Interesse Público

Limites do relator no processo de elaboração de emendas constitucionais

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

13 de junho de 2019, 8h00

Spacca
Soluções criativas e inovadoras de última hora foram uma constante no debate de propostas de emenda constitucional da previdência social nos últimos anos. No curso da PEC 287/2016 (Proposta Temer), por exemplo, a crença na possibilidade de alterações imprevistas serem adotadas até o último minuto de funcionamento da comissão de mérito motivou a invasão da comissão especial por agentes penitenciários em 04/05/2017 e a apresentação de sucessivas retificações, erratas e complementações do relatório e do substitutivo do seu ilustre relator, deputado Arthur Oliveira Maia.

Depois de apresentado o substitutivo em 19/04/2017, três outras versões do texto foram divulgadas, com acréscimos imprevistos, tornando incerto o que se debatia e votava no próprio curso final das deliberações da comissão. Essa sucessão de mudanças seria trivial na tramitação de projetos de lei, cuja iniciativa cabe a qualquer deputado ou senador, mas algo diverso ocorre com as propostas de emenda à Constituição. E o problema pode se repetir no curso da tramitação da PEC 6/2019, da Previdência.

A iniciativa de proposta de emenda constitucional é disciplinada diretamente pela Constituição Federal (Art. 60, incisos I a III). Não é viável proposta de emenda constitucional de iniciativa de qualquer membro singular do parlamento ou por deliberação isolada de Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional. A Constituição exige iniciativa de pelo menos um terço da composição da Câmara (171 deputados) ou um terço, no mínimo, dos membros do Senado Federal (27 senadores) para válida iniciativa de proposta de emenda constitucional. Essa exigência aplica-se também, por óbvio, para emendas a propostas de emenda constitucional (PECs) apresentadas pelo Presidente da República (Art. 60, II).

O relator na Comissão Especial da Câmara ou do Senado Federal é parlamentar como outro qualquer. Relator não pode inovar proposta de emenda constitucional de forma singular, sem suporte direto em emenda oferecida oportunamente por 1/3 dos deputados ou 1/3 dos senadores. Essas emendas à proposição original são apresentadas dentro de prazo aprovado pela Comissão, sendo este como regra as dez primeiras sessões do prazo destinado à emissão do parecer. Esgotado esse prazo, o papel do Relator é consolidar, organizar, aceitar e recusar emendas sugeridas, mesclando-as com o projeto original ou oferecendo emenda global ao projeto original, que na terminologia parlamentar recebe o nome de Substitutivo (v.g., Art. 138, § 4º, do Regimento Interno da Câmara). Mas nada na Constituição sugere que esse papel autoriza o Relator a inovar a proposta de emenda constitucional de forma isolada e individual, a qualquer tempo, como mandatário de 171 deputados.

Em síntese: Deputado ou Senador algum pode isoladamente apresentar proposta de emenda constitucional ou inovar substancialmente em proposta de emenda constitucional enviada ao Congresso Nacional. Essa limitação visa conferir maior estabilidade à Constituição e dificultar emendas sem a legitimidade de uma iniciativa qualificada desde a origem.

As normas regimentais que admitem ampla interferência dos relatores nas proposições em curso nas casas legislativas disciplinam a tramitação de projetos de leis ordinárias ou atos que não requerem iniciativa qualificada. Não podem ser aplicadas a propostas de emenda constitucional, inclusive em nome da transparência reforçada e do controle social que deve cercar a tramitação dessas matérias. A enumeração dos legitimados a propor emendas à Constituição é regra taxativa, que inadmite flexibilidade regulamentar ou legislativa.

Em 2004 cuidei desses aspectos em uma singela nota de rodapé[i] e voltei ao tema em 2017 em dois pequenos artigos específicos[ii], parcialmente incorporados ao presente comentário.

Considero o papel dos relatores de propostas de emenda constitucional estratégico e relevante: podem consolidar as emendas ou propostas de alteração subscritas por 1/3 dos deputados ou 1/3 dos senadores, opinar sobre elas, aproveitá-las em parte para a construção de substitutivo que as incorpore, mas nunca inovar solitariamente, surpreendentemente, sem referir proposição apoiada previamente por uma qualificada fração da casa legislativa e nos prazos regimentais.

As propostas de emenda constitucional de origem parlamentar devem ser atos coletivos e nunca atos individuais. Norma regimental alguma pode autorizar disciplina diversa, como parece sugerir o Art. 202, § 4º, do Regimento Interno da Câmara, conquanto parágrafo imediatamente anterior enuncie que todas as emendas devem respeitar a exigência da iniciativa qualificada de 1/3 dos membros da Câmara (Art. 202, § 3º). Este é o primeiro argumento contrário a uma solução de inclusão pelo relator de novas emendas após esgotado o prazo regimental para oferecimento de alterações de mérito: o argumento formal de matriz imediatamente constitucional que, uma vez violado, autoriza o juízo de inconstitucionalidade da proposta de emenda por infração ao devido processo constitucional.

