Comando do MPF

"É preciso repensar o modelo de MP , para diminuir a função de mero parecerista"

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15 de junho de 2019, 19h00

Vladimir Aras é o candidato entrevistado deste sábado (15/6) na série que a ConJur publica, ouvindo todos os candidatos à lista tríplice para concorrer à Procuradoria-Geral da República. O candidato Mário Bonsaglia informou que não participaria da série.

Arquivo Pessoal
Ingressou no MPF há 25 anos e hoje ocupa o cargo de procurador regional da República em Brasília. Foi secretário de cooperação jurídica internacional da PGR de 2013 a 2017, foi diretor jurídico e de assuntos legislativos da ANPR e membro auxiliar do CNMP. É professor-assistente de Processo Penal na Universidade Federal da Bahia. Por um ano, foi promotor no MP da Bahia.

Há 18 anos a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) leva ao presidente da República uma lista com três nomes escolhidos pela classe para comandar a instituição. A votação está marcada para o dia 18 de junho, das 10h às 18h30, por meio eletrônico.

Apenas a primeira lista tríplice, enviada em 2001 ao presidente Fernando Henrique Cardoso, foi descartada. De lá para cá, todos os PGRs estavam entre os três indicados. Apesar da tradição, nada impede que o presidente da República indique para sabatina no Senado um quarto nome.

O mandato da atual procuradora-geral da República, Raquel Dodge, termina em 18 de setembro, mas, de acordo com a Constituição Federal, ela pode ser reconduzida ao cargo, se for indicada pela Presidência da República. Também decidiu concorrer ao cargo sem participar da lista da ANPR o subprocurador-geral da República Augusto Aras.

Neste ano, dez integrantes da instituição concorrem a uma vaga na lista da ANPR. Seis deles são subprocuradores-gerais da República, o último degrau da carreira. Os demais são procuradores regionais, com atuação nos Tribunais Regionais Federais.

Leia a entrevista com Vladimir Aras:

ConJur — O MP pode fazer campanha de combate à corrução? Esse tipo de campanha é compatível com as funções do órgão? Por quê?
Vladimir Aras — 
O Ministério Público brasileiro pode e deve fazer campanhas educativas e de promoção da cidadania em todas as áreas em que atua, tanto na esfera da tutela coletiva de direitos quanto na área criminal. Isso não é novidade e vem sendo feito há anos, pelos vários MPs do país. Podemos promover a educação digital, inclusive contra a pedofilia e a pornografia infantil, como fazemos por meio do grupo anticibercrime do MPF. Podemos atuar na conscientização das pessoas quanto a questões ambientais e sobre os direitos fundamentais. Podemos difundir conhecimentos sobre transparência e integridade na administração pública. Podemos divulgar campanhas sobre acesso à Justiça e ajudar a formar cidadãos não violentos. Podemos e devemos fazer esclarecimentos sobre violência doméstica e intrafamiliar e atuar para reduzir seus números. Podemos ainda difundir noções sobre violência no trânsito ou segurança no trabalho e assédio moral. Há vários exemplos de campanhas bem-sucedidas país afora, dos MPs estaduais, do MPT e do MPF. A educação e a informação são mais eficazes para previnir ilícitos e evitar crimes do que a atuação criminal do Estado, puramente repressiva. Prevenir é melhor do que remediar e é do interesse público que o Ministério Público brasileiro continue agindo assim. 

Isso vale também para políticas anticorrupção e de promoção da integridade. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, particularmente nos artigos 5º, 6º e 13, recomenda como boa prática a conscientização da opinião pública contra a corrupção, numa perspectiva prevencionista, de colaboração dos órgãos estatais com a sociedade civil. A adoção de práticas de awareness-raising neste campo é constantemente estimulada nos foros internacionais e também usada por instituições públicas, como a CGU, no Brasil, e a OCDE e a ONU, no plano internacional. O MP brasileiro tem um papel a desempenhar também nesse esforço de conscientização dos cidadãos e de empresários, esforço este que deve ser realizado em conjunto com a sociedade civil e o setor privado, já que este é um tema que interessa simultaneamente à estabilidade democrática, à saúde da economia e a capacidade do Estado de implantar políticas públicas.

