule of law, a maior herança que nos legou o advento da democracia liberal.

Encerro, enfim, com Raymond Aron — o mesmo que dizia que “[a] ideologia se torna dogma ao consentir o absurdo”: “Caso os freios herdados do passado falhem, nada mais se oporá ao estabelecimento do Estado total”.


[1] Devo esse insight ao professor Rodrigo de Lemos.
[2] Note-se sempre o plural, indicativo de uma coletivização característica de tudo aquilo que não permite qualquer espaço à individualidade.
[3] Nunca pensei que o faria, mas abro aspas para Ernesto Geisel: “O que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções se fazem por uma ideia, em favor de uma doutrina”. (E antes que se diga, não sou particularmente atraído por revoluções; sou cético demais — ou talvez medroso demais — para isso. Não compartilho da fé utópica dos revolucionários nem da combatividade nostálgica dos reacionários.)

Autores

  • Brave

    é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bacharel em Direito pela Universidade Feevale, membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

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