Por isso, surpreende que governadores de vários Estados estivessem em Brasília nesta última terça-feira a sugerir ao Relator da Proposta de Emenda à Constituição n. 6/2019 (Reforma da Previdência) que adote soluções criativas no tema da suposta retirada dos servidores estaduais e municipais da PEC 6/2019. Alguns sugeriram que, se essa decisão for majoritária no âmbito da Comissão Especial, que o Relator adote mecanismo para que a implantação do modelo federal nos Estados ocorra por decreto ou simples decurso de prazo – soluções políticas que desconheço terem sido apresentadas por qualquer das emendas oferecidas validamente com adesão de 171 deputados. O Relatório e o provável substitutivo do PEC 6/2019 serão lidos nesta quinta-feira (13/06/2019) pelo deputado relator, Samuel Moreira (PSDB-SP).

Sobre a quebra de unidade do modelo previdenciário de vários agentes públicos, alguns dos quais com assento na Constituição e previsão de carreira uniforme, escrevi no passado sobre outro limite a essas ideias recorrentes. Esse outro limite é de ordem material.

A Constituição Federal não disciplina apenas exigências procedimentais para o oferecimento de propostas e a aprovação de emendas constitucionais. Cuida também de excluir a possibilidade de modificação de alguns preceitos que asseguram a sua identidade, uma vez que recusa validade a apresentação de proposta de emenda tendente a abolir: (I) a forma federativa de Estado; (II) o voto direto, secreto, universal e periódico; (III) a separação de Poderes; (IV) os direitos e garantias individuais. São as famosas cláusulas pétreas, normas intangíveis, gravadas de irreformabilidade: normas inalteráveis pelo processo regular de emenda constitucional.

Esses limites materiais ao exercício da competência reformadora enunciam normas que podem ser protegidas em fase precoce do processo legislativo, isto é, antes mesmo do encerramento dos debates parlamentares, pois a Constituição veda que sejam “objeto de deliberação” (CF/88, Art. 60, §4º). É uma situação excepcional: o controle jurisdicional de constitucionalidade no Brasil, como regra, exige a aprovação e a publicação do ato normativo para viabilizar o controle da validade material de enunciados normativos. Não é o caso das propostas de emenda à Constituição, pois estas podem ser questionadas logo na fase inicial dos debates se afrontarem gravemente normas irreformáveis ou o devido processo legislativo constitucional (a favor: STF, MS-20257, Moreira Alves, Pleno, j.08/10/1980; MS-34063-AgR, Edson Fachin, Pleno, j. 01/07/2016; MS 34507-MC, Roberto Barroso, decisão monocrática, j. 22/11/2016; MS 34448 MC, Roberto Barroso, j. em 10/10/2016; contra: ADI466/DF, Celso de Mello, Pleno, j. 03/04/1991).

Mas qual seria a cláusula pétrea violada com a eventual desconstitucionalização das normas de aposentadoria dos servidores estaduais e municipais ou a explícita transferência de fração relevante dessas normas para o domínio dos legisladores locais ou, pior ainda, para a deliberação por decreto? A resposta o Supremo Tribunal Federal ofereceu em vários julgados. Menciono apenas um para tentar manter leve e breve este comentário.

Exemplifico com o julgamento de 21/05/2015, na ADI 5316 MC, relativo à aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade dos membros dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Contas da União. A ementa é bastante enfática em seu núcleo essencial e enuncia:

“1. O princípio constitucional da separação dos Poderes (CRFB, art. 2º), cláusula pétrea inscrita no art. 60, § 4º, III, da Constituição da República, revela-se incompatível com arranjos institucionais que comprometam a independência e a imparcialidade do Poder Judiciário, predicados necessários à garantia da justiça e do Estado Democrático de Direito. (…) 3. A aposentadoria compulsória de magistrados é tema reservado à lei complementar nacional, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, nos termos da regra expressa contida no artigo 93, VI, da Constituição da República, não havendo que se falar em interesse local, ou mesmo qualquer singularidade que justifique a atuação legiferante estadual em detrimento da uniformização.(…) (STF, ADI 5316 MC, Relator: Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2015).

O princípio da unidade da magistratura (CF/88, Art. 92) – e porque não dizer também o da unidade do Ministério Público (CF/88, Art. 127, §1º) – são elementos estruturais dessas carreiras e funções e signos fundamentais para a respectiva independência no complexo arranjo dos poderes? Sua desconstitucionalização – ainda que parcial – viola a cláusula pétrea da separação dos poderes? Parece ser este o entendimento do Supremo Tribunal Federal expresso no julgamento referido e em outras decisões fundamentais. Esse predicado – o da unidade – parece ser reputado essencial à garantia da independência dessas funções de estado e servir à finalidade de resguardar os seus agentes contra investidas de maiorias locais, eventualmente contrariadas pelo exercício da atividade de controle desses órgãos de matriz constitucional.

