Opinião

Sugestões de mudanças nas regras do concurso da magistratura

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14 de junho de 2019, 7h08

Temos ouvido falar no desejo salutar de mudança nas normas de ingresso na carreira da magistratura. Penso que a discussão que antecede a mudança é bem-vinda, e o desejo de mudar, também.

Um dos anseios é que a magistratura não seja o primeiro emprego de ninguém. Neste ponto, é preciso concordar. Eu mesmo fui delegado de polícia por três anos antes de ser juiz. Mas essa regra já existe: exigem-se três anos de prática jurídica antes do ingresso na judicatura. Então, qual o problema? O problema é que a forma de exigência da prática peca, e o pecado traz consequências. Por exemplo, se o sujeito foi aprovado no Exame de Ordem e deseja ser juiz, basta que ele pratique cinco atos privativos de advogado em causas ou questões distintas por ano, durante três anos, e pronto: ele terá cumprido o requisito. Com o total de 15 peças, alguém tem prática suficiente para ser juiz? Não. Aumentar para cinco anos de atividade muda algo? Praticamente, nada. Serão 25 peças em cinco anos. A questão não está em aumentar o prazo, mas o que deve ser feito no triênio. Penso que 25 atos privativos de advogado, anualmente, sejam suficientes. Isso vai exigir, pelo menos, dois atos por mês. Claro, não é o ideal, mas evita ou dificulta a fraude.

Outro ponto que se levantou foi a necessidade de se antecipar a verificação de títulos desde a primeira fase. A intenção é boa, a execução da ideia está fadada ao fracasso. Rapidamente, os candidatos começarão pós-graduações on-line, mestrados e doutorados em instituições com menores níveis de exigência, e os requisitos serão preenchidos. Mais uma vez, a forma vencerá o conteúdo. Vale lembrar que o presidente da nossa suprema corte não tem mestrado nem doutorado e é um dos melhores ministros da casa. O ministro Dias Toffoli é, para muitos, a grande surpresa da corte: fala nos autos, não cria polêmicas, decide tecnicamente, tem bom senso e bom trato. A julgar pela intenção da mudança, alguém com vocação para ministro do STF será prejudicado já na primeira etapa do certame de juiz substituto.

Sobre a idade, quero lembrar Nélson Hungria, citado pelo professor Heleno Claudio Fragoso em nota explicativa na obra Comentários ao Código Penal. Hungria foi promotor público aos 19 anos. Se fosse hoje, diríamos não a Hungria. E não se iludam: continuamos produzindo “Hungrias”. E a burocracia e as exigências autofágicas da magistratura e do Ministério Público continuam afastando gênios do nosso meio e enviando-os à iniciativa privada e aos concursos de procuradoria. A experiência pode e deve ser medida por outras réguas.

Seguem minhas sugestões para cada etapa, com as adaptações que reputo adequadas.

Primeira etapa
Prova objetiva com cem questões, incluindo cinco de Humanística, divida em três blocos (bloco teórico, bloco prático, bloco jurisprudencial), e aprovando os 500 melhores candidatos para a etapa seguinte.

Explicação: a exigência de Humanística desde a primeira etapa demonstra a importância de disciplinas como Sociologia do Direito e Filosofia Jurídica desde o inicio da faculdade. Hoje, os alunos de graduação e os candidatos ao concurso da magistratura desconhecem a disciplina. Em regra, começam a estudá-la, de maneira afoita, a partir da segunda etapa.

Divisão em blocos: cada bloco é composto das 13 disciplinas previstas para a primeira fase (Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Empresarial, Direito Tributário, Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito do Consumidor, Direito da Criança e do Adolescente, Direito Ambiental, Direito Eleitoral e Humanística).

Bloco teórico: cobrança do domínio doutrinário do Direito, com adoção de entendimentos consagrados e teorias adotadas pelo nosso ordenamento jurídico e/ou por nossa jurisprudência. Isso prestigiará a adoção de doutrinas aprofundadas, evitando-se o uso sistematizado de resumos e leitura decorada da lei. Um juiz deve saber os ensinamentos dos grandes pensadores do Direito.

Bloco prático: enunciados trazendo casos concretos, devendo o candidato assinalar a alternativa que corresponde à solução correta para a situação em análise. Isso exigirá capacidade de raciocínio jurídico, e não mera reprodução de conteúdos decorados.

Bloco jurisprudencial: cobrança do domínio das decisões e dos entendimentos consagrados nos últimos cinco anos pelos tribunais superiores. Assim, o candidato demonstrará conhecimento dos precedentes, o que lhe permitirá, na vida prática, respeitar os precedentes, garantindo segurança jurídica ao jurisdicionado.

A aprovação dos 500 primeiros candidatos prestigia aqueles que dominam o Direito, mas não têm facilidade em provas objetivas. Eles terão a oportunidade de demonstrar seu preparo na segunda etapa do certame.

Segunda etapa
Prova discursiva distribuída em dois dias, sendo um dia teórico e outro dia prático.

