Opinião

A transação em improbidade como instrumento de segurança jurídica

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14 de junho de 2019, 6h27

Em nosso texto anterior[1], abordamos a questão da (im)possibilidade de transação em sede de ação de improbidade administrativa, enunciando nossa opinião sobre o regramento atual e introduzindo no debate a proposta de novo trato levada a cabo pelo Projeto de Lei n. 10.887/2018.

Neste escrito, recorreremos a um argumento adicional em defesa da possibilidade de transação no bojo de ação de improbidade: a segurança jurídica.

Como sabido, um dos imbróglios mais recentes envolvendo o instituto dos acordos de leniência — em boa medida já superado — disse respeito à possibilidade ou não de o Ministério Público celebrá-lo isoladamente e à vinculação ou não que o instrumento teria sobre outros órgãos e entidades do Estado, entre eles os próprios demais membros do órgão ministerial, que não houvessem integrado o acordo ou a ele aderido.

No que concerne estritamente às repercussões que eventual ilícito possa ter sobre a seara da improbidade, a proposta enunciada pelo PL 10.887/2018 reverbera na discussão ao conferir, em seu artigo 17, caput, unicamente ao Ministério Público a legitimidade para o ajuizamento da correspondente ação, consagrando ainda, como dito no texto da semana passada, a possibilidade de transação mediante “integral ressarcimento do dano” e reversão à pessoa lesada da “vantagem indevida obtida”, a teor do artigo 17-A.

Em entrando em vigor a norma proposta, o Ministério Público em certo sentido resgatará um protagonismo propiciado pelo fato de figurar como único órgão capaz de ajuizar ações de improbidade e podendo, ainda, no curso dessas, transacionar, pressupondo-se reparação de dano e reversão da vantagem indevida que esvaziarão, via de consequência, a possibilidade de as pessoas jurídicas lesadas empreenderem ações paralelas.

De nossa parte, reputamos a proposta salutar por crer que a discricionariedade que conduz o Estado ao firmar acordo em sede de improbidade é mais bem aferida pelo Ministério Público, fiscal da ordem jurídica e titular da ação penal.

Explicamo-nos: o art. 127 da Constituição relega ao órgão ministerial “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. O art. 129 da Carta, ainda além, outorga outras importantes competências ao Parquet, todas elas denotadoras de sua proeminência. Daí por que, na condição de titular da ação penal pública, o Ministério Público geralmente tem maior domínio dos fatos em razão dos instrumentos de que dispõe e que o para sopesar, como requisitos para a transação em improbidade, “a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, na rápida solução do caso.

De mais a mais, não se deve desconsiderar que a transação, uma vez atingida, desencadeará extinção do feito com resolução do mérito, produzindo coisa julgada material. É dizer, na hipótese de transação judicial em sede de ação de improbidade, a discutível vinculação por parte de órgãos e entidades a acordos de leniência que não celebraram cede lugar à indiscutível vinculação à coisa julgada material.

O virtual argumento de que o modelo acima sacrificaria autonomia de outras entidades, por outro lado, não nos seduz. A teor das Convenções de Palermo e de Mérida, o dever de combate à corrupção foi, antes de mais nada, assumido pelo Brasil, obrigando o Estado, e não instituições específicas. Essa ratio, não ao acaso, já havia frequentado importante acórdão emanado do Supremo Tribunal Federal em hipótese envolvendo acordo de colaboração e na qual se firmou posição de que o ajuste faz nascer para o Estado, de maneira geral, o dever de honrar os compromissos assumidos:

(…) Os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança tornam indeclinável o dever estatal de honrar o compromisso assumido no acordo de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada, legítima contraprestação ao adimplemento da obrigação por parte do colaborador.[2]

Se deu no mesmo sentido o Estudo Técnico nº 01/2017, elaborado pela Câmara de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal sobre o uso de ferramentas de negociação para investigação de infrações e celebração de leniência, do qual constou que “a celebração de acordo de leniência, portanto, obsta, inclusive sob a perspectiva lógica, a atuação repressiva oficial desnecessária e desproporcional, porque já atingido os objetivos e reparação devidos.[3].

Dessa feita, condicionada — pelo PL 10.887/2018 — a transação em sede ação de improbidade (i) ao integral ressarcimento do dano, (ii) à reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevidamente obtida e (iii) ao pagamento de multa, de fato não há falar em vulneração a autonomia porque simplesmente inexistirá escopo a ser buscado no exercício de qualquer autonomia que seja.

No que diz respeito à eficácia do acordo frente aos demais membros do órgão ministerial, não se ignora a independência funcional como princípio institucional, consoante estampado no artigo 127 da Constituição Federal. Essa independência, nada obstante, deve ser sopesada com os princípios da segurança jurídica e da unicidade do Parquet, que rezam que “os procuradores e promotores integram um só órgão, sob a direção de um só chefe[4].

Assim, especialmente quando uma unidade do Ministério Público se insurja contra outra, fulcrada na independência funcional, há a necessidade de convergência com os princípios da unidade e indivisibilidade, reclamando uma ponderação adequada de tais valores — em último caso, se insuperável o conflito, haverá ele de ser dirimido no âmbito do próprio órgão.[5]

Corroborando o ponto, não foi ao acaso que o multicitado PL 10.887/2018 também dispôs, no § 4º de seu artigo 17-A, sobre a indispensabilidade de aprovação do acordo pelo “órgão competente para apreciar as promoções de arquivamento do inquérito civil”.

Tudo isso somado, o saldo, em nosso sentir, é o de que as propostas constantes do PL 10.887/2018 se alinham ao contexto atual e comungam da necessidade de maior segurança jurídica que deve advir dos ajustes entre o Estado e particulares que eventualmente optem por reconhecer a prática de ilícitos.


[1] https://www.conjur.com.br/2019-jun-07/opiniao-improbidade-transacao-sao-institutos-excludentes

[2] STF, HC 127.483-PR, DJ 4.2.2016.

[3]Disponível em http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/coordenacao/grupos-de-trabalho/comissao-leniencia-colaboracao-premiada/docs/Estudo%20Tecnico%2001-2017.pdf.

[4] BANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional, 9ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p.1012.

[5] No caso de conflitos entre MPF e MP dos Estados, já decidiu o STF competir à PGR a resolução: Ações Cíveis Originárias (ACO) 924 e 1394 e Petições (Pet) 4706 e 4863.

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).

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    é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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