Se as garantias da magistratura, do ministério público e de outras carreiras nacionais de estado são as mesmas, e devem ser as mesmas em razão de sua essencial unidade, não se vê como aceitar a fragmentação e a diversificação ampla do regime jurídico de aposentadoria dos seus agentes, alicerce da independência funcional que os identifica. Tampouco se consegue vislumbrar como essa medida promoverá o respeito à autonomia dos Estados e Municípios, que desde o início da vigência da Constituição Federal de 1988 nunca exerceram essa disciplina abrangente sobre o estatuto fundamental da aposentadoria e pensão dos servidores e agentes de Estado.

Não se trata de trivializar as cláusulas pétreas, que devem ser invocadas apenas em situações-limites. Como disse Castro Nunes sobre os “princípios sensíveis”, em passagem invocada pelo Ministro Gilmar Mendes para tratar da interpretação das cláusulas irreformáveis: ”a enumeração é taxativa, é limitativa, é restritiva, e não pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal. Mas cada um desses princípios é dado doutrinário que tem de ser examinado no seu conteúdo e delimitado na sua extensão. Daí decorre que a interpretação é restritiva apenas no sentido de limitada aos princípios enumerados; não o exame de cada um, que não está nem poderá estar limitado, comportando necessariamente a exploração do conteúdo e fixação das características pelas quais se defina cada qual deles, nisso consistindo a delimitação do que possa ser consentido ou proibido aos Estados" (Repr. 94, rel. min. Castro Nunes, Archivo Judiciário 85/31, 34-35, 1947). (STF, ADPF 33 MC, voto do rel. Min. Gilmar Mendes, j. 29-10-2003, P, DJ de 6-8-2004.)

A competência reformadora da Constituição deve ser exercida com prudência e temperança para ser respeitada como momento grave de reavaliação e atualização das normas básicas do país. Não deve ser processo sujeito a reviravoltas diárias, sobretudo após esgotados os prazos de oferecimento de emendas, por iniciativa isolada de qualquer membro do Parlamento, mesmo que se trate de seu ilustre relator. Se é propósito de alguns desconstitucionalizar de forma imediata a previdência do servidor estadual e municipal, para adotar solução extravagante de aplicação estadual por decreto ou por decurso do algum prazo limite de apreciação, será necessário o envio de nova proposta de emenda constitucional ao Congresso Nacional. E mesmo essa nova proposta, de alto risco institucional, não poderá tramitar sem passar pelo crivo do controle de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal, pois a independência e a unidade da magistratura e do ministério público não são passíveis de supressão sem grave lesão ao núcleo essencial da separação dos poderes (CF/88, art.60, §4º , III), ao menos segundo a atual jurisprudência do STF.

O país está estressado de tantas aventuras institucionais. Relatores não são deuses e pouco podem, se respeitada a Constituição, salvo contribuir para organizar e preparar projetos que reflitam e traduzam a vontade majoritária dos integrantes das Comissões ou do Plenário. Não podem inovar em processos de reforma constitucional e muito menos romper com normas consideradas intangíveis.

Esse tipo de ilusão de tudo poder é perigosa. A literatura bem o retrata. Kirílov, famoso personagem de Os Demônios, de Dostoiévski, em certo momento de sua inquietação existencial chega à conclusão de que “se Deus não existe, eu sou Deus”. E identifica na “independência” o seu atributo de divindade. Para Kirílov, se Deus existe, tudo depende dele e nada podemos fazer contra a vontade dele. Se não existe, tudo depende de nós e de nosso arbítrio. Para mostrar isso à humanidade, resolve matar-se para afirmar a própria liberdade. Pondo fim à existência, pratica o suicídio com uma pistola, pronunciando antes uma frase pueril e surrada: “está tudo bem”.

Oxalá os relatores de propostas de emenda constitucional compreendam a importância estratégica de seu papel, mas igualmente os limites de sua atuação válida, pois nada ganham praticando o suicídio jurídico de atuar sem habilitação da Constituição, nossa gramática democrática.


[i] Modesto, Paulo. A Reforma da Previdência e a Definição de Limites de Remuneração e Subsídio dos Agentes Públicos no Brasil. In: Modesto, Paulo (org). Reforma da Previdência: análise e crítica da Emenda Constitucional n. 41/2003. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 356.

[ii] Modesto, Paulo. A Reforma da Previdência e a Exclusão dos Servidores Estaduais e Municipais. Revista Colunistas de Direito do Estado, 2017, n. 341, 23/03/2017, disponível em http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/paulo-modesto/a-reforma-da-previdencia-e-a-exclusao-dos-servidores-estaduais-e-municipais ; idem, Badernaço Constitucional. Revista Colunistas de Direito do Estado, 2017, n. 356, 04/05/2017, disponível em http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/paulo-modesto/badernaco-constitucional-

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  • Brave

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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