Opinião

Não existe privacidade absoluta em um mundo digital

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19 de junho de 2019, 12h18

Para a perplexidade de muitos, tenho escrito e dito que não existe privacidade em um mundo digital. Digo isso e repito quantas vezes for necessário. Aliás, sublinhe-se: os vazamentos recentes sobre a operação "lava jato" só comprovam a minha assertiva. É pura fantasia acreditar na privacidade do que digitalizamos.

Não concluam, contudo, que a minha assertiva acima seja um salvo-conduto para os hackers, espiões e todos mais que vivem de roubar dados. De forma alguma! Quem surrupia dados de outras pessoas, de forma sorrateira ou não, deve ser devidamente punido. E temos leis para isso. Na responsabilidade civil, por exemplo, basta usar os artigos 186, 403 e 927 do Código Civil. Muito bem, vamos em frente que meu ponto é outro.

Ainda me recordo, dos bancos universitários, da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale. Decorávamos, como verdadeiros papagaios, a conhecidíssima sequência: “fato, valor e norma”. Quem foi além do decoreba lembra, em apertadíssima síntese, que determinado fato, devidamente valorado pela sociedade, acabava resultando na criação de uma norma jurídica.

Pois bem. A privacidade, em princípio, sempre foi objeto de alguma preocupação. Todavia, seu grau varia em decorrência de diversos fatores, dentre eles culturais, etários e econômicos, apenas para citar alguns. Conciliar todas essas variáveis para valorar a questão corretamente é uma tarefa bem complexa e sofisticada. Se já era difícil harmonizar esses pontos em um mundo analógico, imaginem as complicações dessa tarefa em um universo digital e sem fronteiras…

Mas será que a privacidade é um valor que todos buscam? Depende. A vaidade, o desejo por popularidade e a fama sempre foram contrapontos da privacidade. Pode-se dizer, inclusive, que a nossa sociedade atual –– com as redes sociais –– democratizou a fama e, de quebra, trouxe à tona o valor da superexposição. Os 15 minutos de fama de Andy Warhol já estão em meses ou anos… Uma parcela considerável das pessoas prefere a notoriedade –– ainda que singela –– à privacidade. Posta-se de tudo: fotos de jantares, viagens, filhos e os mais diversos bens que são comprados.

A coisa, no entanto, não para por aí. Fracassos, picuinhas e aspectos da vida pessoal são debatidos em público, na mais alta temperatura e de forma hiperbólica. Fofocas cruzam o mundo em questões de segundos, o que, aliás, é motivo de regozijo para muitos. Afinal de contas, o ditado popular sempre foi: “falem mal, mas falem de mim”. Nesse estado de coisas, como falar em privacidade de dados sem fazer uma ponderação de valores subjetivos individuais e sociais?

Certa vez, Nelson Rodrigues escreveu: “qualquer um tem seus íntimos pântanos, sim, pântanos adormecidos. É preciso não despertá-los. Mas certos acontecimentos acordam a lama do seu negro sono. Quando isso acontece, a alma começa a exalar o tifo, a malária, e a paisagem apodrece” (O Óbvio Ululante, “Reze menos por mim”, pág. 23). Me delicio só em imaginar o que Nelson diria sobre a pretensa privacidade de dados pessoais.

Não pretendo, de forma alguma, esgotar o tema. Meu intuito é apenas questionar o valor dado à privacidade de dados para formular a GDPR na Europa e a LGPD no Brasil. No meu sentir, a premissa fundamental para penas, responsabilidades e multas é ao menos relativamente falsa. Primeiro, porque não existe privacidade absoluta em meio digital. Segundo, porque não me parece claro o valor social da privacidade. Ele é fluido e oscilante. Se a privacidade de dados fosse uma ação, diria que se trata de bolha com prazo certo para explodir. Na minha modestíssima opinião, a privacidade de dados foi algo inculcado nas cabeças das pessoas, nada mais. Uma mera preocupação fabricada.

Seria válido efetuar uma pesquisa com as seguintes perguntas: (i) você acha que seu computador e/ou seu aparelho de celular são seguros (?); (ii) entre a fama e a privacidade, qual você escolheria (?); (iii) que tipo de informações pessoais você gostaria de tratar como privadas, como você guarda esse tipo de dados atualmente (?). Sem isso, ficamos no achismo dos legisladores. Pulamos o “fato, valor e norma”, e, com isso, alguns iluminados criam o fato, dão o valor e constroem normas.

Por vezes, fico com a suspeita de que isso tudo decorre da famosa captura regulatória de que falou George Stigler. Determinadas regulamentações, em alguns casos, costumam ser excelentes barreiras de mercado para os novos entrantes. E, como já disse em outro artigo, elas suprimem o desenvolvimento e a inovação. Para alguns, inclusive, as big techs estão comemorando especialmente a necessidade fabricada de privacidade de dados; o que elas temem mesmo é a competição dos jovens em suas garagens ou dormitórios de universidades. Como limitar esses moços e moças impetuosos? Excesso de leis e regulamentações que encarecem a inovação. Tal vale, também, para diversas outras empresas que lidam com dados e que não têm orçamento para tanto custo de segurança de dados.

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