Preliminarmente, ressalto que as provas discursivas devem ser separadas das provas de sentença, não devendo ocorrer no mesmo fim de semana, como a praxe consagrou. Apenas os candidatos aprovados nas provas discursivas devem ser submetidos ao exame de sentenças, que passa a ser a terceira etapa do concurso.

Sobre as provas discursivas:

Dia 1. Prova teórica. Nesta prova, haverá dez questões discursivas. Um número inferior de questões discursivas torna a segunda fase uma loteria jurídica. Se, por exemplo, cobramos quatro questões discursivas, o desconhecimento de uma delas implica prejuízo de 25% da prova, o que não é razoável. Neste exame, será cobrado o domínio da doutrina, com destaque para entendimentos consagrados e teorias adotadas pelo nosso ordenamento jurídico. Isso prestigiará o estudo de doutrinas aprofundadas, evitando o uso sistematizado de resumos. Além disso, a exigência de cobrança de entendimentos consagrados poupará os candidatos de vaidades desarrazoadas de certos examinadores, que cobram sua forma de pensar, como se ela devesse ser de domínio público e de adoção obrigatória. Destaco que, na segunda etapa, o candidato poderá fazer uso da legislação desacompanhada de comentários.

Dia 2. Prova prática. Nesta prova, haverá dez questões discursivas, com casos práticos hipotéticos, exigindo do candidato a solução para cada um deles, conforme entendimento de nossos tribunais superiores. Será cobrado o domínio das decisões e dos entendimentos consagrados nos últimos cinco anos pelos tribunais superiores. Mais uma vez, será ressaltada a importância do conhecimento dos precedentes, prestigiando-se a segurança jurídica, tão cara ao jurisdicionado. Na segunda etapa, o candidato poderá fazer uso da legislação desacompanhada de comentários.

Terceira etapa
Prova de sentenças, distribuídas em dois dias, sendo uma sentença cível e uma sentença penal.

Neste ponto, penso que deve ser mantida a forma de cobrança atual, que exige controle do tempo, resolução de casos complexos e capacidade de raciocínio jurídico aprofundado.

Quarta etapa
Inscrição definitiva, de caráter eliminatório, composta das fases a seguir: c.1) fase I – sindicância da vida pregressa e investigação social; c.2) fase II – exames de sanidade física e mental; c.3) fase III – exame psicotécnico. A quarta etapa fica mantida da forma como é hoje.

Quinta etapa
Prova oral, que 
deve ser radicalmente alterada. Não se pode mais admitir que, em uma prova oral, se questionem quais as condições da ação ou qual a teoria adotada pelo Código de Defesa do Consumidor para a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica. Quem chegou a uma prova oral já demonstrou ter domínio do Direito. Agora, é o momento mais importante para se descobrir se o operador tem vocação para ser juiz. Aqui temos a oportunidade ideal para uma sabatina. Precisamos saber qual a opinião do candidato sobre temas polêmicos e como ele se comportará como juiz diante de casos emblemáticos. Queremos saber se ele é a favor da interferência judicial em políticas públicas, se o juiz pode afastar o presidente da Câmara de Vereadores, anular nomeação de secretário municipal, determinar que o Estado pague um tratamento de R$ 2 milhões para um sujeito acometido de câncer em prejuízo de 10 mil pessoas, que não terão recursos para tratamento de doenças crônicas menos complexas. Precisamos saber se ele é a favor da redução da maioridade penal, da possibilidade de aborto e da descriminalização do uso de drogas. Temos que saber se ele é razoável em suas reflexões diante das complexidades que podem surgir no exercício da função jurisdicional.

Lembro-me do ministro Ricardo Lewandowski, que disse em uma palestra em Goiânia, há alguns anos: o século XIX foi do Poder Legislativo, o século XX foi do Poder Executivo, e o século XXI será do Poder Judiciário. Os juízes são atores no processo de evolução social e civilizatório de um país.

Sexta etapa
Avaliação de títulos, de caráter classificatório. 
A sexta etapa pode ser mantida como é feita atualmente. Não vislumbro necessidade de mudanças aqui.

Por fim, penso que as bancas examinadoras devem ser compostas de, no mínimo, 30% de membros do sexo feminino. Também, deve haver o mínimo de 30% de negros ou pardos. Isso permitirá uma cobrança mais condizente com nosso anseio por corrigir desigualdades históricas injustificáveis e reforçará a consciência de igualdade.

Concluo com o óbvio: o presente artigo traz sugestões. Elas podem ajudar na melhor seleção de candidatos vocacionados. Sobre como deve ser um juiz depois da posse, penso que a autocrítica não pode se limitar a quem o seleciona, mas abranger os próprios tribunais. Precisamos criar meios de estimular uma nova geração, que nasceu e foi educada em um mundo completamente diferente do mundo dos atuais líderes do Poder Judiciário. Mas isso é assunto para outro artigo. Permaneço, humildemente, à disposição de quem desejar discutir e se aprofundar sobre o tema.

Autores

  • é juiz de Direito substituto do TJ-DF, ex-delegado da Polícia Civil de Goiás e mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa.

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