Opinião

O sutil perigo de uma interpretação restritiva da imunidade do advogado

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11 de junho de 2019, 12h09

Há um consenso doutrinário e jurisprudencial de que a imunidade profissional do advogado não é absoluta ou irrestrita, podendo, pois, responder por eventuais abusos. Assim, existe uma linha — que não é tênue — que separa o conceito de imunidade (leia-se: liberdade de expressão) do de abuso do direito.

Deve-se destacar que, parafraseando Marçal Justen Filho[1], é preciso levar o princípio da imunidade profissional a sério, sob pena de se permitir que um “posicionamento subjetivo contrário à heteronomia do Direito, em que o operador assume o poder de escolher quando aplicar e quando não aplicar o princípio”, enfraquecendo, assim, o maior instrumento das liberdades profissionais que é justamente o direito da livre expressão em defesa de seus clientes.

O discurso técnico do profissional do Direito, expressado em suas manifestações orais ou escritas, não pode ser tutelado pelo Judiciário, mediante a criação de “padrões de conduta”, censurando o seu trabalho e impondo um guia de uso do seu linguajar. E essa prática — policiar o uso da linguagem na atuação profissional — está acontecendo imperceptivelmente.

Um didático exemplo do que estamos comentando pode ser observado pela leitura de recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, da lavra do ministro Luiz Felipe Salomão, que, ao negar provimento a agravo em recurso especial[2], citou as expressões consideradas pela Justiça local como “abusivas” e, ipso facto, sujeitas a imposição de dano moral:

De outro modo, o Tribunal reconhecer que o agir em excesso, causou dano passível de indenização, amparado na seguinte fundamentação: A sentença recorrida acolheu o pedido de indenização por danos morais amparada na prova, notadamente no petitório (fls. 62/71) em que o apelante, na condição de advogado, teria agido com excesso, de forma a afrontar a honra subjetiva do apelado, ultrapassando os limites da imunidade profissional e do tecnicismo jurídico para defesa da causa. Tal conclusão se mostra inatacável, na medida em que as expressões então utilizadas pelo apelante – quais sejam: "[…J o senhor André tem demonstrado sinais de desequilíbrio, exclusão social, desvios psíquicos […]; "evidente sinal de patologia e desequilíbrio social"; "tal conduta exterioriza, é claro, o destempero e a arbitrariedade que sempre norteiam os atos e as decisões praticadas pelo Sr. André" – em nada se referem ao objetivo da petição então lançada nos autos do inquérito civil e, certamente, refogem ao âmbito do razoável e dos limites da defesa técnica. Ainda caberia a indagação acerca da especialidade do advogado para atuar em esferas alheias à sua área de formação. Ao proceder de modo a questionar a sanidade mental do autor e desvios psíquicos que lhe acometeriam, sem supedâneo em qualquer documento que assim concluísse, inequivocamente exerceu juízo de valor inerente às áreas da medicina ou da psicologia.

Para dar uma roupagem jurídica ao enquadramento fático enunciado, o acórdão se vale de embasamento “consolidado” na suprema corte, de que “excessos cometidos pelo profissional em afronta à honra de quaisquer das pessoas envolvidas no processo” devem ser reparados:

Nos termos do art. 133 da CF "O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". Ainda, preconiza o art. 7°, § 2° do Estatuto da OAB: "O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer". Essa Imunidade profissional consagrada ao advogado visa garantir-lhe liberdade para elaborar a defesa necessária à discussão da causa, todavia, não é absoluta, cabendo ao profissional responder por eventuais danos decorrentes de excessos cometidos, uma vez que não há no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto. É esse o entendimento consolidado na nossa Suprema Corte, de que a imunidade profissional, garantida ao advogado, quer pela norma do artigo 133 da Constituição Federal, quer pelo disposto no § 2° do artigo 7° do Estatuto da Advocacia não abrange os ilícitos civis decorrentes dos excessos cometidos pelo profissional em afronta à honra de quaisquer das pessoas envolvidas no processo. […] Verifica-se, no caso, a presença de abuso de direito, conforme dispõe o art. 187 do Código Civil, pois é certo que o advogado ao escrever as palavras ofensivas na defesa dos interesses de seu cliente, extrapolou os limites da razoabilidade. Desta forma, ao agir em excesso, causou dano passível de reparação, conforme acertada decisão do juiz sentenciante.

