Opinião

Do jogo à "pelada" processual: o processo penal sem juiz

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11 de junho de 2019, 6h17

As transformações ocorridas no âmbito do Direito Penal, que teve de abdicar de algumas de suas categorias clássicas para poder lidar com os desafios impostos pelas novas demandas punitivas, refletiram-se imediatamente no processo penal, instrumento sem o qual a persecução penal, como diz Julio Maier, “não consegue atingir um fio de cabelo da pessoa”.

Assim, paralelamente à expansão do Direito Penal, é possível verificar que estamos diante de um “novo processo penal”, que surge a partir de diversas leis criadas com o nítido objetivo político-criminal de perseguir de forma efetiva a “criminalidade contemporânea”. Logicamente, a persecução de condutas tão díspares, como matar alguém ou sonegar impostos — cujos únicos elementos em comum são a unificação imprópria no conceito de delito e a consequência jurídica da infração à norma proibitiva (pena) —, não pode ocorrer da mesma forma, mormente porque os objetivos são diferentes.

Isso não significa, entretanto, que os papéis da “cena jurídica” devam ser redefinidos, sob pena de severa contaminação do juiz para com a tese acusatória. E, não obstante a crítica doutrinária à figura do “juiz-inquisidor” seja uma constante, tem-se que na atual configuração persecutória de delitos complexos o magistrado — que antes apenas aguardava inerte (salvo raras exceções) a conclusão da investigação preliminar e a denúncia oferecida pelo Ministério Público — participa ativamente da fase pré-processual, mormente deferindo medidas cautelares, nas quais um pré-julgamento explícito da matéria acaba por ocorrer. Esse é objeto que pretendemos, brevemente, analisar.

O primeiro ponto é fazer as devidas considerações sobre a contaminação do magistrado ante contato direto com a autoridade policial. O problema, do ponto de vista epistemológico, é de que maneira tal círculo comunicativo é ou não uma fonte ideológica (in)consciente do ato de decidir.

Não obstante o bom relacionamento entre as instituições públicas ser um dos elementos essenciais à própria concepção e harmonização de um Estado Democrático e republicano de Direito, o fato é que tal harmonia deverá ser buscada sem, jamais, permitir que uma determinada instituição acabe perdendo parte de sua característica básica em detrimento da supervaloração de características de outra instituição com a qual se relaciona. Em outras palavras, e utilizando aqui termos conhecidos pelo mundo acadêmico e que, por isso, evitam a dubiedade, as relações institucionais serão, sempre, marcadas pelo complexo e pela transdisciplinariedade, sem, contudo, significar que tais características impliquem perda dos elementos singulares e diferenciadores de cada instituição.

Pois bem: consoante exposto e estimulado diariamente pela imprensa, o Poder Judiciário, por meio de alguns de seus representantes em primeira instância[1], cada vez mais se relaciona, extraprocessualmente, com o Ministério Público e com as polícias judiciárias, tanto federal quanto estaduais. Tal relação se dá através de inúmeras reuniões que delegados de polícia e representantes do Ministério Público realizam em seus gabinetes com a magistratura, nas quais os primeiros “discutem o caso” e as “medidas necessárias” à “contenção da criminalidade e pacificação social”, buscando, através da ordem judicial, o “método mais efetivo” para o alcance de tais objetivos. A “conjunção de forças” entre tais órgãos é, inclusive, preconizada e admirada pelo público leigo que, desconhecendo a necessária separação de funções estabelecida em norma constitucional, acredita que “tudo é válido na luta contra o crime”[2].

Com a devida vênia, e sem olvidar que o excelente relacionamento entre Ministério Público, autoridade policial e magistratura seja essencial ao resguardo da democracia republicana, o fato é que, ao Ministério Público e à autoridade policial, é outorgado, constitucionalmente, um específico papel, diferente, e muito, daquele que coube à magistratura. Enquanto aos primeiros[3] cabe, ante o quesito “proteção à sociedade”, a conduta de “criminalizar” um indivíduo para que, perante o processo penal, seja averiguada a real procedência de tal “criminalização”, ao Poder Judiciário incumbe, em relação ao mesmo quesito “segurança”, manter a equidistância das partes (acusação e defesa) como forma única de se buscar a justa solução para o caso em concreto, eis que a preocupação do magistrado se dá tanto em relação à sociedade quanto em relação ao indivíduo (réu) (como se possível fosse a distinção, diria Norbert Elias).

