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Opinião: A questão da extinção da punibilidade por furto de energia

19 de junho de 2019, 7h11

Por Lucas Andrey Battini, Guilherme Maistro Tenório Araújo

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Tema que ainda gera discussões no âmbito do Direito Penal é a possibilidade de aplicação, por analogia, das leis 9.249/95 e 10.684/03 no que tange à extinção da punibilidade — na hipótese do adimplemento do débito antes do recebimento da denúncia — ao crime de furto de energia elétrica, previsto no artigo 155, parágrafo 3º, do Código Penal, ou ainda à suspensão da persecução penal em caso de composição com a concessionária de energia elétrica, sobretudo porque era aceita desde 2012 e teve seu rumo alterado neste ano.

Partindo dessa premissa, vislumbra-se que tal argumento era plenamente consoante com o entendimento dos tribunais superiores, porquanto “(…), embora o valor estipulado como contraprestação de serviços públicos essenciais – como a energia elétrica e a água, por exemplo – não seja tributo, possui ele a natureza jurídica de preço público, já que cobrado por concessionárias de serviços públicos, as quais se assemelham aos próprios entes públicos concedentes (…) (HC 252.802/SE, rel. ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 3/10/2013, DJe 17/10/2013).

E mais: o referido entendimento também se fez presente no julgamento do Agravo em Recurso Especial 796.250, oportunidade em que o ministro Nefi Cordeiro, do Superior Tribunal de Justiça, salientou que eventual tese de afastamento da aplicação analógica da legislação que rege os crimes tributários para o delito de furto de energia estaria em “discordância com o entendimento firmado nesta Corte”.

Vale dizer que, em 2018, o ministro Sebastião Reis Júnior concedeu liminar no HC 445.886/PR suspendendo um inquérito policial, admitindo que a aplicação da Lei 10.684/2003 era o entendimento consolidado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. O writ foi impetrado pelos subscritores do presente e noticiado na ConJur[1].

Ocorre que, no dia 13 de março, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RHC 101.299/RS, decidiu que “não há como se atribuir o efeito pretendido aos diversos institutos legais, considerando que os dispostos no artigo 34 da Lei 9.249/1995 e no artigo 9º da Lei 10.684/2003 fazem referência expressa e, por isso, taxativa, aos tributos e contribuições sociais, não dizendo respeito às tarifas ou preços públicos”.

Portanto, o entendimento que era consolidado na corte superior, desde 2012[2], foi alterado, inclusive sendo aplicado nos casos já em andamento, como no já citado HC 445.886/PR, ocasião em que o ministro Sebastião Reis Junior cassou a liminar e denegou a ordem de Habeas Corpus, mesmo diante da quitação integral do débito pelos pacientes do writ.

Todavia, muito embora a mudança repentina de entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o que por si só não demandaria mais discussões, ante a possibilidade de retroatividade de entendimento consolidado posteriormente, ainda que mais gravoso, existem razões que transcendem a mera discussão sobre a aplicabilidade, unilateral, do entendimento firmado.

Diga-se transcendem, pois, ainda que se concorde com o posicionamento exarado pelo Superior Tribunal de Justiça, como ficaria a situação em casos que a extinção da punibilidade já havia operado com o pagamento da última parcela — em momento anterior à mudança de entendimento — em que pese não tenha sido somente declara?

Pode-se cogitar que, em tais casos, há manifesta criação de uma expectativa, sobretudo naqueles em que a defesa teve que se socorrer às instâncias superiores buscando a suspensão do inquérito em razão do parcelamento da dívida, oportunidade na qual se esperava, com o parcelamento regular, que a quitação da última parcela da dívida com a concessionária de energia alcançasse a extinção da punibilidade.

Imagine que a defesa tenha se socorrido ao Superior Tribunal de Justiça, através de Habeas Corpus, momento no qual se concedeu a liminar para suspender o inquérito policial que apurava eventual furto de energia, por meio da utilização, à época, de entendimento pacífico na corte e, após a quitação integral do débito, sobreveio entendimento diverso, ou seja: uma situação deveras tormentosa e que não encontra resolução, até o momento, no Direito Penal.

Veja-se que não se discute, de forma alguma, a irretroatividade de entendimento posterior que não é benéfico àquele que havia parcelado a dívida buscando a extinção de sua punibilidade. O que se questiona é a possibilidade de prevalência do entendimento anterior nos casos em que a extinção da punibilidade apenas não foi declarada, todavia, operou com a quitação integral antes da aplicação do novo entendimento ao caso concreto.

É válido o exemplo da situação que ocorre com o sursis processual, em que o Superior Tribunal de Justiça, em inúmeras decisões, já assinalou que a possibilidade de revogação da benesse, após o período de prova, só pode ocorrer por fatos atinentes ao próprio período[3], em semelhança ao que ocorre nos casos em discussão, em que o entendimento emanado posteriormente à quitação integral da obrigação está superando a extinção da punibilidade que só não havia sido declarada.

