Opinião

Os contingenciamentos e o ensino superior de qualidade

Autores

  • Miguel Calmon Dantas

    é professor da Universidade Federal da Bahia (Ufab) e da Universidade Salvador (Unifacs) e doutor em Direito Público pela Ufba.

  • Onofre Alves Batista Júnior

    é pos-doutorando em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) professor associado do Quadro Permanente da Graduação Mestrado e Doutorado da UFMG e sócio-conselheiro do Coimbra Chaves & Batista Advogados.

18 de junho de 2019, 14h48

No dia 30 de abril, o Ministério da Educação anunciou que bloqueios de recursos teriam sido realizados sobre o orçamento do segundo semestre das universidades públicas.

O artigo 165 da Constituição prevê que leis de iniciativa do Executivo estabelecerão o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais. O artigo 8º da Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece que, em até 30 dias após a publicação dos orçamentos, o Executivo estabelecerá a programação financeira e o cronograma de execução mensal de desembolso. Para o exercício de 2019, foi editado o Decreto 9.711/19.

O artigo 165, parágrafo 3º da CF estabelece que o Executivo publicará, em até 30 dias após o encerramento de cada bimestre, relatório resumido da execução orçamentária. Com base nesse relatório, é possível verificar se a arrecadação estimada foi alcançada e, caso não se materialize a previsão, o artigo 9º da LRF prevê a possibilidade de limitar empenhos, para o cumprimento das metas estabelecidas na LDO.

O estabelecimento de metas fiscais serve para que o administrador, onde houver discricionariedade, não pratique imprudências e para que os gastos não sobreponham a arrecadação.

Com lastro no artigo 9º da LRF, o Decreto 9.741 definiu novos limites de empenho. As despesas discricionárias foram reduzidas para R$ 17,7 bilhões, o que corresponde a um contingenciamento de 24,8%. Em 2 de maio, foi editada a Portaria 144/19, da Secretaria Especial de Fazenda, estabelecendo o valor de contingenciamento por pasta, cabendo aos ministérios implementarem as limitações.

Apesar da alegação de que as limitações prezaram pela isonomia, seus efeitos impactaram de forma diferente cada entidade. Várias universidades foram a público declarar o risco de paralisação e de demissão de funcionários terceirizados, de descontinuar pesquisas e projetos de extensão e de reduzir a prestação de serviços para a comunidade. Em outras palavras, as universidades denunciaram o verdadeiro “caos no sistema da educação superior” que os atos governamentais causaram.

Os bloqueios alcançaram verbas destinadas ao custeio, atingindo tanto valores imprescindíveis ao funcionamento das instituições como de fomento à graduação, pós-graduação, ensino, pesquisa e extensão, de modernização, capacitação.

Em verdade, a suposta motivação de tais atos só pode ser extraída de entrevistas e tweets, ao arrepio das normas mais elementares do Estado Democrático de Direito.

Os cortes impugnados atingem 1.336.977 estudantes, ameaçando 398.100 vagas, com riscos a 202.395 mestrandos e doutorandos e sobre 5.118 cursos que se estendem sobre 298 municípios, abrangidos por 70 universidades. Dos R$ 6,99 bilhões do orçamento, estão bloqueados R$ 2,08 bilhões, correspondente a 29,74%, de forma praticamente linear, com variações de valores para cada instituição.

Entretanto, a União não pode contingenciar verbas destinadas às universidades federais na forma praticada sem contrariar preceitos fundamentais.

As normas constitucionais expressam imposições que constituem deveres de abstenção e de prestação. As escolhas realizadas quando da elaboração do orçamento, feito pelas vias político-legislativas, foram postas de lado por decretos e portarias, em flagrante violência aos princípios do Estado Democrático de Direito e da separação dos Poderes.

Em tais condições, contingenciamento posterior, sem materialização precedida de ato jurídico motivado, sem que ocorra modificação significativa da situação fática e do contexto econômico, e em detrimento de prioridades constitucionais (como a educação superior), revela descumprimento a deveres que decorrem de preceitos fundamentais.

O bloqueio dos valores previstos em orçamento para custeio e investimento obstaculiza, objetivamente, o funcionamento regular das instituições de ensino superior e exige a interrupção de programas e ações, afetando gravemente não apenas a qualidade, mas a subsistência dos cursos de graduação e de pós-graduação.

Ao assim proceder, o poder público expressa uma inversão de valores, fazendo prevalecer as prioridades de eficiência econômica do governo sobre as prioridades firmadas por normas constitucionais, sem qualquer amparo jurídico, ignorando normas programáticas vinculantes e regramentos constitucionais concretamente impositivos.

A despeito da autonomia universitária, que abrange a gestão financeira, abrigados pelo artigo 207 da CF, os atos impugnados lesam o Estado Democrático de Direito e o regime republicano, bem como a cidadania e o pluralismo político, constantes do artigo 1º, caput e incisos II e V, que constituem a identidade da ordem constitucional, à vista da centralidade da educação.