Pela leitura do caso concreto, basta um linguajar que não se enquadre nos padrões subjetivos do magistrado para que o advogado seja punido por “excesso de linguagem”. Em outras palavras: se na esfera de atuação em um litígio — e sabemos como alguns litígios são acalorados! — tivermos que nos policiar para exercer o legítimo direito de defesa, não podendo, no calor das circunstâncias, usar expressões mais duras ou que respondam a determinadas provocações, inclusive como estratégia de defesa ou de ação, estaremos enfraquecendo a prerrogativa maior do advogado que é justamente a liberdade de expressão como legítimo poder de defesa.

Esse é o espírito que norteia o princípio da imunidade.

O que estamos assistindo é a inversão dos valores em jogo. O que deveria ser uma exceção está se tornando regra, com a total cegueira ao princípio da imunidade, como expressão máxima do contraditório e da liberdade de expressão. Que segurança jurídica terá o advogado sabendo que qualquer excesso de linguagem — dentro da ótica interpretativa pessoal do magistrado — poderá manchá-lo com a pecha de comportamento injurioso, sujeito a ser condenado por danos morais?

Essa reflexão se justifica ainda mais quando se vê que o “politicamente correto” caminha a passos largos, censurando comportamentos e estabelecendo padrões de conduta, ou, nas palavras de Luiz Felipe Pondé[3], como “um truque para destruir carreiras de quem você não gosta”[4].

Infelizmente a base conceitual do que se entende — e se aplica — como princípio da liberdade de expressão ainda se encontra em estágio de evolução, com retrocessos inclusive do guardião constitucional. Nosso conceito de liberdade de expressão ainda precisa evoluir bastante e quem sabe, um dia, chegará ao estágio em que se encontra os EUA, onde “mandar um dedo do meio para um policial é uma forma de liberdade de expressão, garantida pela 1ª emenda da Constituição americana”[5]. Aqui seria considerado um tremendo desacato, sujeito a voz de prisão[6].

Agir com excesso, ou com abuso do direito, requer um algo a mais. Como reza o artigo 187 do CC, um ato que seja manifestamente abusivo, ou, em outras palavras clamoroso, manifesto. O termo manifestamente figura na letra do artigo 187 de forma propositada. Não basta exceder. Esse excesso deve ser manifesto[7].

E mais: é princípio de hermenêutica que não existem palavras inúteis na lei, ou, como aponta Carlos Maximiliano, “as expressões do Direito interpretam-se de modo que não resultem frases sem significação real, vocábulos supérfluos, ociosos, inúteis”[8]. E a expressão imunidade tem um conceito, uma relevância que não pode ser minorada dentro do contexto normativo.

Em outras palavras, dentro desse contexto normativo, o princípio da imunidade traduz uma preocupação do legislador com as interpretações meramente subjetivas do juiz ao apreciar o caso concreto, de sorte que podemos afirmar que esse conceito se traduz numa segurança do exercício lícito do direito.

Ao conceder imunidade ao advogado, foi-lhe atribuído um direito imune a interferências externas, especialmente do Judiciário, assegurando-lhe uma esfera de atuação que não impõe freios, medos ou peias que cerceiem a livre expressão de suas manifestações em favor de seus clientes.

Vou mais longe: mesmo que o advogado tivesse expressado o autor como “louco” (e não apenas desequilibrado mental), dentro de um contexto processual de litigância, não podemos censurá-lo e puni-lo sob pena de ferir o princípio da imunidade[9].

Lembrando: o que se está a fazer é limitar o exercício do direito de advogar, que deve ser assegurado para que o profissional não tenha peias na sua atuação.

Quando a norma estabelece um limite à imunidade, como é o caso de eventual excesso que venha a cometer, isso não significa dizer que estamos frente a um conceito fluido, de tal ordem subjetivo que possa permitir ao juiz conceituar como quiser esse excesso. Esse excesso deve ser manifesto e de tal gravidade que venha a afastar, para determinada situação fática, o princípio da imunidade. Em outras palavras: o excesso de linguagem, por ser tão grave e manifesto, não pode ser aceito como um direito lícito ao exercício da liberdade de expressão, de sorte que esse abuso do direito viola o próprio valor superior da imunidade, posto que foi deturpado pelo próprio advogado. Mas lembrando que nesse embate entre “imunidade” e “exercício excessivo do direito” deve sempre merecer uma interpretação que privilegie o valor superior do princípio da imunidade, não permitindo, assim, que subjetivas interpretações por excessos normais da atividade judicial, sejam classificados como abusivos e submetidos a punição. Isso é preservar a garantia da ordem jurídica, da forma como foi normatizada.