No particular, tive a honra de conduzir na Secretaria de Cooperação Internacional, em parceira com a Secretaria de Comunicação Social da PGR, a campanha “#CorrupçãoNÃO!”, que foi desenhada pela assessoria de relações internacionais da PGR, capitaneada pelo Brasil e abraçada por todos os MPs ibero-americanos. Tal iniciativa anticorrupção foi agraciada com o Prêmio CNMP em 2016 e foi difundida por toda a América Latina. 

ConJur — Os acordos de delação premiada pararam de ser assinados. O Vladimir Aras — A legislação que regula a colaboração premiada no Brasil remonta aos anos 1990. O modelo de justiça penal pactuada se fortaleceu com as leis 9.807/1999 e 12.850/2013. Esses acordos servem à  produção de provas, à recuperação de ativos derivados de crimes ou a eles relacionados, são úteis para a localização de vítimas sequestradas ou de pessoas desaparecidas, e ainda servem à prevenção de crimes graves. Precisamos abandonar a ideia de que os acordos só serviriam para investigar crimes de colarinho branco, o que é um equívoco. Atuei em pelo menos dois grandes casos de homicídio nos quais a colaboração premiada foi fundamental à elucidação da autoria: a atuação do esquadrão da morte liderado por Hildebrando Pascoal, que aterrorizou o Acre nos anos 1990, e a Chacina de Unaí, que vitimou auditores fiscais do trabalho no interior de Minas Gerais que investigam trabalho escravo. Todos os dias acordos como esses são celebrados por membros do MP em todo o Brasil.

Quanto à Lava Jato, é certo que a atuação do MPF no STF sofreu redução ou retardo. Relatório do ministro Edson Fachin mostra que na gestão anterior mais de 100 acordos foram elaborados e homologados, inclusive os dois primeiros e mais importantes com o ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, e com o doleiro Alberto Youssef. Outros 77 acordos foram firmados com executivos da Odebrecht, o que permitiu fortalecer a luta contra a corrupção não só no Brasil mas em uma dezena de países latino-americanos e africanos, como a Argentina, a Colômbia, o Equador, El Salvador, México, Moçambique, Peru e República Dominicana. Infelizmente, segundo o mesmo relatório Fachin, apenas um acordo teria sido celebrado na gestão da atual PGR. É necessário ter cautela e muito cuidado com esse tipo de instrumento processual, para que não haja violação ao devido processo legal ou lesão à presunção de inocência. Por outro lado, a sociedade brasileira espera que o MPF seja ponderado e responsável, mas eficiente na luta contra a corrupção e a lavagem de dinheiro.

Devemos, ademais, tirar lições do caso JBS. Por isso, proponho a criação de uma unidade de integridade e compliance no gabinete do PGR para evitar situações como as que vimos com o envolvimento de dois membros do MPF em situações limítrofes ou com aparência de ilegalidade. Paralelamente a isso, é fundamental que a Corregedoria da instituição funcione naquilo que realmente importa, no plano disciplinar. A isso se soma a necessidade de o PGR pedir ao Congresso Nacional uma legislação mais clara e detalhada sobre colaboração premiada, para imprimir mais segurança jurídica ao instituto. 

ConJur — Faz sentido o MP ser fiscal da lei em casos criminais?
Vladimir Aras — 
O Ministério Público é sempre o fiscal da lei, seja nas ações penais públicas ou nas ações penais privadas. A deontologia dos cargos de promotor de Justiça e de procurador da República exige de nós vigilância constante quanto aos direitos das vítimas e dos acusados e investigados e aos interesses da sociedade. Segundo os Princípios Orientadores das Nações Unidas Relativas à Função dos Magistrados do Ministério Público, conhecidos como Regras de Havana de 1985, cabe a esta instituição “exercer as suas funções de forma justa, coerente e diligente, respeitar e proteger a dignidade humana e defender os direitos humanos, assim contribuindo para a garantia de um processo justo e para o bom funcionamento do sistema de justiça penal.” Cumpre-lhe também “proteger o interesse público, atuar com objetividade, ter devidamente em conta a posição do suspeito e da vítima, e prestar atenção a todas as circunstâncias relevantes, independentemente de as mesmas serem favoráveis ou desfavoráveis ao suspeito”.

