Consultor Tributário

Não incide IR sobre restituição a advogados expulsos de Previdência

Autor

  • Igor Mauler Santiago

    é sócio-fundador do escritório Mauler Advogados mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).

19 de junho de 2019, 8h00

Spacca
*A coluna de hoje, escrita em conjunto com minha sócia Carolina Schäffer, dá notícia de mandado de segurança coletivo que tivemos a honra de elaborar em nome da OAB-SP e em favor de 17 mil colegas deste estado.

A Lei estadual 5.174/59 criou a Carteira de Previdência dos Advogados de São Paulo, gerida pelo Instituto de Previdência do Estado. Os benefícios (aposentadoria vitalícia e pensão) eram financiados por contribuições individuais, custas processuais e outros recursos ali previstos. A Lei 10.394/70 extinguiu a figura do segurado obrigatório (que atingia certas faixas da advocacia no diploma anterior) e limitou as aposentadorias a 10 salários mínimos e as pensões a 75% desse valor.

A Emenda Constitucional 45/2004 vedou a utilização de custas e emolumentos judiciais para o financiamento de serviços não afetos à Justiça (CF, artigo 98, parágrafo 2º). Com isso, a Carteira perdeu cerca de 80% de sua receita mensal, o que comprometeu gravemente o seu equilíbrio atuarial. Donde a Lei 13.549/2009, que a pôs em extinção, vedou a inscrição de novos filiados, sujeitou-a ao regime de capitalização (em vez do antigo regime de repartição) e agravou os requisitos para a concessão de aposentadoria. Além disso, extinguiu os benefícios vitalícios, substituindo-os pelo recebimento fracionado do saldo da conta vinculada do segurado, em período variável segundo a opção deste.

Declarando expressamente que a Carteira não se enquadra no regime de previdência complementar, a lei pretendeu submeter às novas regras mesmo os segurados já aposentados antes de sua entrada em vigor, dando a todos os filiados a opção de desligamento voluntário com resgate das contribuições e ressalvando que “em nenhuma hipótese o Estado (…) responde (…) pelo pagamento dos benefícios”.

Vale dizer: apesar do endurecimento das condições — justificado pelo desequilíbrio advindo da supressão da maior fonte de receitas da Carteira — a lei de 2009 preservou o direito à futura concessão de aposentadorias e pensões aos contribuintes ativos (isto é, àqueles que não gozavam de nenhum benefício na data da sua entrada em vigor). O diploma foi impugnado no STF pelo Conselho Federal da OAB e pelo Psol, por meio das ADIs 4.429 e 4.291. No julgamento das ações (Pleno, relator ministro Marco Aurélio, DJe 14/3/2010), a corte assentou que a mudança no regime (de vitalício para limitado ao saldo da conta) e a exoneração da responsabilidade do Estado não se aplicam aos titulares de aposentadorias e pensões concedidas (ou passíveis de concessão) antes da entrada em vigor da lei de 2009, cerca de 3 mil pessoas.

Por fim, a Lei 16.877/2018, rompendo as promessas já avaras da lei anterior, suprimiu subitamente os benefícios nela previstos (aposentadoria e pensão limitadas à conta individual, sem responsabilidade do Estado), e isso não só para os contribuintes ativos na data de sua publicação, mas também para aqueles que se aposentaram ou se tornaram pensionistas sob a égide da lei de 2009. Em lugar desses benefícios — futuros ou mesmo em fruição — os segurados acima referidos (isto é, todos aqueles 17 mil segurados que não se enquadram na decisão do STF) deveriam optar pelo reembolso ou pela transferência de seu saldo individual para plano de previdência privada (portabilidade).

Não sendo a Carteira dos Advogados de São Paulo um plano de previdência privada, revela-se impossível a portabilidade (Lei Complementar 109/2001, artigo 14, inciso II). Isso o que atestou Superintendência Nacional de Previdência Complementar, ao responder a questionamento do Estado (Ofício 1.276/2019/Previc). Se os segurados não podem permanecer na Carteira e tampouco migrar para outro plano, conclui-se que a cessação da relação previdenciária e o recebimento do saldo são medidas compulsórias. Claro, portanto, que não se está diante de mero resgate, que é sempre voluntário (e, por isso, sujeito ao IRPF), mas sim de indenização pelo dano consistente na frustração dos direitos previdenciários garantidos pela lei de 2009.

O imposto de renda — seja na modalidade renda (riqueza nova decorrente do capital, do trabalho ou da combinação de ambos), seja naquela dos proventos de qualquer natureza (acréscimo patrimonial não compreendido no conceito anterior) — grava apenas o ganho patrimonial apurado ao fim de um dado período. Como se sabe, a indenização pode decorrer de dano emergente ou de lucros cessantes. Estes últimos substituem os lucros que, recebidos no momento oportuno, seriam tributáveis. Por isso também o são. O primeiro é destinado a recompor uma perda, nada acrescentando ao patrimônio do beneficiário, donde ser intributável (STJ, 1ª Turma, REsp. 886.563/SP, relator ministro Teori Zavascki, DJe 2/6/2008; STJ, 1ª Seção, REsp. 1.152.764/CE, relator ministro Luiz Fux, DJe 1/7/2010).