O que se está a discutir é exatamente isso: uma sutil restrição da atuação do profissional no exercício legítimo do seu direito. E com um risco inquestionável: de a subjetividade — sob o manto da razoabilidade e do abuso de direito — se tornar de aplicação rotineira e banal, criando-se a cultura do medo ao profissional do direito[10].

O que estamos a assistir é que o princípio da imunidade da palavra, enquanto liberdade, vem sofrendo, nos últimos anos, um duro golpe dos sistemas jurídicos, que em última análise violam o princípio constitucional da indispensabilidade do advogado, cerceando seu direito de livre manifestação, um dos postulados do contraditório.

O que nos preocupa, portanto, é essa “amplitude” de subjetividade que grassa nos processos que envolvem eventuais excessos de linguagem, próprios do calor do litígio, punindo, assim, advogados que estão acobertados pela imunidade da palavra, mesmo usando, em determinados momentos, adjetivos politicamente não apropriados.

E a garantia legal — da imunidade — se traduz, em última linha, como segurança jurídica e preservação da liberdade de ação e do contraditório por parte do advogado. Tornar essa imunidade uma “meia garantia” fere de morte a segurança jurídica que deve ter para praticar social e responsavelmente sua profissão. Não podemos esquecer que a Constituição[11], ao garantir a inviolabilidade do advogado como condição essencial para o pleno exercício da advocacia, realçou também o evidente interesse público de que a administração da Justiça seja realizada com ampla liberdade de expressão, com liberdade e independência no desempenho do seu dever profissional.

Em outras palavras, se a “moda pega”, teremos um advogado medroso, extremamente cuidadoso e que não poderá, no calor de uma discussão, usar de expressões fortes para exprimir sua indignação contra injustiças.

Se há um valor superior a ser preservado, além da segurança jurídica, é o da imunidade da palavra ao profissional do Direito. Esse um valor superior que a ordem jurídica não pode sacrificar, sob o mero argumento de que houve excesso no linguajar ou que não é razoável (ou elegante) expor de uma forma mais dura ou agressiva.


[1] In ConJur, 18.04.19, “É preciso levar os princípios a sério, inclusive a livre-iniciativa”.
[2] Nº 1.292.261 – SC (2018/0111443-5).
[3] In YouTube, “dor e mudança”.
[4] Lembrando: o nazismo controlou a linguagem como uma estratégia de dominação.
[5] Noticiado pela excelente colunista Mariliz Pereira Jorge, na Folha de S.Paulo do dia 18/4/2019.
[6] Aliás, a expressão “desacato” inserida na redação do parágrafo segundo do artigo 7 do Estatuto da Advocacia teve sua eficácia suspensa por liminar concedida pelo STF na ADI 1.127-8, proposta pela AMB.
[7] Com o mesmo espírito, de proteção à palavra, ao contraditório, especialmente quando da discussão da causa é acalorada, o artigo 142 do Código Penal expressa que não é tipo penal eventual ofensa irrogada em juízo proferida pelo procurador da parte.
[8] Maximiliano, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, §3, p. 204.
[9] No caso citado e olhando mais a fundo os fatos que geraram a ação de indenização por danos morais, é possível constatar que as afirmações de que a parte é “desequilibrada”, “com desvios psíquicos” e “evidentes sinais de patologia” foram fruto das respostas aos debates ocorridos no processo, em que o tom mais duro foi adotado por ambos os lados, fato absolutamente corriqueiro na vida forense. E mais: é possível admitir que essas fortes expressões romperam o equilíbrio psicológico da parte, causando-lhe prejuízo a ser reparado pelo advogado?
[10] Nascimento, Edmundo Dantes, Linguagem Forense, Ed. Saraiva, 1972, p.XII.: “O direito é a profissão da palavra e o advogado precisa mais do que qualquer outra profissão saber inverter esse capital com conhecimento, tática e habilidade. Todos os autores que tratam da profissão enaltecem além das qualidades morais, o manejo da linguagem escrita ou falada”. E uma das técnicas do advogado, em algumas situações, é exatamente provocar reações — e aí muitas vezes surgem as verdades — com palavras fortes, duras e que podem chocar, obviamente dentro de um contexto litigioso.
[11] Art. 133.

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