Porém, identifico uma segunda nuance dessa pergunta. A atuação do MP perante os tribunais de segunda e terceira instâncias precisa ser aprimorada. Devemos buscar uma intervenção processual mais eficiente na esfera recursal, para que o trabalho de procuradores de justiça, procuradores regionais da república e subprocuradores gerais seja mais racional. Para isso, é preciso repensar o modelo de MP custos legis, para diminuir a função de mero parecerista e reforçar o papel de órgão de ação e de iniciativa, na condução de investigações, na propositura de ações penais e na interposição de recursos. Isso exige o redesenho dos ofícios, promotorias e procuradorias, com maior aproximação a um modelo acusatório de processo penal, que não seja estamental ou uma mera cópia da divisão de competências do Poder Judiciário.

ConJur — Como deve ser o relacionamento do MP com a Polícia e com o Judiciário? Como avalia essa relação atual?
Vladimir Aras — 
Pode melhorar muito para que seja a melhor possível, dentro do modelo acusatório de processo penal. No continente americano, o Brasil é o país mais atrasado na sua adoção. Uruguai e Argentina foram os últimos países da região a implementar códigos acusatórios de processo penal. A modernização de nossa legislação é essencial. Temos um CPP dos anos 1940, quase octogenário, escrito com a visão da década anterior. Muitas garantias do devido processo surgiram desde então, e as novas ferramentas investigativas, instrumentos tecnológicos e outros avanços científicos tornaram imprestável a legislação em vigor.

O moderno processo penal deve ter uma perspectiva colaborativa, e o juiz deve ser realmente um terceiro imparcial. O relacionamento entre o MP e os demais sujeitos processais deve ser sobretudo respeitoso, reciprocamente respeitoso, e deve ter em conta a utilidade para a sociedade e o atendimento ao interesse público. 

Segundo o Princípio 20 das Regras de Havana, para assegurar a equidade e a eficiência do processo penal, os membros  do Ministério Público devem “cooperar com a Polícia, os Tribunais, os operadores judiciários, os defensores públicos e outros organismos ou instituições públicas.”

Na investigação, a integração dos esforços dos MPs e das Polícias deve ser buscado. Devemos apoiar a formalização da Ameripol, como Comunidade de Polícia das Américas, e a constituição da Amerijust. O aperfeiçoamento da investigação criminal é outro objetivo que deve ser buscado em consonância com as representações policiais. Mais atenção à perícia e maior uso da tecnologia são essenciais em qualquer desenho. 

Com o Judiciário, é possível buscar o aperfeiçoamento de rotinas de tramitação processual e de trabalho remoto, mediante regulamentação conjunta pelo CNJ e CNMP, assim como a inclusão na pauta do STF de ações constitucionais cujo julgamento seja estruturante para o acesso à Justiça e para o processo civil e penal. 

ConJur — O modelo de força-tarefa prejudica o direito de defesa? Por quê?
Vladimir Aras — 
Já atuei diretamente em uma grande força tarefa, a do caso Banestado, que funcionou em Curitiba de 2003 a 2006. Ao final daquele trabalho, os colegas Carlos Fernando dos Santos Lima, Januario Paludo e eu redigimos um manual de atuação em forças-tarefas e propusemos uma regulamentação interna desse instrumento de atuação no âmbito do MPF. Esse regulamento infelizmente nunca veio e me proponho a fazê-lo como PGR. Mas quero ir adiante. Como já tive ocasião de defender em artigos doutrinários e em sala de aula, é preciso ter uma legislação sobre a atuação de forças tarefas. A Lei 12.850/2013 pecou ao não regulá-las. Tampouco temos lei sobre a formação de equipes conjuntas de investigação (“joint investigation temas”). O único dispositivo existente no ordenamento brasileiro está na Lei de Tráfico de Pessoas, num inciso que resultou de proposta que fiz à Câmara dos Deputados quando era o chefe da cooperação internacional do MPF. 