É preciso dizer que a falta de declaração anterior da extinção da punibilidade ante a quitação integral daquele que atuou diligentemente e cumpriu com a íntegra do parcelamento não tem o condão de fazer “ressuscitar” a persecução estatal daquilo que já havia operado e, somente, não foi declarado.

Isto porque, novamente, no caso da suspensão condicional do processo, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que a natureza da decisão que revoga o benefício é meramente declaratória, oportunidade em que se considera automaticamente operada a extinção da punibilidade quando do cumprimento das condições durante o período de prova[4].

Ou seja: “expirado o período de prova sem que tenha havido a revogação da suspensão condicional da pena, considera-se extinta a sansão privativa de liberdade aplicada (art. 82, CP). A extinção opera-se de pleno direito, independentemente de expressa declaração judicial[5].

No Habeas Corpus 403.406–DF, que trata de tema semelhante — natureza jurídica da decisão de extinção da punibilidade —, decidiu o ministro Felix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça, que “a jurisprudência desta Corte Superior firmou-se no sentido de que a decisão concessiva do indulto ou da comutação de penas possui natureza meramente declaratória, devendo seus efeitos retroagir à data de publicação do decreto presidencial”.

Partindo dessa premissa, é preciso que se dê atenção especial a casos específicos, ainda que se concorde com o entendimento posterior do Superior Tribunal de Justiça no que concerne à não aplicação analógica em casos de furto de energia, sobretudo porque, nas referidas situações, é provável que a própria Justiça criminal tenha concedido a possibilidade de quitação do débito como condição da extinção da punibilidade.

Em tais circunstâncias, torna-se, por consequência, imprescindível — após efetuada a última parcela — a declaração da extinção da punibilidade a fim de igualar a aplicação da lei penal, em respeito ao princípio da isonomia, principalmente porque a situação ensejadora do parcelamento e, principalmente, o pagamento ocorreram antes da adoção da novo entendimento pela corte e, nos casos em que socorreu-se aos tribunais superiores mediante a impetração de Habeas Corpus, antes da cassação das liminares.


[1] https://www.conjur.com.br/2018-abr-28/pagamento-divida-extingue-punibilidade-furto-energia
[2] HC 199.959/RJ, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 19/04/2012, DJe 24/04/2012 e HC 159.609/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 14/02/2012, DJe 28/02/2012.
[3] DIREITO PROCESSUAL PENAL. REVOGAÇÃO DO SURSIS PROCESSUAL APÓS O PERÍODO DE PROVA. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. N. 8/2008-STJ). TEMA 920. Se descumpridas as condições impostas durante o período de prova da suspensão condicional do processo, o benefício poderá ser revogado, mesmo se já ultrapassado o prazo legal, desde que referente a fato ocorrido durante sua vigência. A letra do § 4º do art. 89 da Lei n. 9.099/1995 é esta: "A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta". Dessa forma, se descumpridas as condições impostas durante o período de prova da suspensão condicional do processo, o benefício deverá ser revogado, mesmo que já ultrapassado o prazo legal, desde que referente a fato ocorrido durante sua vigência. Precedentes citados: AgRg no REsp 1.366.930-MG, Quinta Turma, DJe 18/2/2015; AgRg no REsp 1.476.780-RJ, Sexta Turma, DJe 6/2/2015; e AgRg no REsp 1.433.114-MG, Sexta Turma, DJe 25/5/2015. REsp 1.498.034-RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 25/11/2015, DJe 2/12/2015.
[4] HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. ESTELIONATO. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. POSSIBILIDADE DE REVOGAÇÃO DO BENEFÍCIO APÓS O ESCOAMENTO DO PERÍODO DE PROVA, QUANDO COMPROVADO O DESCUMPRIMENTO DE UMA DAS CONDIÇÕES IMPOSTAS DURANTE O CURSO DO BENEFÍCIO. DECISÃO REVOGATÓRIA QUE É MERAMENTE DECLARATÓRIA. PRECEDENTES DO STJ. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE NÃO CONFIGURADA. PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM DENEGADA. 1. É pacífico o entendimento desta Corte sobre a possibilidade de o Magistrado negar a extinção da punibilidade, após passado o período de prova, quando verificado o descumprimento de qualquer condição imposta pelo Juízo ao conceder a suspensão condicional do processo, já que a decisão revogatória do sursis é meramente declaratória. 2. Assim, escorreito o acórdão recorrido ao cassar a decisão de primeiro grau, que extinguiu a punibilidade da infração pelo simples escoamento do período de prova sem avaliar o efetivo cumprimento das condições impostas no sursis. 3. Parecer do MPF pela denegação da ordem 4. Ordem denegada. Superior Tribunal de Justiça DIÁRIO DA JUSTIÇA ELETRÔNICO Edição nº 282 – Brasília, sexta-feira, 19 de dezembro de 2008. (STJ – HC: 105333, Relator: NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, Data de Publicação: 19/12/2008).
[5] Prado. Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1º a 120. 11ª. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 750.