Como bem salientou o STJ no segundo julgado acima referido, qualquer espécie de dano emergente está livre da incidência do IR, inclusive o decorrente de ato conforme à lei: a dispensa de empregado e a desapropriação são exemplos de eventos lícitos, mas causadores de dano. O dano também pode decorrer da atividade legislativa, na medida em que frustra, em favor da coletividade, direitos de determinados indivíduos, que devem ser ressarcidos[1]. Isso o que se tem no caso em análise. Com efeito, no regime da lei de 2009, os segurados faziam jus a aposentadoria a ser fruída segundo uma das diversas formas ali definidas, uma vez cumpridos os requisitos legais. Logo, aqueles que adeririam à Carteira tinham a legítima expectativa de obter complementação financeira mensal de longa duração, compatível com a fase da vida em que os proventos seriam recebidos.

Com efeito, na terceira idade, é natural que os indivíduos tenham redução nos seus rendimentos e aumento nas suas despesas pessoais com medicamentos e afins, conjunção que torna desejável — senão necessária — a fruição da aposentadoria. Some-se a isso o fato de que a maioria das pessoas não tem aptidão para lidar com investimentos financeiros. A soma desses fatores é que motiva a contratação de planos de previdência, que — numa perspectiva puramente financista — costumam ser menos vantajosos do que a aplicação, pelo particular, de seus recursos no mercado. A exclusão abrupta do cidadão do plano a que tinha aderido frustra todo um planejamento de vida, realizado sob a égide e em razão da confiança inspirada pelo Estado.

Isso, aliás, o que salientou o STF no julgamento das referidas ADIs. As observações do ministro Marco Aurélio, aplicáveis aos segurados da Carteira dos Advogados de São Paulo que já se tinham aposentado ou tornado pensionistas antes da lei de 2009, são perfeitamente aplicáveis aos segurados que permaneciam ativos naquela data, e que agora vieram a ser atingidos pela lei de 2018. Lembrou o ministro que, “com o passar dos anos, aumenta a situação de hipossuficiência”, tornando-se o participante “um cliente cativo da carteira”, de modo que a sua desvinculação “resulta em prejuízo (…) quando comparada à permanência, ainda que as contribuições sejam resgatadas”.

As mesmas razões prevalecem aqui. Com efeito, os segurados ativos sofreram não uma, mas duas significativas frustrações em suas legitimas expectativas, fundadas na segurança jurídica: a primeira quando transferidos à força para o regime de capitalização, passando de uma perspectiva de benefício vitalício para uma perspectiva de benefício finito; e a segunda quando mesmo este direito menor lhes foi suprimido, ao serem desligados, sem alternativas, da Carteira dos Advogados. Para quem adquiriu o direito à aposentadoria ou à pensão após a entrada em vigor da lei de 2009, a lesão foi ainda mais grave, pois já estavam em pleno gozo do benefício que agora lhes é retirado.

A simples coincidência entre o valor da indenização e o saldo da conta individual não retira à verba o seu caráter indenizatório, mesmo porque nada obsta a que os segurados pleiteiem em juízo eventual diferença, caso verifiquem que o dano sofrido não foi integralmente reparado. A situação assemelha-se à desapropriação, dado que houve verdadeiro desapossamento do direito dos segurados à aposentadoria e à pensão garantidas na lei de 2009.

Como sabido, o instituto não alcança somente bens, mas também direitos de cunho patrimonial, sendo vedada apenas a desapropriação de direitos personalíssimos[2]. Pois bem: a jurisprudência é firme quanto à intributabilidade da indenização recebida nesse âmbito, como se constata do acórdão proferido no REsp 1.116.460/SP (STJ, 1ª Seção, relator ministro Luiz Fux, DJe 1/2/2010, repetitivo), da Súmula 39 do TFR (“Não está sujeita ao Imposto de Renda a indenização recebida por pessoa jurídica, em decorrência de desapropriação amigável ou judicial”) e do RE 70.014/SP (STF, Pleno, relator ministro Luiz Gallotti, DJ 25/4/1975), no qual se avançou o argumento da integralidade da indenização (atualmente inscrita no artigo 5º, inciso XXIV, da Constituição), que ficaria prejudicada caso se admitisse a exigência tributária.

Depois de tantas promessas quebradas pelo Estado, restituição integral é o mínimo que esses veteranos colegas podem esperar.


[1] Caio Mário da Silva Pereira e Gustavo Tepedino. Responsabilidade Civil. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 186.
[2] Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 900.

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    é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

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