Forças-tarefas são entes colegiados para produção de sinergia de atuação, reunindo diferentes capacidades ou talentos. O conceito vem das operações conjuntas de organizações militares e foi apropriado por órgãos de investigação e de persecução. No direito comparado, são comuns nos EUA e em países europeus, como a Itália, como se viu no “pool antimáfia” da Sicília nos anos 1980. No entanto, as FTs não devem ser os modelos únicos ou primordiais de atuação do MP, sobretudo do MPF. Devemos ter na PGR, como unidade de prestação de serviço ao MPF, um órgão bem estruturado de investigação, desenhado por critérios objetivos e submetido a rígidas regras de integridade e de proteção de dados. Essa unidade deve ser apoiada por um serviço pericial e ter capacidade de articular-se com a Polícia e com outros ministérios públicos, para operações conjuntas em casos complexos.

Devemos construir uma cultura de eficiência na persecução criminal que permita ao Ministério Público continuar a prestar bons serviços ao Brasil e aos brasileiros na luta contra o crime, especialmente a criminalidade violenta e a delinquência organizada, inclusive transnacional, mas sem macular o devido processo legal, sem ofender as prerrogativas dos advogados e defensores públicos e sem desrespeitar os direitos dos acusados, quaisquer que sejam. Isso é o que ensino há duas décadas em sala de aula e isso é o que tenho procurado praticar nos meus mais de 25 anos como membro do MP brasileiro. 

ConJur — O MP pode interferir na execução de políticas públicas em nome do combate à corrupção?
Vladimir Aras — 
 Todos os agentes políticos, todas as instituições públicas e todos os segmentos da sociedade podem e devem participar das várias etapas do ciclo de políticas públicas. Este ciclo começa com a formação da agenda (agenda setting), que depende da discricionariedade do poder político, legitimado pelo voto popular. Depois se passa à fase de decisão, também política, de executá-la. Chega-se à etapa de implementação da política pública, e o ciclo culmina com sua avaliação e a prestação de contas. Naturalmente, como se trata de uma sucessão de atos administrativos, que devem observar os princípios da Administração Pública, previstos no artigo 37 da CF, tal ciclo está sujeito a fiscalização dos órgãos de controle, como as cortes de contas, as controladorias e o Ministério Público. A sociedade civil também participa do controle. A ideia dê accountability é própria das democracias. Neste cenário, o MP pode ser um parceiro do Poder Executivo como “impulsor” ou indutor de políticas públicas. Porém, um limite sempre deve ser observado: o MP jamais  pode substituir-se ao administrador público em suas opções de mérito administrativo, relativas à oportunidade, economicidade etc. Essas decisões discricionárias, de cunho politico, pertencem exclusivamente ao administrador, legitimado pelo voto popular. Ou seja, o limite da ação do MP está na CF, nas leis e nos tratados. Como os membros do MP não são eleitos, devem também agir adequadamente e respeitar as opções políticas e de mérito dos gestores eleitos nos Municípios, nos Estados e na União.

Quando se tem em mira a corrupção, sempre por meio do seu Procurador-Geral, o MP pode sugerir ao Poder Legislativo a aprovação de projetos de lei para aperfeiçoar a atuação institucional. Pode também sugerir ao Poder Executivo que adote essa ou aquela cautela adicional em favor da integridade e da proteção do dinheiro público, especialmente quando uma boa prática estiver prevista em lei ou em textos  internacionais da OCDE, do GAFI, do Banco Mundial, do BID, do G-20 ou do FMI. O MP deve ser um constante coadjuvante do Estado para o aperfeiçoamento das instituições e práticas republicanas, inclusive as suas próprias, mas sem jamais querer menosprezar ou violar as competências de prefeitos, governadores e do presidente da República, ou constranger o livre exercício da atividade parlamentar. 

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