Os atos são contrários aos objetivos fundamentais da República, declinados pelo artigo 3º, porque é um obstáculo ao desenvolvimento nacional qualquer medida restritiva do funcionamento e das ações e programas de ensino, pesquisa e extensão das universidades federais, que retiram os trilhos para a promoção de uma sociedade livre, justa e solidária e dificultam a erradicação da pobreza e da marginalização, que são mitigadas e evitadas pelo acesso à educação e sua condição transformadora e emancipatória.

O bem de todos, sem qualquer tipo de preconceito, exige a formação de uma consciência crítica produtiva e ativa, de profissionais competentes e habilitados, de produção científica e de ações de extensão que dependem das universidades.

Haveria obstáculo à plena promoção da liberdade de pensamento, da liberdade de consciência e de crença e da liberdade intelectual, artística, científica e de comunicação, abrigadas pelo artigo 5º, IV, VI, e IX, do texto constitucional.

Também restaria lesado o direito à educação, consagrado pelo artigo 6º da CF, como desatendidos os deveres decorrentes das competências fixadas pelos incisos V e X de seu artigo 23, criando obstáculo dificilmente transponível para o acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação, que não podem ser promovidas com a perda de 1/3 do sustento financeiro das universidades. Na realidade, os cortes promovem o “caos” na educação universitária, obstaculizando a possibilidade de o Estado proporcionar adequadamente os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência.

É patente a lesão ao artigo 205 da CF e sua dimensão efetiva, que longe está de se ater ao mínimo vital, vinculando o poder público à promoção do nível de prestação no âmbito da educação superior que seja suficientemente satisfatório, em conformidade, ainda, com o artigo 2º do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que exige a realização progressiva do direito à educação, conforme o máximo dos recursos disponíveis.

Os incisos II, III e VII do artigo 206 também restam lesados, pois haverá severo cerceamento institucional à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar, divulgar o pensamento, a arte e o saber com a fragilização das instituições federais de ensino superior, obstando o pluralismo de ideias e a promoção e consecução da qualidade de ensino. De forma inequívoca, o contingenciamento levado a cabo impede um padrão de qualidade no ensino, como firma expressamente o artigo 206, VII da CF.

Diante do risco à manutenção dos cursos e redução das vagas, restará desatendida a imposição de promoção de acesso aos níveis mais elevados de ensino, pesquisa e criação artística, na forma do artigo 208, inciso V, descumprindo a União o seu dever de financiamento adequado e suficiente, que reside no artigo 211, parágrafo 1º, além de constituir um desincentivo ao desenvolvimento científico, à pesquisa e à capacitação científica, tecnológica e a inovação, que tem como locus prioritário as universidades, sobretudo as federais.

A questão atenta contra postulados basilares do Estado Democrático de Direito e coloca em causa direito constitucional que mereceu tratamento reforçado pela CF: o direito à educação.

Diversas normas constitucionais foram flagrantemente violadas, como a autonomia universitária, direitos fundamentais (educação, liberdades de cátedra e de expressão), bem como vários princípios constitucionais fulcrais (República, Estado Democrático de Direito, impessoalidade, a publicidade).

A propósito, na ADPF 548-MC, o STF acolheu a tese de que a autonomia universitária constitui preceito fundamental, ao referendar medida cautelar que suspendeu os efeitos de atos que determinavam o ingresso de agentes públicos em universidades, por entender que desatendiam os “princípios constitucionais assecuratórios da liberdade de manifestação do pensamento” e desobedeciam as “garantias inerentes à autonomia universitária”.

O artigo 6º da CF garante o direito fundamental à educação e o artigo 205 estabelece que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família. Se a todo cidadão está assegurado o direito à educação, em contrapartida, é dever do Estado e da família garantir esse direito a todos os brasileiros. O artigo 208, V, firma que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística. O artigo 211, parágrafo 1º, por outro giro, determina que a União deve organizar o sistema federal de ensino e financiar as instituições de ensino públicas federais, exercendo função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais. Completando o arcabouço constitucional aplicável, o artigo 206, VII, firma que o ensino segundo um padrão de qualidade deve ser garantido.

O direito ao ensino superior de qualidade encontra, como contraface, a obrigação constitucional de a União garantir uma educação superior de qualidade. Redunda em inconstitucionalidade, assim, qualquer ato que impossibilite o cumprimento dessa obrigação constitucional.

Densificando a Constituição, o artigo 55 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabelece que cabe à União assegurar recursos suficientes para manutenção e desenvolvimento das instituições de educação superior por ela mantidas. O dispositivo reafirma uma obrigação constitucional consagrada pelos artigos 6º; 205; 206, VII; 208, V e 211, parágrafo 1º, de a União garantir uma educação superior de qualidade em suas universidades.

A CF expressa uma obrigação prioritária para com a educação, que vem recheada de garantias. É nessa toada, sob o ponto de vista financeiro, que se deve entender a LRF.

