Observatório Constitucional

Efetivação do direito à saúde pela jurisdição constitucional: a jurisprudência do STF

Autores

  • Diego Viegas Veras

    é juiz federal substituto do Tribunal Regional Federal da 4ª Região atualmente no exercício da função de juiz auxiliar no Supremo Tribunal Federal. Foi juiz instrutor no STF juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Alagoas e advogado.

  • José S. Carvalho Filho

    é doutor em Direito professor de Direito Constitucional e assessor de ministro do STF (Supremo Tribunal Federal).

22 de junho de 2019, 8h10

Há décadas, o constitucionalismo enfrenta o problema da falta de efetivação de certas normas constitucionais, notadamente daquelas que demandam uma prestação material do Estado e envolvem, por consequência, carga financeira para sua implementação, como os direitos sociais, culturais e econômicos. Esse fenômeno é ainda mais frequente nos países em desenvolvimento, nos quais muitas normas constitucionais são consideradas como programáticas e admitem postergação de sua concretude.

Muito já se avançou desde as primeiras reflexões, ainda no século passado, sobre a relação do Direito com as políticas públicas. Destaca-se, nessa seara, a obra de Cass Sustein e Stephen Holmes sobre o custo dos direitos, em que se invoca o tema da reserva do possível para justificar que o Estado sem recursos não teria como proteger direitos. Eis a ideia nuclear do livro: direitos custam dinheiro, de modo que não podem ser protegidos sem apoio e fundos públicos[1].

No Direito Comparado, também é bastante difundido o case Soobramoney, julgado pela Suprema Corte da África do Sul no final da década de noventa, oportunidade em que assentou que o Sr. Thiagraj Soobramoney, um desempregado de 41 anos à época e acometido de diversas doenças, inclusive insuficiência renal em estágio terminal, não tinha direito subjetivo a tratamento de saúde com hemodiálise, uma vez que o Estado sul-africano não dispunha de fundos suficientes para fornecê-lo. No caso, a Suprema Corte ponderou que, diante da limitação de recursos, sua inclusão na política pública pré-estabelecida implicaria a exclusão de outro paciente com mais chances de sobrevivência e que as decisões dramáticas, em matéria de saúde, não deveriam ser tomadas por tribunais, mas pelas instituições políticas clássicas — Executivo e Legislativo[2].

Uma decisão utilitarista como essa dificilmente se sustentaria no contencioso constitucional brasileiro, em razão do neoconstitucionalismo que impera em nosso país e que justifica a efetivação judicial de direitos fundamentais por meio de uma interpretação de parâmetros normativos fluidos[3], como a dignidade da pessoa humana. Contrariamente ao que ocorreu no caso sul-africano, o Brasil é rico em exemplos nos quais a atuação da jurisdição constitucional amplia a política pública em matéria de saúde, como o caso da fosfoetanolamina, também conhecida como “pílula do câncer”. No período de oito meses, cerca de 13 mil liminares foram deferidas para que a Universidade de São Paulo fornecesse medicamento não aprovado pela Anvisa e cuja eficácia ainda não havia sido comprovada por estudos técnicos[4].

Segundo relatório analítico do CNJ intitulado “Judicialização da Saúde no Brasil”, o número de demandas judiciais relativas à saúde aumentou 130% entre 2008 e 2017, enquanto o número de processos judiciais cresceu 50%. Além disso, houve um crescimento de aproximadamente treze vezes nos gastos do Estado com demandas judiciais, atingindo o montante de R$ 1,6 bilhão em 2016[5].

Esses dados demonstram que a questão deve ser tratada como pauta prioritária em todos os níveis governamentais e por todas as esferas de Poder. O STF, já há algum tempo, dá contribuições à solução dessa controvérsia constitucional que envolve, de um lado, a proteção de interesse subjetivo relativo ao direito fundamental à saúde e, do outro, a limitação orçamentária do Estado para o estabelecimento das políticas públicas de saúde.

Historicamente, a contribuição mais relevante do ponto de vista científico-jurídico, no âmbito nacional, foi inicialmente construída no julgamento da STA 175, relator ministro Gilmar Mendes[6], cuja decisão serviu como o mais relevante precedente para o Poder Judiciário nacional durante praticamente uma década. Após as experiências e dados apresentados na audiência pública da saúde[7], foram fixados os seguintes vetores interpretativos sobre a judicialização da saúde:

  • existindo omissão na implementação da política estatal estabelecida, o direito subjetivo do cidadão faz-se presente, restando ao Judiciário determinar o cumprimento daquela;
  • em caso de omissão estatal, deve-se analisar se houve decisão administrativa de não incorporar determinada ação de saúde; caso não tenha ocorrido tal negativa, sobressai a responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde envolvendo a medicina baseada em evidências;
  • e a determinação de fornecimento de medicamento abrange apenas aquele registrado na Anvisa e não pode envolver tratamento experimental (sem comprovação científica de sua eficácia).

Em razão de tal julgado não ostentar eficácia erga omnes e efeito vinculante — apesar de sua densa contribuição para a controvérsia —, aos poucos, notou-se a modificação dos pedidos nas novas ações, envolvendo fármacos não registrados na Anvisa ou medicamento órfão para tratamento de doenças raras e ultrarraras.

Visando a uniformizar a matéria, no âmbito do STF, foram afetados ao menos três recursos extraordinários importantes à sistemática da repercussão geral: RE 566.471, RE 657.718 e RE 855.178 (temas 6, 500 e 793, respectivamente).