E justamente por força da extrema diferença entre os papéis outorgados aos participantes do mundo jurídico é que a proximidade antes ventilada corre o risco de ultrapassar a fronteira do bom relacionamento institucional e adentrar no campo do excesso, de onde, como consequência, sairá prejudicado o indivíduo[4].

Nesta senda, acreditamos que o magistrado, humano como todos nós (demasiadamente, como diria Nietzsche), não consegue, através de sua proximidade com os fatos que diretamente acompanha em sede investigatória, ao lado da autoridade policial (ao lado, sim, ainda que de fato, e não de direito), evitar sua contaminação com o discurso narrativo acusador (teoria do agir comunicacional, consoante Habermas e outros). Crê-se, e assim afirma a Constituição Federal, que a posição de espectador inerte do magistrado (pois no palco estão as partes) é condição sine qua non para o alcance da imparcialidade, conceito formal assegurado pelo distanciamento (alhea­mento) a partir do qual o juiz deve conduzir o processo de maneira constitucionalmente correta.

A postura dos sujeitos processuais em relação à prova é, ao fim, metagarantia fundante do processo penal e principal elemento diferenciador entre os modelos inquisitório e acusatório. Ao fundo, o respeito ao due process of law nada mais é do que o devido respeito às regras do jogo, dentre elas a separação absoluta de funções.

E se o processo penal pode ser considerado um jogo onde as garantias dos jogadores somente podem se impor pelo resguardo da regra por parte do juiz, é possível afirmar que alguns casos penais estão se transformando em verdadeiras “peladas processuais”, nas quais o Ministério Público é o “dono da bola”, e a figura do juiz simplesmente não existe. No duelo entre ataque e defesa, nítido prejuízo para esta última, parte débil do jogo processual.

A diferença é que nas “peladas” — e quem joga o valioso “futebolzinho semanal” sabe do que estamos falando — existe regra de construção da verdade que resolve o problema, caso as partes estejam jogando eticamente: o famoso “pediu, parou”. Ou seja, abdica-se de saber se determinado lance foi faltoso ou não em prol do artifício garantidor da igualdade entre as partes: “se alguém disser que foi falta, foi falta”.

Considerando que esse não é o caso do processo penal, que lida com o conflito fundador da construção dos direitos fundamentais e cujas regras de construção da verdade devem ser garantidas por uma figura alheia ao embate, necessário reencontrar a figura do juiz equidistante, mormente em razão da nítida desigualdade entre as partes, sendo a função do magistrado a de garantidor da parte mais débil.


[1] Trata-se de evidência empírica, observada principalmente a partir da militância enquanto advogados no âmbito das chamadas “grandes operações”, efetivadas pela Polícia Federal. Nesse sentido, cumpre frisar que a crítica dirige-se a apenas alguns magistrados de primeira instância, já que a maioria dos juízes conhece seu papel de garantidor dos direitos fundamentais.
[2] O papel da mídia, aqui, torna-se de singular importância. Na medida em que as manchetes diárias geram um novo condicionamento social, e na medida em que o juiz nada mais é do que um ser humano que se condiciona individualmente em acordo com o caldo cultural da época e sociedade na qual vive, torna-se cada vez mais difícil mantê-lo afastado do panorama inquisitorial-predatório que assola o inconsciente coletivo contemporâneo. Pelo contrário, cada vez que um juiz, cumprindo adequadamente a lei, concede, p.ex., liberdade provisória a um preso “famoso”, é covardemente atacado tanto pela imprensa quanto, por vezes (raras, ainda bem), pelas próprias autoridades voltadas à segurança pública.
[3] Apenas para se evitar dúvidas quanto ao alcance do aqui afirmado: não concordamos com a tese de que, na área penal, o Ministério Público atua como “fiscal da lei”; pelo contrário, parte atuante e envolvida, com brios pessoais e “vontade de vencer”, na mesma luta que trava o advogado. Por isso se afirma que, na área penal, a conduta do Ministério Público é “criminalizar”.
[4] Vale, inclusive, recordar a histórica e sempre atual distinção entre sistema acusatório e sistema inquisitório, sendo este último marcado, justamente, pela aproximação do juiz com a colheita e gestão da prova, assim como junto ao ideal de “proteção à sociedade” enquanto “criminalização” do indivíduo.

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