Opinião

Furto de sinal de TV por cabo, um crime sem pena na legislação brasileira

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23 de junho de 2019, 12h34

No Direito, dificilmente haverá uma dupla mais infalível do que crime e pena, dada a característica da retributividade, que de um lado garante que não há crime sem pena[1], mas acaba por expandir a retribuição indefinidamente, como se a cada mal fosse necessário — por justiça, vingança ou mágica — um mal equivalente. É como a goiabada com queijo, pão com manteiga, arroz com feijão, ou noite e lua, dia e sol, mar e areia. Mas não é que nosso legislador conseguiu a proeza de separar o inseparável? Sim, temos em nossa legislação um “crime” sem o seu parceiro de vida.

Como se sabe, de acordo com o princípio da legalidade, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena pode ser aplicada sem a instituição por lei da conduta proibida e de sua respectiva sanção, o que inclusive limita o poder do Estado de interferir na esfera das liberdades individuais. Trata-se de um princípio dicotômico, por instituir poderes e deveres: o Estado pode editar normas incriminadoras e sancionadoras e julgá-las, enquanto a sociedade está garantida contra a existência de infração penal sem que exista lei editada regularmente.

Muito embora controversa a origem do princípio da legalidade[2], a doutrina entende que, da forma como atualmente é compreendido, remonta ao pensamento iluminista do século 18, como verdadeira proteção do indivíduo frente os abusos e arbítrios do Estado, como bem retratado pelo pai da Escola Clássica[3]. E ao se pensar neste princípio da reserva legal, não há como deixar de relembrar a frase atribuída a Feuerbach, que por ele não foi criada, “nullum crimen nulla poena sine lege”[4].

É fato que o princípio da legalidade, embora tenha adquirido corpo e consistência a partir dos séculos 18 e 19, como uma garantia fundamental dos cidadãos, acabou por ser bastante violado no século 20, como se pode observar na Alemanha nazista, quando se permitiu o uso de princípios éticos-sociais como condicionantes das punições; ou na Rússia soviética, entre 1926 e 1958, que aceitava o uso da analogia incriminadora em Direito Penal; ou com os tribunais de Tóquio e Nuremberg, que incriminaram fatos pretéritos; ou ainda na legislação brasileira, quando a Lei de Segurança Nacional (Decreto-lei 4.766/42) determinou que a lei retroagiria, em relação aos crimes contra a segurança externa, à data da ruptura de relações diplomáticas com a Alemanha, a Itália e o Japão.

Porém, em pleno século 21, no novo milênio, sob a égide de uma Constituição Cidadã, em uma sociedade evoluída e com tantos aparatos tecnológicos, era de se supor que as violações ao princípio da legalidade ficassem resguardadas aos livros de História do Direito. Ledo engano. O legislador se superou e há mais de 24 anos criminalizou um comportamento e esqueceu de atribuir a ele uma pena. Trata-se do artigo 35, da Lei 8.977, de 6 de janeiro de 1995, que estabelece que “constitui ilícito penal a interceptação ou a recepção não autorizada dos sinais de TV a Cabo”. E só, para por aí. Não tem preceito secundário, não tem remissão à outra lei, não tem mais nada. Só tem a conduta pretensamente proibida.

E não é que o crime ficou escondido no meio de um emaranhado absurdo de leis penais, esquecidas e não aplicadas. Não. Em 12/4/2011, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal julgou o Habeas Corpus 97.261-RS, que tratava justamente da aplicação do artigo 35 da Lei 8.977/95. No caso, muito embora tenha se tangenciado a discussão se o sinal de TV por cabo se equipararia ou não a energia para fins de tipificação do artigo 155, parágrafo 3º, do Código Penal, o Supremo Tribunal Federal por unanimidade reconheceu a atipicidade da conduta[5].

O relator da referida ação constitucional, de início, esclareceu que as ações nucleares do artigo 35, da Lei 8.977/95, e 155, parágrafo 3º, do Código Penal, não se confundem: lá trata das condutas de interceptar ou receptar, “que significa interromper no seu curso, não deixar chegar ao seu destino, pôr obstáculo”; no crime patrimonial, o verbo se refere a “tirar, retirar ou surrupiar”, razão pela qual quem intercepta o sinal de televisão por cabo não pratica o furto, por dele não se apossar. E os ministros da 2ª Turma também reconheceram que o sinal de TV por cabo não pode ser equiparado à energia, “pois não é fonte capaz de gerar força, potência, fornecer energia para determinados equipamentos, ou de transformar-se em outras formas de energia”[6].

Ainda no referido julgamento, reconheceu a 2ª Turma que o artigo 35 da Lei 8.977/95 “não apresenta preceito secundário” (não tem pena), o que na prática equivale a dizer que, embora o desvio de sinal de TV por cabo seja prática ilícita, não há sanção. Sem sanção penal, por mais que a conduta seja ilícita, não há como classificá-la como injusto penal. Aliás, como já ensinava Fragoso, crime é o ilícito seguido de pena[7], ou seja, é a pena que distingue o ilícito penal dos demais ilícitos, como o ilícito civil e o administrativo.

Sem sanção prevista, perde-se a essência coativa da norma. A conduta deixa de ser objeto de um mandamento. É como dizer ao filho que é proibido comer doce antes do jantar, mas não puni-lo se o fizer.

Em consequência, entenderam os ministros do Supremo Tribunal Federal que complementar o mencionado artigo 35 com a pena do furto seria adoção do recurso da analogia in malam partem, o que é vedado no Direito Penal brasileiro, razão pela qual reconheceram a atipicidade da conduta. O reconhecimento da atipicidade, e não da mera ausência de punibilidade, vem exatamente da inviabilidade de reconhecimento de ilícito penal sem a cominação de pena, que seria sua diferença específica. Enquanto não estiver cominada pena, a conduta é irrelevante penal, ou seja, absolutamente atípica.