Entrementes, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em recurso repetitivo envolvendo demandas judiciais que solicitam medicamentos não incorporados em normativos do SUS, passou a exigir, para os processos ajuizados posteriormente à 4/5/2018[8], a comprovação de incapacidade financeira para custeio de medicamento, necessariamente registrado na Anvisa, “por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS”[9].

Todavia, em maio de 2019, o Supremo Tribunal Federal julgou os temas 500 e 793, fixando as seguintes teses, respectivamente:

Tema 500: “1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União”.

Tema 793: “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.

Diante desse cenário, a decisão da Suprema Corte estabeleceu ser possível o fornecimento e o custeio pelo poder público, por meio de demanda judicial, de medicamento não registrado na Anvisa, desde que: (i) exista pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. Além disso, rompeu-se, nesse caso, com a solidariedade entre os entes, repassando à União o ônus de suportar o custeio desse medicamento sem registro na Anvisa.

Vê-se, pois, que, em relação ao medicamento não registrado na Anvisa, os julgamentos do STF suplantaram, em grande medida, as linhas da STA 175, assim como do citado acórdão do STJ, nada se referindo, exemplificativamente, à necessidade de comprovação de incapacidade financeira para custeio de medicamento solicitado. Além disso, não ocorrendo nenhuma modulação pelo STF, até o presente momento, as diretrizes fixadas nas teses 500 e 793 aplicam-se a todos os processos em curso no país, operando igualmente aparente conflito com a modulação dos efeitos realizada pelo STJ. Nesses dois últimos pontos, pensamos que devem subsistir as orientações fixadas pelo STJ, naquilo que não conflitar diretamente com as teses fixadas pelo STF.

No que se refere ao medicamento órfão para doença rara ou ultrarrara, conquanto tenha ocorrido uma flexibilização ao redigir-se a tese no tema 500 (RE 657.718), a matéria encontra-se em aberto no tema 6 da repercussão geral (RE 566.471, rel. min. Marco Aurélio), com julgamento aprazado para 23/10/2019, no qual deverão ser fixadas balizas para tais hipóteses excepcionais, sob pena de criarmos perigosa válvula de escape para o alto dispêndio estatal sem maiores restrições.

Seria prudente, assim como ocorreu no caso dos medicamentos não registrados na Anvisa, que o STF estabelecesse alguns parâmetros que condicionem a imposição de custeio de medicamento órfão para tratamento de doença rara ou ultrarrara ao poder estatal. Ilustrativamente, pensa-se na exigência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior e na inexistência de substituto terapêutico, com ou sem registro na Anvisa, de menor custo, ainda que off label.

Não consideramos justo impor aos entes Federados que custeiem tratamento ou medicamento para doenças raras ou ultrarraras de altíssimo custo (superando o montante de centenas de milhares de reais), inacessível à imensa maioria da população e que privam, por consequência, milhares de concidadãos da mais elementar assistência à saúde básica.

Ainda é cedo para fixarem-se prognósticos sobre os efeitos dessas decisões nas comunidades médica e jurídica, mas é possível antever que, assim como ocorreu com a judicialização da saúde após o advento da STA 175, o julgamento dos recursos paradigmáticos pelo STF e pelo STJ possui alcance limitado no horizonte temporal-tecnológico, diante da busca incessante de novas descobertas no campo médico-científico. De qualquer modo, já é um grande avanço!


[1] Holmes, Stephen e Sunstein, Cass, The Cost of Rights- Why Liberty Depends on Taxes, New York and London: W. M. Norton, 1999.
[2] ÁFRICA DO SUL. Soobramoney v Minister of Health, Kwazulu-Natal 1998 (1) AS 765. Disponível em: <http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/1997/17media.pdf>. Acesso em 17/6/2019.
[
3] BRANDÃO, Rodrigo. Aplicação direta de princípios constitucionais, ativismo judicial e superação do dogma do legislador negativo. In: Direitos fundamentais e jurisdição constitucional. Orgs. Clèmerson Merlin Clève et Alexandre Freire. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
[
4] DALLARI-BUCCI, Maria Paula; DUARTE, Clarice Seixas. Judicialização da saúde: a visão do Poder Executivo. São Paulo: Saraiva, 2017.
[
5] Conselho Nacional de Justiça. Relatório analítico propositivo. Judicialização da saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Instituto de Ensino e Pesquisa. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2019/03/66361404dd5ceaf8c5f7049223bdc709.pdf>. Acesso em 17/6/2019.
[
6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada 175, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 28/9/2009.
[
7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Audiência Pública da Saúde, realizada entre os dias 27/4/2009 e 7/5/2009.
[
8] Data da publicação do acórdão embargado.
[
9] “A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; iii) existência de registro do medicamento na Anvisa, observados os usos autorizados pela agência. Modulam-se os efeitos do presente repetitivo de forma que os requisitos acima elencados sejam exigidos de forma cumulativa somente quanto aos processos distribuídos a partir da data da publicação do acórdão embargado, ou seja, 4/5/2018” (teses fixadas no EDcl no Recurso Especial nº 1.657.156, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Seção, j. 12.9.2018, DJe 21.9.2018).

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    é juiz federal substituto do TRF-4, atualmente convocado para atuar como juiz instrutor de ministro do Supremo Tribunal Federal.

  • Brave

    é professor de Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal, pós-doutorando em Direitos Sociais pela Universidade de Salamanca (Espanha), doutor em Direito Público pela Aix-Marseille Université (França) e mestre e especialista em Direito Constitucional pelo IDP.

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