A LRF, em seu artigo 9, parágrafo 2º, ressalvou expressamente as obrigações constitucionais e legais, que não podem ser afetadas por cortes, mesmo diante de crises. Nenhum ato do governo pode determinar contingenciamento que impossibilite o fluxo de recursos suficientes para se proporcionar um ensino superior de qualidade nas universidades públicas, porque essa é uma obrigação constitucional.

A educação vem sofrendo, nos últimos anos, cortes que ultrapassaram a cifra de R$ 25 bilhões. Se no governo Dilma Rousseff foram bloqueados cerca de R$ 9,4 bilhões da educação, no governo seguinte o orçamento voltou a ser alvo de reduções. O corte proporcionado pelo governo atual, por sua vez, fez o derradeiro sacrifício. Não importa se o contingenciamento foi feito pelo partido A ou B nem se pelo governo X ou Y. O que fica evidenciado é que os cortes impossibilitam o cumprimento de obrigação constitucional reforçada, ou seja, não permitem recursos suficientes para se proporcionar um ensino superior de qualidade nas universidades públicas.

Os cortes afetam a possibilidade de funcionamento regular das universidades, ofendendo, ainda, o princípio da continuidade da prestação dos serviços públicos. Os bloqueios impedem as universidades de cumprirem seu dever constitucional. Laboratórios param sem insumos e equipamentos; sem água e luz sequer salas de aula podem funcionar! A educação que sangrava, dessa forma agoniza, porque levou a fincada fatal!

O contingenciamento foi substancial e afetou a possibilidade de funcionamento regular das universidades federais, portanto, redunda em uma inconstitucionalidade, na medida em que impossibilita o cumprimento de dever constitucional. O poder de contingenciamento foi ultrapassado porque afetou obrigação constitucional.

O contingenciamento não pode redundar na inviabilização da prestação de um serviço de qualidade no ensino superior.

O tratamento constitucional permite que se afirme que os recursos destinados devem ser suficientes para que se proporcione uma prestação de qualidade, portanto, não se pode admitir contingenciamentos que gerem uma espécie de situação de “caos no sistema educacional”. O caos que inviabiliza o funcionamento adequado das universidades federais provoca atraso cultural e tecnológico, acarretando reflexos evidentes nos campos econômico e social. Da mesma forma, as universidades são espaços onde o debate livre de ideias e o exercício do pensamento crítico possibilitam a construção de uma verdadeira democracia. Nesse compasso, o caos educacional no ensino superior redunda em descumprimento de preceito fundamental, na medida em que acarreta uma espécie de “estado de coisas inconstitucional na educação”.

A propósito, existe relevante precedente no STF onde se reconheceu a impossibilidade de contingenciamento que propicie uma espécie de caos. Trata-se da decisão exarada na ADPF 347 MC/DF, na qual se excluiu qualquer interpretação que permitisse o contingenciamento do Fundo Penitenciário, em razão de se haver proporcionado um quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais. O STF, portanto, reconhece que o caos capaz de proporcionar um quadro de violação massiva de direitos fundamentais dá ensejo a um “estado de coisas inconstitucional” que impede o contingenciamento de recursos.

Os atos praticados causam uma espécie de “estado de coisas inconstitucional”. Por certo, a solução do presente caso é mais simples do que a que deu ensejo à ADPF 347, porque demanda tão somente o afastamento do ato gerador da tormenta na educação. O presente contingenciamento é a gota d’água que faz agonizar um sistema educacional que vem sendo sacrificado há anos.

Ao firmar a obrigação constitucional, a CF proibiu o Executivo de retirar dinheiro da educação superior gerando uma situação de caos. Em outras palavras, estabelece que nem o serviço da dívida nem nenhuma outra despesa podem ser pagas com doenças ou mortes (recursos da saúde), nem mesmo com a ignorância do povo brasileiro (recursos da educação). Verbas essenciais para educação não podem ser contingenciadas, existe um limite constitucional para contingenciamentos nessas áreas.

O bloqueio não pode impossibilitar o funcionamento regular das universidades, e o corte levado a cabo compromete o pagamento de serviços básicos de manutenção (água, luz etc.), a aquisição de insumos e suprimentos essenciais para salas de aula e laboratórios. É patente a asfixia causada, que inviabiliza o ensino superior. De fato, não há eficiência administrativa que supere um corte de tamanho monte.

Mesmo em um período de grave restrição fiscal, a CF estabelece que gastos com educação precisam ser preservados, pois são essenciais para gerar igualdade de oportunidades e aumentar o crescimento econômico no longo prazo. Se é dever da União assegurar recursos suficientes para a manutenção das instituições de educação superior, a autonomia universitária apenas pode ser assegurada com recursos que garantam o funcionamento regular das universidades. Constitucionalmente, a educação não é moeda de troca, mas deve ser prioridade de governo. Cabe ao STF pôr um fim a esse ritual de sacrifício!

Autores

  • é professor da Universidade Federal da Bahia (Ufab) e da Universidade Salvador (Unifacs) e doutor em Direito Público pela Ufba.

  • é professor de Direito Público da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pós-doutor em Direito (Democracia e Direitos Humanos) pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.

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