Como diria Carlos Drummond de Andrade em seu famoso poema, “e agora, José?”. Meses depois desse julgamento pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a Lei 8.977/95 foi substancialmente reformada pela Lei 12.485, de 12 de setembro de 2011. Do artigo 1º ao 22, foram todos revogados, o que também aconteceu com os artigos 27, 28, 29, 36 e 37; já o artigo 24 recebeu uma nova redação. E o artigo 35, aquela verdadeira aberração da reserva legal? Esse permaneceu intacto, intocado, parece até que é imexível, como lembra o termo usado pelo então ministro do Trabalho Antonio Rogério Magri.

Então, ainda seguindo a esteira do poeta carioca, “para onde, José?”. A estrada somente poderá levar ao Congresso Nacional, já que a única fonte de produção do Direito é União. Espera-se que algum deputado ou senador enfrente a questão, seja para fazer respeitar o princípio da legalidade e aplicar pena proporcional à conduta praticada, seja para definitivamente abolir a conduta. O que não se pode permitir, em pleno século 21, é um crime sem pena.

E se a solução for manter a conduta, poderá aproveitar a oportunidade para atribuir correta ação nuclear ao tipo penal, pois o verbo interceptar não é o mais adequado. Interceptar significa obstar, interromper, apreender. Em sua literalidade seria a ação daquele que bloqueia o sinal de terceiros, impedindo que qualquer um tenha acesso aos benefícios do serviço, ou ainda aquele que toma para si o sinal que seria destinado a terceiro, privando-o ou não do serviço. Tais condutas não são ordinárias, repetitivas ou impactantes na sociedade. Não há lesão relevante ao bem jurídico, pois seriam mínimos os beneficiados: se tal conduta de mera interrupção ou apreensão de sinal, danosa mas sem possibilidade de obtenção direta de lucro, ocorre no país, seu impacto social é mínimo, e não é percebida como merecedora de lembrança na imprensa ou nos meios de comunicação. Sem conflito social perene e impacto relevante na sociedade, não se justificaria, enfim, a criminalização.

A conduta realmente negativa e danosa do ponto de vista social é o desvio e a distribuição não autorizada do sinal da TV por cabo, com fito de lucro. São os inúmeros casos em que fraudadores negociam clandestinamente o sinal, por preços mais baixos, impondo grandes prejuízos às operadoras, além de frequentes danos aos adquirentes, que, mais ou menos cientes da origem espúria do sinal, são frustrados em suas expectativas de qualidade do serviço comprado

Como conclusão, é possível discutir sobre a necessidade, utilidade e proporcionalidade[8] da incriminação da distribuição clandestina de sinal de TV por cabo, mas, partindo da resposta positiva, é absolutamente necessária a atuação do Congresso para criar, enfim, uma sanção para a conduta já descrita com ares (insuficientes) de tipicidade penal e, aproveitando o ensejo, aprimorar a técnica com a troca do verbo utilizado, aproximando-o da distribuição clandestina, que é a conduta que preenche os já assinalados requisitos para incriminação.


[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 91.
[2] Nelson Hungria defendia que teve origem no direito romano (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. 4. ed. Vol. I. Tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 35), no que discordava Basileu Garcia, para quem a origem estava na Carga Magna de 1215 (GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 2. ed. rev. e atual. Vol. I. Tomo I. São Paulo: Max Limonad, 1954, p. 136), no que não concordava Frederico Marques, que atribuía às instituições do direito ibérico no período medieval o seu nascimento (MARQUES. José Frederico. Tratado de Direito Penal. Vol. I. São Paulo: Saraiva, 1964, p. 161).
[3] BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Tradução Paulo M. de Oliveira. Rio de Janeiro: Tecnoprint Gráfica Editora, 1980, p. 35. (Coleção Clássicos de Ouro).
[4] O jurista alemão criou na verdade três enunciados (nulla poena sine lege, nullum crimen sine poene legali e nulla podena (legalis) sine crimine), os quais depois foram sintetizados na famosa fórmula (ZAFFARONI, Raul; BATISTA, Nilo et al. Direito Penal Brasileiro. 3. ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 202).
[5] Não se desconhece que o Superior Tribunal de Justiça nos autos do Recurso Especial 1.123.747, relator ministro Gilson Dipp (julgado em 16/12/2010), do RHC 30.847, relator ministro Jorge Mussi (julgado em 20/8/2013) e do Recurso Especial 1.076.287, relator ministro Arnaldo Esteves de Lima (julgado em 2/6/2009), tenha entendido que o furto de sinal de TV por cabo se equipara a energia elétrica para fins do disposto no artigo 155, parágrafo 3º, do Código Penal. Entretanto, tal entendimento não afasta as críticas aqui realizadas quanto à técnica legislativa, especialmente se considerarmos os princípios da segurança jurídica, taxatividade e especialidade.
[6] Todas as citações foram extraídas do voto proferido pelo ministro relator (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus 97.261. Relator ministro Joaquim Barbosa. Segunda Turma. Julgado em 12/04/2011. Disponibilizado no DJe-81 de 02/05/2011).
[7] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1995, p. 144.
[8] Roxin relaciona a legitimidade da incriminação com sua subsidiariedade, que exige o filtro dos critérios de proporcionalidade (ROXIN, Claus. Derecho Penal – Parte General, Tomo 1. 1a edição. Madri: Civitas, 1997, p. 65).

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